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Estatística em psiquiatria

Statistics in psychiatry

Resumos

Este artigo apresenta os paradigmas do processo de pesquisa que utilizam a análise de dados. Indica como os avanços da computação influíram no processo, permitindo a análise de sistemas complexos. Na psiquiatria, são indicadas algumas áreas onde a estatística tem papel importante e como a colaboração entre psiquiatras e estatísticos pode ser implementada.

Ensaios clínicos; Epidemiologia; Estatística Bayesiana; Análise multivariada; Metodologia de pesquisa; Mineração de dados


This paper presents the paradigms of data analysis-based research work. It shows how the advances in computer sciences have influenced this process, allowing complex systems to be modeled and analyzed. Some fields in psychiatry where statistical analyses are important are assessed, and suggestions are given on how to improve the collaboration between psychiatrists and statisticians.

Clinical trials; Epidemiology; Bayesian statistics; Multivariate analysis; Research methodology; Data mining


a10v23n3

Atualização

Estatística em psiquiatria

Statistics in psychiatry

Basilio de Bragança Pereira

Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva da UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Este artigo apresenta os paradigmas do processo de pesquisa que utilizam a análise de dados. Indica como os avanços da computação influíram no processo, permitindo a análise de sistemas complexos. Na psiquiatria, são indicadas algumas áreas onde a estatística tem papel importante e como a colaboração entre psiquiatras e estatísticos pode ser implementada.

Descritores: Ensaios clínicos. Epidemiologia. Estatística Bayesiana. Análise multivariada. Metodologia de pesquisa. Mineração de dados.

ABSTRACT

This paper presents the paradigms of data analysis-based research work. It shows how the advances in computer sciences have influenced this process, allowing complex systems to be modeled and analyzed. Some fields in psychiatry where statistical analyses are important are assessed, and suggestions are given on how to improve the collaboration between psychiatrists and statisticians.

Keywords: Clinical trials. Epidemiology. Bayesian statistics. Multivariate analysis. Research methodology. Data mining.

Introdução

Estatística e pesquisa científica

No século XX, a concepção de ciência foi estabelecida pelo aprendizado adquirido com a experimentação e a observação de dados; por ele, a procura das causas e das leis traduz-se em um processo iterativo de observação do real, da realização de experimentos verificativos e da avaliação quantitativa dos fenômenos em estudo. Uma hipótese inicial leva a um processo de dedução de certas conseqüências que são comparadas com os dados. Quando as conseqüências e os dados falham em concordar, as discrepâncias levam, por um processo de indução, a modificar a hipótese (Figura).


Uma parte do conhecimento adquirido é uma mera descrição do que se observa; a parte mais importante é a generalização ou a indução, que consiste em fazer inferências de experiências passadas para predizer futuras observações.

O paradigma da estatística nesse contexto é constituir o conjunto unificado de métodos e de padrões de trabalho no planejamento e na análise dos experimentos.

No final do século XX, o progresso na computação e o advento de novos sistemas computacionais mudaram a natureza dos dados e as possibilidades para sua análise. Novos métodos associados ao grande volume de dados e à possibilidade de modelar sistemas complexos criaram um novo paradigma: a exploração de grande volume de dados para sugerir uma teoria; isto é, o sentido inverso do outro paradigma. O novo paradigma tem sido denominado "mineração de dados" (data mining). Têm-se então:

  • paradigma I – "Estatística: teoria em busca de dados confirmatórios";

  • paradigma II – "Data mining: dados em busca de uma teoria".

Ambos os paradigmas devem ser utilizados na busca de conhecimento, traduzida na equação:1Conhecimento incerto + Conhecimento da quantidade de incerteza no mesmo = conhecimento útil.

Em qualquer área, o cientista utilizava modelos que poderiam ser conceituais, físicos ou matemáticos e experimentos que poderiam ser in vitro ou in vivo. Os avanços na computação adicionam a essa situação modelos computacionais e experimentos in silício (simulações, soluções numéricas etc.).

Recentes trabalhos mostram o papel dos métodos estatísticos e de modelos na pesquisa científica no paradigma I2 e uma introdução ao data mining.3

No caso do paradigma I, o psiquiatra até poderia trabalhar com um estatístico com pouco conhecimento da doença, desde que reconheça que a tarefa do estatístico não começa quando a investigação já está terminada, mas bem antes do trabalho se iniciar.

