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Crimes violentos: ponto comum entre portadores de doenças mentais e estudantes de medicina?

Comentário

Crimes violentos: ponto comum entre portadores de doenças mentais e estudantes de medicina?

"Não há fatos, só há interpretações."

Nietzsche

Atendendo honroso convite dos editores desta Revista Brasileira de Psiquiatria, apresento extrato e condensação de diversos artigos que tenho publicado a respeito de crimes psicopatológicos.

Em 1992 publiquei "Memórias do Delírio – confissões de um esquizofrênico", livro cujo subtítulo justificava-se porque àquela época meu diagnóstico era justamente esse, segundo diversos médicos. Entretanto, a doença mental de que sofro não é esquizofrenia, e um grupo razoável de psiquiatras enganou-se a respeito dela examinando-me pessoalmente.

Mais intrigante foi a publicação de artigo, em 1993, no jornal da APM (Associação Paulista de Medicina). Nesse artigo, assinado por ilustre psiquiatra forense, popular entre jornalistas e pouco apreciado na área da clínica psiquiátrica, fui "liberado" da esquizofrenia. Tendo lido meu livro, julgou tal senhor que eu sofria do "grande mal" (em suas palavras) – a epilepsia, para isso tendo apresentado argumentos médicos, históricos e literários. Comportamento temerário o deste senhor, diagnosticando-me publicamente sem nunca me ter visto mais gordo pessoalmente.

Após alguns anos, meu médico realizou a revisão diagnóstica, a partir de minha resposta a tratamentos e da evolução de meu universo existencial. Nunca sofri de esquizofrenia nem de epilepsia.

Relato tais assuntos pessoais a propósito das barbaridades diagnósticas que são ventiladas pela mídia a cada vez que ocorre um crime de natureza psicopatológica. Nessas ocasiões, jornalistas, advogados, certos terapeutas e psiquiatras, assim como curiosos diversos, arrogam-se o direito de diagnosticar à distância esquizofrenias, outros transtornos mentais, transtornos de personalidade ou inclusive dependências químicas como se fossem bicho-do-pé. Olhou, diagnosticou. Ouviu falar, diagnosticou. Ainda que hoje grande parte dos médicos da cidade não saiba mais diagnosticar bicho-do-pé.

Tudo isso vem a propósito dos diagnósticos que se cogitam a distância, pelo simples noticiário, a cada vez que surge em pauta um crime psicopatológico, como esse do estudante de Medicina, de que ainda tanto se fala.

Não há pesquisas no Brasil sobre crime e doença mental. Estudos internacionais indicam que os índices de criminalidade entre portadores de doenças mentais não é maior do que entre a população em geral, como, ao meio de tanta balbúrdia, têm reafirmado inúmeros psiquiatras clínicos de renome, em competentes artigos, entre os quais vale citar os professores Wagner Gattaz, da USP, Ronaldo Laranjeira, da Unifesp, e Eduardo Iacoponi, da Santa Casa de São Paulo.

Entretanto, a cada vez que ocorre um crime de natureza psicopatológica, a mídia em geral dá grande cobertura ao fato, o que gera variados efeitos negativos para a sociedade, inclusive a catalisação de novos crimes, como já comentei em trabalhos anteriores (Jornal da Tarde, 16/01/99 e 27/11/99, http://www.jt.com.br/noticias/99/01/16/ar1.htm e http://www.jt.com.br/noticias/99/11/27/ar1.htm ), assim como no site Oficina de Informações em 22/05/99 ( http://www.oficinainforma.com.br/semana/leituras-990522/5.htm ) e na Revista Videtur (no prelo, Videtur 11, págs. 47/54, Jan. 2000, Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP/Editora Mandruvá, São Paulo http://www.hottopos.com ).

A respeito do efeito multiplicador/reprodutor que a mídia exerce nessa natureza de crimes, já tenho realizado análises indicando que "reportagens que levianamente continuam propiciando a um criminoso hediondo (após sua captura) a mesma notoriedade, ou maior, do que a que é dada a políticos, artistas ou esportistas são potencialmente catalisadoras de novas ondas de crimes patológicos" (JT 16/11/99), tese que infelizmente vi comprovar-se verdadeira ao analisar como os crimes da Praia do Cassino foram frutos da reverberação pela mídia dos crimes do Parque do Estado (Oficina de Informações, 22/05/99).

No bojo de coberturas noticiosas desta natureza, realizadas com extremo sensacionalismo por amplos setores da mídia, leigos e especialistas emitem, de orelhada, diagnósticos a respeito de pessoas que nunca viram pela frente. Isso não faz nenhum sentido. Trata-se de um comportamento irresponsável, antiprofissional e nocivo à sociedade como um todo, além de disseminador de preconceitos e de desinformação.

Os próprios especialistas, psiquiatras forenses especialmente, mas também os clínicos, sob certo aspecto, têm uma visão restrita e viciada das doenças mentais. Psiquiatras forenses convivem demasiadamente com o mínimo grupo dos doentes mentais criminosos, enquanto os clínicos convivem com os portadores de doenças mentais especialmente em seus momentos críticos e de doença, sem ter a plena percepção de seu lado saudável, socialmente construtivo e valoroso.

Há um ponto comum da violência entre os portadores de doenças mentais e os médicos ou estudantes de medicina.

Ambos pertencem a grupos sociais que apresentam índices de suicídio maiores do que os que se verificam entre a população em geral. Isto justificaria que alguém dissesse que o crime do shopping verificou-se porque o criminoso era estudante de medicina?

Muitos crimes violentos têm ocorrido entre estudantes de medicina. Isso justificaria que se disseminassem preconceitos contra os médicos em geral? Então por que o despudor de descaradamente manter e ampliar preconceitos contra portadores de doenças mentais?

Recusamos o papel de bodes expiatórios de uma sociedade violenta em si mesma e repudiamos os que nos queiram manter nessa posição.

L. F. Barros

Educador, escritor, presidente do Projeto Fênix –

Associação Nacional Pró-Saúde Mental e coordenador

nacional dos Psicóticos Anônimos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Dez 1999
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