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Utilização do agonista dopaminérgico pergolida no tratamento da "fissura" por cocaína

Use of the dopaminergic agonist pergolide in the treatment of cocaine craving

Resumos

OBJETIVOS: O estudo avaliou a eficácia e a segurança terapêutica do agonista dopaminérgico pergolida no tratamento ambulatorial da ''fissura" por cocaína. MÉTODOS: Participaram de estudo controlado simples-cego, com duração de quatro semanas, em tratamento ambulatorial, 42 pacientes do sexo masculino com idade entre 18 e 50 anos, com diagnóstico de dependência de cocaína pelo DSM-IV e primeiro grau completo. Transtornos clínicos e/ou psiquiátricos que necessitassem de internação, uso de medicação psiquiátrica, quadros psicóticos prévios independentes do consumo de cocaína e hipersensibilidade à pergolida foram critérios de exclusão. Os pacientes foram divididos aleatoriamente em dois grupos: o primeiro recebeu pergolida (0,05-0,2 mg ao dia), e o segundo, placebo (1 a 4 comprimidos ao dia). Os grupos foram comparados quanto à ''fissura'' por cocaína e aos efeitos colaterais das medicações. RESULTADOS: Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos em relação à incidência de efeitos colaterais ou ao relato da redução da ''fissura'' por cocaína. CONCLUSÃO: A amostra pequena e o uso de medicação por tempo curto podem ter influído nos resultados. A pergolida se mostrou segura, com poucos efeitos colaterais. A pergolida não se mostrou superior ao placebo no tratamento da "fissura" por cocaína.

Cocaína; Sintomas de abstinência; Agonista de dopamina; Pergolida


OBJECTIVE: To evaluate the efficacy and safety of the dopaminergic agonist pergolide in the treatment of cocaine craving. METHODS: Forty-two men, aged between 18 and 50 years, with diagnosis of cocaine dependence according the DSM-IV criteria, and who have at least completed elementary school were assigned for a four week, single-blind, placebo controlled study in an outpatient setting. Patients with disorders that required inpatient treatment, taking psychiatric medication, referring previous psychotic disorders without cocaine use, and with history of pergolide hypersensitivity were excluded. The patients were divided in two groups: the first one received pergolide (0.05-0.2 mg per day) and the second one received placebo (1-4 tablets per day). The groups were compared for differences in cocaine craving and side effects of the medications. RESULTS: There were no differences between the two groups regarding the incidence of side effects and reduction of cocaine craving. CONCLUSION: The small sample size and the short period of medication use could have contributed to the findings. Pergolide use proved to be safe with low incidence of side effects. Pergolide was not superior to placebo in the treatment of cocaine craving.

Cocaine; Withdrawal symptoms; Dopaminergic agonists; Pergolide


artigo original

Utilização do agonista dopaminérgico pergolida no tratamento da "fissura" por cocaína

Use of the dopaminergic agonist pergolide in the treatment of cocaine craving

Guilherme R de Azevedo Focchia, Marcos da C Leiteb e Sandra Scivolettoc

aDepartamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP). São Paulo, SP, Brasil. bSecretaria Nacional Antidrogas (Senad). Brasília, DF, Brasil. cGrea (Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FM/USP). São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

OBJETIVOS: O estudo avaliou a eficácia e a segurança terapêutica do agonista dopaminérgico pergolida no tratamento ambulatorial da ''fissura" por cocaína.

MÉTODOS: Participaram de estudo controlado simples-cego, com duração de quatro semanas, em tratamento ambulatorial, 42 pacientes do sexo masculino com idade entre 18 e 50 anos, com diagnóstico de dependência de cocaína pelo DSM-IV e primeiro grau completo. Transtornos clínicos e/ou psiquiátricos que necessitassem de internação, uso de medicação psiquiátrica, quadros psicóticos prévios independentes do consumo de cocaína e hipersensibilidade à pergolida foram critérios de exclusão. Os pacientes foram divididos aleatoriamente em dois grupos: o primeiro recebeu pergolida (0,05-0,2 mg ao dia), e o segundo, placebo (1 a 4 comprimidos ao dia). Os grupos foram comparados quanto à ''fissura'' por cocaína e aos efeitos colaterais das medicações.

RESULTADOS: Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos em relação à incidência de efeitos colaterais ou ao relato da redução da ''fissura'' por cocaína.

CONCLUSÃO: A amostra pequena e o uso de medicação por tempo curto podem ter influído nos resultados. A pergolida se mostrou segura, com poucos efeitos colaterais. A pergolida não se mostrou superior ao placebo no tratamento da "fissura" por cocaína.