No caso do paradigma II, a iteração tem de ser bem maior. O estatístico tem de ser um conhecedor dos problemas associados à doença em estudo, e o psiquiatra ter conhecimento dos potenciais e das limitações da análise de dados.

Epidemiologia psiquiátrica4-6

Psiquiatria é uma área médica bastante ampla, cobrindo doenças e desordens que afetam a maioria dos aspectos da vida do paciente, incluindo funcionamento físico, comportamento, emoções, pensamentos, percepção, relações interpessoais, sexualidade, trabalho e recreação.

Nos últimos 50 anos, o campo da epidemiologia psiquiátrica se tornou uma área importante. Embora já existissem registros em hospitais psiquiátricos, inicialmente a área era dominada por sociólogos e psiquiatras sociais e se concentrava em levantamentos residenciais para estudos de prevalência. Nesse período, desenvolveram-se bases empíricas de diagnóstico.

Um segundo avanço importante ocorreu com o desenvolvimento de novos medicamentos e, mais recentemente, com os avanços na genética.

Essas pesquisas e levantamentos possibilitaram conhecer a amplitude das desordens psiquiátricas na comunidade e a quantidade de casos não tratados das principais desordens mentais.

Estudos familiares sugeriram que, além de fatores biológicos e ambientais, fatores genéticos estão relacionados a um aumento de risco, cujo grande exemplo é a esquizofrenia. Parece que a maioria dos problemas mentais envolve uma mistura complexa de influências genéticas e ambientais, interagindo de forma não-linear e não-aditiva.

O desenvolvimento de análises estatísticas para entender os efeitos de interação social, de grupos e de riscos individuais, bem como os avanços estatísticos na área da genética, dos bioensaios e DNA e nos dados longitudinais e multivariados, serão ferramentas poderosas para o psiquiatra. Fatores de risco como abuso na infância, perdas, traumas, gênero, complicações obstétricas poderão ser melhor mensurados.

Será útil ter medidas contínuas dos sintomas e da incapacitação, além das categorias de diagnósticos em casos e não-casos.

Estatísticos trabalhando em epidemiologia psiquiátrica freqüentemente se confrontam com problemas raros em outras áreas. Os problemas variam desde falta de marcadores, utilização de relatos de informantes ou auto-relatos de considerável imprecisão até uso freqüente de métodos estatísticos multivariados com utilização de variáveis latentes.

Um problema a ser melhor entendido é a diferença entre as prevalências encontradas nos estudos epidemiológicos e as da prática clínica psiquiátrica, como casos de pacientes com fobias e/ou outras doenças mentais que não procuram tratamento.

O recente estudo7 sobre a associação entre criatividade e psicopatologia com o exame de biografias póstumas de 291 artistas, compositores, políticos, escritores, pensadores e cientistas dá uma idéia da dimensão do problema, já que essa amostra não deve diferir muito da população em geral. Os dados são apresentados na Tabela.

Será que as pequenas prevalências na clínica são devidas a desconhecimento e/ou preconceito na busca de tratamento psiquiátrico? Será que medidas de fiscalização profissional como a dos EUA (onde a prática da psicanálise só pode ser exercida por médicos com especialização em psicologia, por profissionais de saúde – enfermeiros, paramédicos – com M.Sc. em psicologia e por profissionais com Ph.D. em psicologia) evitaria que terapias fossem utilizadas em lugar de tratamento psiquiátrico adequado (diminuindo a observação clínica)?

Ensaios clínicos8

Uma importante informação em qualquer ensaio é a determinação da natureza da doença a ser investigada. Na maioria das especialidades médicas, isto requer a identificação dos pacientes que podem ter a doença e nos quais o diagnóstico é confirmado por exames físicos, hematológicos, bioquímicos, microscopia, patologia, raio-X, scaner e uma quantidade cada vez maior de técnicas sofisticadas.

Esse processo não ocorre na psiquiatria. Nela geralmente há poucos testes confirmatórios, e quase nenhum equipamento sofisticado pode vasculhar profundamente o sistema nervoso e a psique para produzir uma gama de parâmetros e imagens com a resposta definitiva.

