Acessibilidade / Reportar erro

Psiquiatria e Nordeste: um olhar sobre a história

Psychiatry and Northeastern Brazil: a historical perspective

Memória

Psiquiatria e Nordeste: um olhar sobre a história

Psychiatry and Northeastern Brazil: a historical perspective

O Nordeste do Brasil é um extenso leque – polígono, diriam alguns – a compreender terras e homens do Maranhão à Bahia. A história de sua psiquiatria junta datas, nomes e acontecimentos, descrevendo sinuoso curso de avanços e retrocessos, tal como assinalou José Lucena ao comentar erros da prática assistencial no país.

A ocupação de enfermarias das Santas Casas por insanos – os alegados doentes mentais – é a primeira etapa da psiquiatria hospitalocêntrica, datada dos alvores do século XIX. Aconteceu em Recife, Salvador e São Luís, semelhante ao que ocorreu na corte: no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e em São João Del Rei. Eram as principais cidades das mais importantes províncias na época, institucionalizando em nome da benemerência e da caridade o asilo de alienados pineliano.

No mesmo espírito, o 2º Reinado e a República erigem estabelecimentos destinados exclusivamente aos insanos, na sucessão ordenada de datas e hierarquias a registrar a gradação de importância das capitais de províncias e de Estados na crônica desigualdade econômica, política e cultural das regiões geográficas do país. São os asilos, hospícios, hospitais-colônias, por iniciativa dos mesmos agentes – o poder público e as Santas Casas.

Instalaram-se em Recife – Olinda (em 1864, o Hospício da Visitação de Santa Isabel, substituído em 1883, em outro sítio, pelo Hospício de Alienados, a Tamarineira); em Salvador (em 1874, o Asilo de São João de Deus, depois chamado "Juliano Moreira"); em Fortaleza (em 1886, o Asilo de São Vicente de Paula); em Maceió (em 1891, o Asilo Santa Leopoldina); na então cidade da Paraíba (em 1892, o Asilo do Hospital Santa Ana). São da primeira metade do século XX os hospitais-colônias de São Luís, (chamados "Nina Rodrigues"), o de Teresina ("Areolino de Abreu"), o de Natal ("João Machado"), o de Aracaju ("Eronides de Carvalho"), e o de Maceió ("Portugal Ramalho"). Com a notável exceção do hospício pioneiro, o do Rio de Janeiro, com o nome do próprio Imperador ( Pedro II), a inspiração religiosa batizava as instituições antes da República; esta passa a homenagear governantes (no Piauí e em Sergipe), militares (em Alagoas) e os primeiros psiquiatras de destaque local ou nacional (nos outros Estados citados).

A história da assistência psiquiátrica hospitalocêntrica segue seu curso com a criação dos primeiros sanatórios e casas de saúde particulares. Em 1936, Jurandir Picanço e Vandick Ponte fundam em Fortaleza a Casa de Saúde São Gerardo, e ainda no mesmo ano, Ulysses Pernambucano, em Recife, inaugura o "Sanatório Recife". Em 1943, Luiz Cerqueira funda em Salvador o "Sanatório Bahia". Desde 1931, os muros da velha instituição asilar começaram a ser derrubados no Brasil, a partir do Nordeste. Mais exatamente, a partir do Recife, a psiquiatria teria outra identidade: não mais o alienista nem o alienado. Na direção da velha "Tamarineira", Ulysses Pernambucano assentava singular psiquiatria social, aberta aos conhecimentos biológicos e psicológicos, aos antropológicos e sociais, cuja estratégica importância ecoa nas atuais reformas da assistência aos doentes mentais no país.

No burgo recifense, itinerário de invasores holandeses, berço de revoluções literárias e de saber jurídico, sede do primeiro parlamento e da primeira sinagoga das Américas, são obras de Ulysses o primeiro ambulatório psiquiátrico público, a primeira escola especial para deficientes mentais e o primeiro Instituto de Psicologia surgidos no Brasil. A Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste, depois tornada nacional, reuniu na década de trinta importantes congressos multiprofissionais em Natal, João Pessoa e Aracaju. Neurobiologia, revista a circular desde 1938, sintetiza em sua denominação os interesses e as luzes da Escola de Psiquiatria Social do Recife.

José Lucena e Galdino Loreto, catedráticos de psiquiatria da Universidade Federal de Pernambuco; Rubin de Pinho e Nelson Pires, também catedráticos na Bahia; Luciano Moraes e Heronides Coelho, na Paraíba; João Machado, no Rio Grande do Norte; Luiz Cerqueira, a alcançar a prática e o ensino psiquiátrico no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Ribeirão Preto, são influências dessa original escola de pensamento e de formação científica. Estudos de etnopsiquiatria (em particular, das religiões afro-brasileiras), de epidemiologia psiquiátrica, da história e das práticas assistenciais juntam-se às áreas de psicometria, de psicopatologia e de psicoterapia, como contribuições desses mestres.

Nomes maiores da psiquiatria brasileira nasceram no Nordeste – Juliano Moreira, talvez o maior deles, renovador do Hospício Nacional de Alienados e, principalmente, das bases doutrinárias e práticas da clínica psiquiátrica no Brasil; Nina Rodrigues, legista, etnopsiquiatra, pesquisador da antropologia do negro em nosso meio; Arthur Ramos, também etnopsiquiatra, cientista social, autor fundamental da antropologia brasileira. São personagens alicerçados da constituição de uma ciência nacional.

O antigo Hospício da Tamarineira chama-se agora Hospital Ulysses Pernambucano. O escritor José Luís do Rego homenageou postumamente Ulysses, em artigo publicado em número especial da Revista Estudos Pernambucanos, atribuindo-lhe haver afugentado o terror que o nome da Tamarineira (árvore de estranhos e instigantes frutos do sertão nordestino) provocava à infância dos meninos de engenho e certamente das cidades, assim como de todo aquele mundo. A contribuição do Nordeste tem sido a de afugentar o asilo como abominado pouso da loucura.

Tácito Medeiros

Universidade Federal de Pernambuco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2000
  • Data do Fascículo
    Set 1999
Associação Brasileira de Psiquiatria Rua Pedro de Toledo, 967 - casa 1, 04039-032 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5081-6799, Fax: +55 11 3384-6799, Fax: +55 11 5579-6210 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: editorial@abp.org.br