Descritores: Cocaína. Sintomas de abstinência. Agonista de dopamina. Pergolida.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To evaluate the efficacy and safety of the dopaminergic agonist pergolide in the treatment of cocaine craving.

METHODS: Forty-two men, aged between 18 and 50 years, with diagnosis of cocaine dependence according the DSM-IV criteria, and who have at least completed elementary school were assigned for a four week, single-blind, placebo controlled study in an outpatient setting. Patients with disorders that required inpatient treatment, taking psychiatric medication, referring previous psychotic disorders without cocaine use, and with history of pergolide hypersensitivity were excluded. The patients were divided in two groups: the first one received pergolide (0.05-0.2 mg per day) and the second one received placebo (1-4 tablets per day). The groups were compared for differences in cocaine craving and side effects of the medications.

RESULTS: There were no differences between the two groups regarding the incidence of side effects and reduction of cocaine craving.

CONCLUSION: The small sample size and the short period of medication use could have contributed to the findings. Pergolide use proved to be safe with low incidence of side effects. Pergolide was not superior to placebo in the treatment of cocaine craving.

Keywords: Cocaine. Withdrawal symptoms. Dopaminergic agonists. Pergolide.

INTRODUÇÃO

Dependentes de cocaína que procuram tratamento geralmente apresentam algumas particularidades, como compulsão para uso da droga, tolerância e sintomas de abstinência, com tentativas infrutíferas de parar o uso e prejuízo global em seu funcionamento. A abstinência de cocaína caracteriza-se por disforia, anedonia, ansiedade, irritabilidade, fadiga, sonolência, agitação, compulsão, até ideação suicida, podendo durar de 2 a 4 dias ou mesmo semanas ou meses.1

A cocaína apresenta algumas características diferenciais em relação a outras drogas de abuso, como a intensa propriedade de reforço do consumo em animais de laboratório, associada à sintomatologia de abstinência.2 Apesar de os sintomas da abstinência de cocaína ser pouco específicos, o potencial de reforço parece ser responsável pelo intenso desejo de consumo na abstinência, chamado no meio psiquiátrico de "fissura" (craving, em inglês), que pode ser fonte de novas recaídas.2

Fato é que a abstinência de cocaína, em si, não requer tratamento, pois muitos de seus sintomas são pouco específicos e não vitais; porém, por aumentar o risco de recaída, a ''fissura" originada pela interrupção do uso da droga justifica o emprego de agentes específicos no tratamento da abstinência. Logo, nessa terapia, o ideal é a utilização de meios que possibilitem a redução da "fissura".3

O desenvolvimento de estudos científicos voltados para a eficácia de medicações que atuam na redução da "fissura" por cocaína teve início somente em princípios da década de 1980, quando ficou claro que as terapêuticas vigentes para a abstinência de cocaína eram ineficazes e que os quadros relacionados ao abuso de cocaína alcançavam proporções epidêmicas.3 Diversos agentes farmacológicos, incluindo antidepressivos tricíclicos, carbamazepina e agonistas dopaminérgicos, foram testados com resultados conflitantes.4-6

O substrato de ação da cocaína é o bloqueio da recaptura de dopamina, levando a uma potencialização inicial da atividade desse neurotransmissor nos receptores pós-sinápticos. Entretanto, o bloqueio prolongado da recaptura, causado pelo uso crônico, acarreta a depleção dopaminérgica, tendo como conseqüência uma supersensibilização de receptores dopaminérgicos pós-sinápticos e hipofunção dopaminérgica, podendo levar à ''fissura" e, portanto, à readministração da droga.3 Essa é a justificativa para o emprego de agonistas dopaminérgicos no tratamento da dependência de cocaína.

A pergolida é um agonista dopaminérgico, usado no tratamento da doença de Parkinson.7,8 É derivado sintético do ergot, apresentando a propriedade de agonista dopaminérgico de receptores D1 e D2 pós-sinápticos, tendo maior especificidade sobre receptores dopaminérgicos D1.8,9

A pergolida seria responsável pela dessensibilização das áreas do sistema nervoso central envolvidas na dependência de cocaína (a exemplo da área tegmental ventral), porque, teoricamente, reduziria os receptores dopaminérgicos pós-sinápticos nesses locais aumentados na vigência do uso crônico de cocaína; isto diminuiria a possibilidade de ativação dos circuitos envolvidos na dependência e, portanto, a "fissura".10 A pergolida atuaria também como substituto menos tóxico da cocaína em áreas envolvidas no reforço do consumo (sistemas mesolímbico e mesocortical).3

