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Tecendo a rede: trajetórias da saúde mental em São Paulo 1989-1996

Livros

Tecendo a rede: trajetórias da saúde mental em São Paulo 1989-1996

Por Maria Cláudia Tedeschi Vieira, Maria Cristina Gonçalves Vicentin e Maria Inês Assumpção Fernandes (editoras). 1999. Taubaté: Cabral Editora Universitária, 332 páginas.

A publicação deste livro efetuou uma tentativa sincera e ousada dos organizadores de desenhar, por meio de registros, as experiências e reflexões de profissionais comprometidos com a reorientação de um modelo de atenção à saúde mental, com a construção de uma determinada rede de estudos.

A fase delimitada (1989-1996) reflete sobre as propostas em saúde mental no Município de São Paulo, no âmbito da Secretaria Municipal de Saúde, a partir da Proposta do Modelo Integral em Saúde Mental (1989), que contou com a criação de equipes e projetos, constituindo uma rede que se refere aos diversos equipamentos que devem se combinar ou se complementar para que a população-alvo seja atendida de acordo com a fase ou gravidade de sua moléstia, como também de acordo com suas necessidades ou perspectivas de uso desses equipamentos. Além das concepções de saúde mental aplicadas aos serviços de saúde pública, esse modelo é direcionado à política de saúde do município, de acordo com o Sistema Único de Saúde (SUS), orientado genericamente pela democratização da saúde no país por meio de características como a universalidade dos atendimentos e a descentralização das ações, criando, assim, medidas territoriais e medidas de racionalização dos serviços.

Habituados aos processos de descontinuidade política nos serviços públicos e à escassez de publicações dessas experiências, nota-se que o livro é o resultado de um encontro ainda incomum no nosso meio: universidade e instituições públicas.

De um lado a universidade representada por dois importantes institutos de psicologia: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que, através de um projeto de extensão universitária apoiado pela Faculdade de Psicologia e pelo Conselho de Ensino e Pesquisa (Cepe), cria, no período de agosto a dezembro de 96, o Ateliê de Textos dos Trabalhadores de Saúde Mental, com o objetivo de possibilitar a produção e publicação de textos relativos à experiências dessa área em São Paulo; e o Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, através do Laboratório de Psicanálise e Psicologia Social (Lapso), que objetiva a formação e pesquisa dirigida às experiências públicas em saúde mental.

De outro lado, profissionais envolvidos em múltiplas experiências desenvolvidas no processo de construção da rede municipal de saúde mental, profissionais das instituições públicas vivendo experiências concretas apoiados num trabalho de equipe, de sustentação teórica e idéias da reforma psiquiátrica.

Este encontro se dá numa fase crítica – reestruturação dos serviços frente a um novo projeto político – daí a importância da ancoragem e sustentabilidade da universidade comprometida com a formação de pessoal e produção de conhecimento, possibilitando a fotografia dessas memórias, registro talvez da construção de uma nova cultura, ou, minimamente, da análise cuidadosa e detalhada dessa experiência.

O leitor poderá enriquecer-se por partilhar, nesta coletânea, dos relatos que apresentam ações clínicas, administrativas e organizacionais dos autores protagonistas que, independentemente do lugar do exercício da prática, estão claramente comprometidos com o projeto, apresentando ao leitor suas teorias de base para reflexões e análise crítica do cotidiano institucional, em que a técnica e a teoria constituem uma outra trama no livro.

Este é dividido em seis partes que podem ser lidas independentemente e que apresentam os novos equipamentos em saúde mental, substitutos da abordagem de reclusão total, possibilitando na leitura uma aproximação com a avaliação desses serviços e da clínica como lugar de experimentação. Num belíssimo prefácio, Benilton Bezerra aponta para o que nunca é demais novamente repetir: "a reforma psiquiátrica não diz respeito a uma mera substituição de técnicas obsoletas por outras supostamente mais modernas, mais eficazes ou mais conformadas à descrição do sujeito por esta ou aquela teoria. Tampouco se refere a uma reorganização administrativa de serviços e profissionais, ou ainda, a uma concepção diferente de suas instalações. O que está verdadeiramente em jogo é uma redefinição profunda do que sejam o objeto e o objetivo das nossas práticas de cuidado, e uma discussão acerca dos instrumentos que tal redefinição exige".