Diagnósticos psiquiátricos podem ser confirmados por uma segunda ou terceira opinião, porém, além disso, não há mecanismo para estabelecer julgamentos irrefutáveis.

A necessidade de padronizar práticas clínicas e de pesquisa levou psiquiatras a desenvolver padrões de avaliação, algoritmos e escalas de pontuação.

Em ensaios clínicos, instrumentos e escalas são usados para screening, diagnóstico, classificação, diagnóstico diferencial, predição de resposta, nível de severidade e verificação de mudança.

A validação e o estudo das propriedades desses instrumentos e escalas e a análise de concordância de diagnósticos requerem a utilização de métodos estatísticos. Além disso, a divulgação dos resultados requer a publicação em revistas, cujos editores utilizam a opinião de estatísticos. Nesse particular, é necessário diminuir a dependência crônica no p-valor, bem como o fanatismo no uso da aleatoriedade e dos placebos. Estatísticos Bayesianos podem oferecer o conselho necessário para isto, não só indicando formas alternativas e convenientes de apresentar os resultados como também na etapa do planejamento do ensaio.9-12.

O psiquiatra que buscar aconselhamento já com os dados coletados e o experimento realizado em geral só obterá do estatístico um atestado de óbito do ensaio.

Interação e treinamento9,13-16

Algumas áreas em que psiquiatras usam técnicas estatísticas sofisticadas, e progressos ainda devem ser feitos, são:

  • classificação do doente mental. Pesquisadores têm usado análise fatorial, análise discriminante, análise de conglomerados, redes neurais, visualização de dados multivariados em um esforço para melhorar os critérios de diagnóstico9,13,14 e para determinar se ela é de particular interesse ou se é categórica ou dimensional;

  • aumento no uso de regressão logística, modelos log-lineares e equações estruturais, bem como técnicas multivariadas como: componentes principais, análise fatorial, de correspondência, de correlação canônica, de conglomerados, de escalonagem multidimensional etc.;

  • utilização de duas ou três opiniões para o diagnóstico requer métodos para mensuração de concordância entre opiniões;

  • análise de sobrevida para determinar o prognóstico de pacientes sob terapia;

  • problema de riscos competitivos em dados longitudinais;

  • cuidados com viés de seleção. Um exemplo foi a discordância de Manfred Bleurer sobre a cronicidade da esquizofrenia defendida por seu pai Eugene Bleurer;

  • maior utilização da Inferência Bayesiana17,18 e de técnicas de data mining.19

Para o desenvolvimento de pesquisas, não só o psiquiatra deve ter um conhecimento de certos conceitos como p-valor, significância, intervalos de confiança, bem como o estatístico precisará ficar familiarizado com termos como sintomas positivos e negativos, córtex visual, arranjos de eletrodos implantados, fantasmas etc.

A tradição de cursos de 10 ou 20 aulas de estatística elementar para psiquiatras não é satisfatória;15 possivelmente seriam melhores quatro ou cinco aulas diferenciando estatística descritiva de inferência estatística, entre estudos experimentais e observacionais, e uma introdução à metodologia de pesquisa e aos testes de hipóteses. Em seguida, a solução de problemas em computador e, finalmente, um trabalho final envolvendo planejamento e análise de um pequeno estudo.

No entanto, a formação de estatísticos tem sido objeto de interesse de universidades como Carnegie Mellon e Columbia, onde programas de estatística psiquiátrica são oferecidos para estatísticos em pós-doutoramento. Esses programas certamente colaboram para a qualidade da consultoria estatística na área e na qualidade da pesquisa e na prática da psiquiatria.

Algo muito semelhante deve ser iniciado no Brasil, para que a colaboração e a integração sejam incentivadas e aumentadas.

Correspondência

Basilio de Bragança Pereira

Cidade Universitária, CCS, Bloco K, Cx. Postal 68037

21944-970 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Tel./fax: (0xx21) 2270-0097

Tel.: (0xx21) 2562-6202

E-mail: Basilio@nesc.ufrj.br

Fonte de financiamento e conflito de interesses inexistentes.

Recebido em 20/11/2000. Revisado em 20/2/001. Aceito em 12/3/2001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2001
  • Data do Fascículo
    Set 2001

Histórico

  • Aceito
    12 Mar 2001
  • Revisado
    20 Fev 2001
  • Recebido
    20 Nov 2000
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