A pergolida é mais seletiva, tem ação mais duradoura que a levodopa e é 10 a 100 vezes mais potente que a bromocriptina, o agonista dopaminérgico mais usado em estudos enfocando o tratamento da dependência de cocaína.8,11,12 Essa substância, sob a forma de mesilato da pergolida, é rapidamente absorvida por via oral, aparecendo no plasma entre 15 e 30 minutos após sua ingestão; tem meia-vida plasmática de 15 a 42 horas; cerca de 90% dessa substância permanece ligada a proteínas plasmáticas.13 A pergolida é metabolizada no fígado, e não há evidência de metabólitos ativos.14

Efeitos colaterais da pergolida incluem hipotensão ortostática, discinesia, alucinações, fibrose retroperitoneal e pleuropulmonar, vasoespasmo digital, náuseas e rinite. A interrupção abrupta do uso da pergolida pode cursar com alucinações e confusão mental, não havendo relatos de abuso dessa substância.13

São poucos os estudos que enfocam o uso da pergolida no tratamento da abstinência de cocaína com resultados controversos; esses estudos foram realizados com amostras pequenas e com curto tempo de uso da medicação.7,9,15-18 Um primeiro estudo, utilizando pergolida em 21 pacientes dependentes de cocaína, mostrou redução da ''fissura" em 16 deles na dose de 0,05 mg a 0,15 mg ao dia.9 Em outro estudo com 41 pacientes internados, a pergolida foi mais efetiva que a bromocriptina na redução da "fissura" por cocaína.7 Em pesquisa visando investigar os efeitos colaterais da pergolida, encontraram-se efeitos colaterais, sobretudo gastrointestinais, em apenas 8 de 235 pacientes, concluindo-se que a pergolida é medicação segura.15 Entretanto, avaliação em usuários de cocaína internados que receberam pergolida na dose de 0,05 mg ao dia mostrou aumento da ''fissura".16 Estudo duplo-cego com 28 pacientes, usando pergolida até 0,5 mg ao dia, e outro mais recente, também de desenho duplo-cego com 466 pacientes, não mostraram vantagem no uso da pergolide sobre o placebo no tratamento da dependência de cocaína.17,18

Assim, persistem dúvidas sobre a utilização da pergolida no tratamento da abstinência de cocaína, sendo que essa área carece de pesquisas. Se comprovados os efeitos na redução da ''fissura", a pergolida poderia auxiliar na terapêutica, principalmente nas fases iniciais, dos quadros de dependência dessa droga.

Dessa forma, o objetivo do presente estudo é avaliar a eficácia e a segurança terapêutica do agonista dopaminérgico pergolida no tratamento da "fissura" por cocaína em regime ambulatorial.

MÉTODOS

Local de realização do estudo

O estudo foi desenvolvido em serviço de atendimento ambulatorial específico para dependentes de cocaína, denominado Intervenção Ambulatorial para Dependentes de Cocaína do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IAC-Grea-IPq-HC-FM/USP).

Critérios de inclusão e exclusão

Os critérios de inclusão foram: sexo masculino; idade entre 18 e 50 anos; diagnóstico de dependência de cocaína segundo os critérios da 4ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-IV) da Associação Psiquiátrica Americana;19 ter residência fixa na Grande São Paulo; primeiro grau completo (ou capacidade para responder a questionários para autopreenchimento); telefone para contato; e assinatura do termo de consentimento. Os critérios de exclusão foram: patologias clínicas e psiquiátricas que necessitassem de tratamento em regime de internação; uso de medicação psiquiátrica; quadros psicóticos prévios, independentes do consumo de cocaína; hipersensibilidade prévia a pergolida e/ou derivados do ergot.

Procedimentos

A amostra consistiu em 42 pacientes ¾ casos novos do IAC-Grea ¾, atendidos em semanas consecutivas no período de maio de 1998 a outubro de 1999. A duração do estudo, de desenho simples-cego, foi de quatro semanas, sendo os pacientes avaliados uma vez por semana. Saliente-se que o termo "simples-cego" significa, no caso, que os pacientes desconheciam o tratamento.

