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Ciclo reprodutivo e transtornos mentais no século XIX

Memória

Ciclo reprodutivo e transtornos mentais no século XIX

Questões referentes à fisiologia e à doença mental na mulher e suas conexões com o ciclo reprodutivo e o climatério ganham projeção no pensamento médico a partir de meados do século XIX.1 Começando pela normatização crescente do corpo feminino e suas funções, a medicina do século XIX tratará de disciplinar progressivamente a vida afetiva, sexual e moral da mulher.2 Para isso, alguns paradigmas da condição feminina são especialmente desenvolvidos e incrementados nesse período: a "mãe", guardiã do lar e das continuidades sociais e biológicas; a "prostituta", encarnação do feminino como depravada lassidão; a "ninfomaníaca", símbolo da perigosa voracidade sexual feminina; e a "histérica", reveladora da extrema instabilidade e fragilidade nervosa constitucional da mulher.

O artigo3 aqui apresentado em trechos, publicado originalmente em 1849 por Noronha Feital no prestigioso Annaes de Medicina Brasiliense, revela concepções médicas e sociais emblemáticas sobre a mulher, sua sexualidade, seu funcionamento mental e possíveis desarranjos associados ao climatério.

De 1849 para os dias atuais, algumas coisas mudaram para as mulheres no ocidente com o ingresso em mercados de trabalho antes exclusivamente masculinos, com o acesso à educação, com a disponibilidade de meios anticoncepcionais e com a conquista de direitos políticos, produto de embates muitas vezes heróicos dos movimentos feministas. Tudo isso criou um novo contexto, exigindo que o saber sobre a mulher, seu ciclo reprodutivo e sexualidade, seus possíveis transtornos e sofrimentos passassem a ser também estudados e debatidos pelas maiores interessadas.

Resta ainda, entretanto, a pergunta: exatamente quanto, como e em que sentido mudou o trato que a ciência psiquiátrica dá à mulher e seus possíveis adoecimentos mentais?"Chegada a época em que as regras têm de cessar, a mulher perde a faculdade de conceber e passa a viver só para si, enquanto que, até então, existia como que para a espécie, por isso que se ocupava de sua propagação.

Trechos dos Annaes de Medicina Brasiliense

(...) a gordura se amontoa e o corpo se duplifica ou esvai-se em breve e só deixa pele, e sempre lá ficam as carnes moles e flácidas, a lentidão dos movimentos e a perda da atividade, e a velhice, marcando rugas, avizinha-se, caminhando com todo o seu grande séquito.

Não é, porém, só o físico da mulher que sofre mudança: seu estado moral compartilha da revolução. De ordinário, a mulher esquece-se de todos os cuidados com o alinho em que tanto se esmerava; larga os

meneios de que se armava para atrair e, mais, não pensa em chamar sobre si as vistas dos homens. Apenas então cuida em guardar certa dignidade e reserva e, trocando o amor pelo respeito e amizade, contenta-se em manter o sossego doméstico, ser o refrigério do marido e a ter a doce consolação de mitigar suas penas e de ser a providência posta em frente de toda a família.

Algumas se encontram (sic) que então deixam a educação dos filhos e os cuidados da casa para ocupar-se da literatura ou política; outras têm aparecido que propendem para a devoção e gostam de ostentar sua caridade e religião; mas poucas por ora dessa espécie são entre nós conhecidas. Não é raro também se ver umas outras que com arrebiques e cosméticos procuram ainda conservar formas gamenhas e destarte ocultar os estragos que o tempo há feito, mas essas ridículas presumidas assim tornam-se o objeto do escárnio público. Míseras que supõem enganar e que se enganam! A mão do Eterno marcou-lhes o prazo e o atrativo dos prazeres não pode continuar a existir quando eles tornam-se infrutíferos!

A mulher tem por apanágio o temperamento nervoso: especialmente as que habitam as grandes cidades e cortes, as que cultivam a música e a dança, freqüentam teatros, bailes, etc. gozam desse temperamento. E é a ele que o sexo deve em geral sua grande sensibilidade, que o torna tão impressionável; é ele que lhes dá essa mobilidade que as caracteriza e que as torna rapidamente alegres e tristes, vivas e melancólicas. Nelas sobrevêm congestões cerebrais, delírios, hipocondria, histerismos, ninfomas, síncopes, convulsões e movimentos espasmódicos de toda a espécie. É, portanto, de primeira obrigação evitar tudo que possa entreter a excitabilidade desse sistema.

É por isso que, quando chegue a época triste, devem as mulheres (...) deixar-se de certas leituras e espetáculos, devem abandonar os bailes e os perfumes, retirar-se das cidades para o campo, usar banhos tépidos ou frios, fazerem exercícios, tomarem alimentos de fácil digestão e sem condimentos, e abster-se de toda a paixão amorosa. (...) Convém mesmo que façam suprir a função terminada, se sofrer grave incômodo, pelo emprego das sangrias de pé e sanguessugas à vulva. (...) A dieta de vegetais, a saída para o campo, os banhos correntes, o uso de laxantes e sanguessugas ao ânus são de grande proveito.

Enfim, terminamos dizendo (...) a não cohabitação, o uso de roupas pouco apertadas e de banhos apropriados, o não freqüentar reuniões, que, além de outros efeitos, viciam o ar respirável, o respeito aos hábitos e a substituição da função a terminar são em geral os meios que convêm à mulher para sofrer sem inconvenientes as mudanças que nela tem de operar à cessação das regras.

Ana Maria Raimundo Oda e Paulo Dalgalarrondo

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

Referências

1. Skultans V. Madness and morals: ideas on insanity in the nineteenth century. London: Routledg & Kegan Paul; 1975.

2. Rohden F. O imaginário sobre a mulher através do olhar da medicina no século XIX. Cadernos IPUB 1997;8:129-47.

3. Feital JMN. Meios próprios para dispor a economia da mulher a sofrer sem prejuízo as mudanças que ocasionam a cessação das regras. Ann Med Brasiliense 1849;4(12):291-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Mar 2000
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