Apesar de o título sugerir uma tecedura, os capítulos dentro das partes não deixam claro uma trama seqüencial. Na primeira parte do livro – Tear de Idéias – encontramos um texto (Lopes) que apresenta o cenário histórico e político da Secretaria Municipal de Saúde (1989-1992) e as diretrizes para os projetos da saúde mental distritais e intersetoriais. Apresenta detalhadamente discussões desde projetos antimanicomiais à reorientação dos modelos de atenção, implicando, além da criação de novos serviços, no desenvolvimento de novas abordagens. Apresentam-se assim as equipes multidisciplinares em saúde mental nas unidades básicas de saúde, os hospitais-dia (HD) adulto e infantil, os centros de convivência e cooperativas (Cecco), a emergência de saúde mental em pronto- socorros gerais, enfermarias de saúde mental em hospital geral, os centros de referência de saúde do trabalhador e os lares abrigados e cooperativas.

No segundo texto (Abreu, Samea e Roux) os autores apresentam o processo de construção de um grupo de trabalho e de abordagens em uma unidade básica para atendimento a pacientes adultos graves. Na parte II: "A Rede: Compondo Subjetividades", encontramos o relato de experiências em dois hospitais-dia para adultos (Leite, Tiveron e Silva) e (Stasevskas e Maximiro) e em um hospital-dia para crianças (Basile e André). Na terceira parte – O Tecido da Rede – dois relatos de experiências em hospital-dia infantil (Maacouf, Agostinho e Santorelli) e (Herrero e Zacrison), uma experiência no Cecco (Galletti) e a apresentação das oficinas de arte no Cecco (Bernerdo).

A parte quatro traz as abordagens familiares em três artigos: os dois primeiros (Carreiro e Cukierman) apresentam experiências distintas em hospital-dia e o terceiro (Gomes) traz uma discussão teórico-clínica. Nas partes 5 e 6 – "Sobre os Tecelões" e "Emaranhados da Modernidade", encontramos os textos produzidos na universidade como artigos ou pesquisa. O primeiro artigo (Camargo) fala da formação dos profissionais e especificamente sobre a formação para práticas grupais. O segundo artigo (Costa e Koda) apresenta uma pesquisa que investiga o HD no processo de constituição e consolidação do modelo de atenção em saúde mental do Município de São Paulo. O terceiro artigo (Scarcelli) aborda o projeto de formação, privilegiando a supervisão clínica e institucional. A última parte do livro (Fernandes) trata da delicada questão das produções individuais e coletivas nas organizações/instituições, produção do próprio – da subjetividade – e produção social.

Devido a tantas subdivisões, que dão conta das diferentes propostas da rede, as partes devem ser reunidas na mente do leitor. Os pontos de interseção dessa trama são os relatos clínicos que aparecem em quase todos os artigos. São relatos apresentados como possibilidade do pensar a clínica, como possibilidade de experimentações e discussões acerca dos processos de formação dos profissionais e dos serviços. Outro ponto, talvez um nó, fica representado na totalidade dos textos: no desmonte dos serviços ficam as memórias das experiências, tanto dos profissionais como da comunidade. Na página 183, "após 20/06/96, o hospital-dia passou a ser gerenciado pelo PAS (Plano de Atenção à Saúde), sistema terceirizado de prestação de serviços. Os profissionais foram transferidos para outros locais de trabalho".

Solange Tedesco

Departamento de Psiquiatria e Psicologia

Médica da Universidade Federal de São Paulo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2000
  • Data do Fascículo
    Set 1999
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