Os pacientes foram incluídos no estudo no dia de seu ingresso no ambulatório, logo após a primeira consulta clínica, sendo investigados a respeito dos critérios de inclusão e exclusão do estudo; receberam esclarecimentos sobre a pesquisa e assinaram o termo de consentimento, sendo divididos aleatoriamente, por sorteio, em dois grupos: pergolida (n=22) e placebo (n=20). Nem todos os pacientes estavam abstinentes, e todos foram orientados a ficar totalmente abstinentes já a partir da segunda consulta clínica. Durante o estudo, os pacientes participaram de seguimento médico e de psicoterapia de grupo.

O primeiro grupo recebeu pergolida desde a primeira consulta ambulatorial, em comprimidos de dose fixa (0,05 mg). Na primeira semana, cada paciente tomou um comprimido da medicação ao dia (0,05 mg/dia). Na segunda semana, a dose foi aumentada para dois comprimidos ao dia (0,1 mg/dia) e, assim, sucessivamente, até quatro comprimidos ao dia (0,2 mg/dia).9 A dose da medicação seria alterada ou mesmo suspensa caso ocorressem efeitos colaterais intoleráveis, como cefaléia, vômitos ou dores abdominais graves. Os pacientes foram orientados a tomar metade da dose prescrita pela manhã e metade à tarde.

O segundo grupo recebeu placebo seguindo o mesmo método de administração (um comprimido ao dia na primeira semana; dois comprimidos ao dia na segunda semana; até quatro comprimidos ao dia na quarta semana), sempre em duas tomadas, sendo que a dose poderia ser alterada ou mesmo suspensa no caso de efeitos colaterais intoleráveis.

Todos os pacientes foram convocados por telefone, entre 24 e 48 horas antes da consulta, como forma de reforçar o seguimento ambulatorial. Após quatro semanas, a medicação foi suspensa abruptamente. Essa conduta foi adotada por outros pesquisadores, não se observando aumento da incidência de efeitos adversos ou risco para os pacientes;14,20 os pacientes foram submetidos a uma última avaliação, no mesmo dia, dando-se então continuidade ao tratamento ambulatorial. Não foi avaliado o uso de cocaína durante o estudo, e não foi realizado seguimento pós-estudo.

Instrumentos de avaliação

Os pacientes foram avaliados, na primeira consulta, pela Escala de "Fissura'' por Cocaína de Minnesota (Anexo Anexo ). Essa escala tem, para avaliar a ''fissura", cinco itens, que podem ser usados independentemente.20 No caso, foi usada a primeira parte da escala, que pontua valores para a "fissura'' de zero (nenhuma) a dez (máxima), e que é preenchida pelos pacientes. Nas semanas subseqüentes, até o final do estudo, todos os pacientes foram reavaliados, acrescentando-se à avaliação a Escala de Efeitos Colaterais "UKU", que mostra efeitos colaterais sistêmicos que podem ocorrer, sendo originalmente empregada no uso de neurolépticos.21 As escalas empregadas foram traduzidas para o português, mas não validadas.

Análise estatística

A eficácia da pergolida foi avaliada segundo o relato da redução da ''fissura'' por cocaína; a segurança da pergolida foi avaliada quanto à incidência de efeitos colaterais. Os grupos foram comparados, quantitativamente, quanto à média de idade e intensidade média da "fissura'' durante a semana anterior, e qualitativamente, quanto a dados sociodemográficos e efeitos colaterais advindos do uso de pergolida ou do placebo.

Os dados foram analisados estatisticamente, usando-se os testes qui-quadrado de Pearson para as variáveis categóricas, os testes t de Student para a idade e a Prova de Mann-Whitney para as outras variáveis quantitativas. Testes t foram usados para comparar a média dos grupos a cada semana. O nível de significância considerado foi de 5%.

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pela Comissão de Normas Éticas e Regulamentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

RESULTADOS

Dados sociodemográficos e via de administração de cocaína

Os grupos foram caracterizados quanto a dados sociodemográficos (idade, raça, estado civil, naturalidade, escolaridade, ocupação) e quanto à via de administração de cocaína (inalada, fumada, endovenosa). Os grupos mostraram-se homogêneos, como pode ser observado na Tabela 1.

"Fissura" por cocaína

Pela Figura, nota-se que não houve aumento da "fissura'' nos dois grupos. Ao final do acompanhamento, notou-se diminuição da intensidade da ''fissura'', sendo a variação maior no grupo-controle. As diferenças entre os grupos, semana a semana, não foram consideradas estatisticamente significativas (p>0,3).


Efeitos colaterais

Os efeitos colaterais foram avaliados em relação ao número de pacientes que os apresentaram durante o estudo (n). Os mais freqüentes para os dois grupos, avaliados pela Escala de Efeitos Colaterais "UKU", foram cefaléia tensional, aumento da duração do sono, aumento da atividade onírica, ganho ponderal, sonolência e fadiga (Tabela 2). Não houve diferença estatisticamente significativa na incidência de efeitos colaterais nos dois grupos.

Cabe ressaltar que um paciente do grupo-controle abandonou o estudo por cefaléia intolerável, que teve início após a administração da medicação e que remitiu apenas após sua suspensão.

DISCUSSÃO

Atualmente, pode-se encontrar um número cada vez maior de estudos sobre utilização de psicofármacos no tratamento da dependência de cocaína, porém ainda sem resultados promissores.

Neste estudo, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas em relação à intensidade da "fissura'' por cocaína e aos efeitos colaterais entre os grupos pergolida e controle.

Na análise dos resultados apresentados no presente estudo, deve-se ter em mente que a amostra analisada foi pequena. Seria ideal que fossem usadas amostras maiores, no sentido de obter resultados mais próximos à significância estatística, caso a diferença entre os grupos estudados seja verdadeira. Entretanto, as amostras de estudos prévios, como já foi visto, são em geral pequenas; além disso, fundamentando-se nos resultados obtidos, não se justifica a expansão, no presente estudo, para amostras maiores. Adicionalmente, é conhecida a dificuldade em manter amostras maiores para esse tipo de estudo, já que a aderência de pacientes dependentes de cocaína ao tratamento é baixa, sendo freqüentes as faltas e o abandono de seguimento, razão pela qual foi feita a convocação prévia dos pacientes. Não foi avaliado o uso de cocaína durante a pesquisa, o que constitui outra limitação. Frise-se, porém, que este estudo é pioneiro no Brasil, podendo constituir um primeiro modelo para que a metodologia de pesquisa de agentes farmacológicos em dependência seja replicada.

A análise de dados demográficos mostrou que os grupos estudados eram homogêneos. Ainda assim, pode-se afirmar (com cautela) que diferenças mínimas no nível de escolaridade, mesmo que não significativas, poderiam influir no modo como cada participante entende cada pergunta que o médico lhe faz e, de certa forma, na maneira como são respondidos os questionários. Isso seria mais importante no caso de pacientes com escolaridade menor.

As diferenças quanto à via de administração de cocaína também devem ser levadas em conta, mesmo que não significativas, na formação de amostras. É sabido que a cocaína endovenosa e a fumada chegam mais rapidamente ao sistema nervoso central, podendo provocar alterações neurobiológicas imediatas ou mais rapidamente que a cocaína inalada;22 é possível que as alterações neurobiológicas ao longo do tempo para pacientes que usam cocaína por diferentes vias de administração sejam diferentes, podendo haver, assim, diferenças de resultado na aplicação de um tratamento farmacológico.22 Neste estudo, só havia usuários de cocaína fumada no grupo pergolida, o que pode ter diminuído uma eventual resposta a esse agonista dopaminérgico, analisando-se os dados do grupo como um todo. Isso fala a favor da seleção de amostras mais homogêneas.

No referente à redução da ''fissura'' por cocaína, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre as amostras estudadas. É possível que quatro semanas de acompanhamento seja período insuficiente para que alterações neurobiológicas necessárias para a redução da ''fissura'' tomem lugar ¾ a saber, a dessensibilização sistemática de receptores em áreas límbicas implicadas na dependência de cocaína. A dose máxima de pergolida usada nesse estudo foi de 0,2 mg ao dia por apenas uma semana, e esse tempo poderia ser prolongado para se avaliar melhor o efeito da pergolida sobre a "fissura".

É possível que, no processo de neuroadaptação cerebral, sede de processos biológicos em sua maioria desconhecidos, desenvolva-se, ao longo do tempo, tolerância à pergolida, que perderia seu efeito; essa mesma medicação poderia colaborar, se usada cronicamente, para a depleção dopaminérgica em sinapses límbicas, fenômeno observado no uso crônico de cocaína, ocasionando "fissuras'', em vez de reduzi-las, e atuando nesse momento como antagonista dopaminérgico.23 Além disso, a pergolida atuando em receptores dopaminérgicos D1 e D2 poderia ter efeitos diferenciais no uso de cocaína, a depender da dose e do tempo de uso da medicação.19 É possível também que a pergolida não tenha se mostrado superior ao placebo na redução da "fissura" porque é medicação que age apenas no sistema dopaminérgico, e a cocaína atua em vários sistemas de neurotransmissores.26

Estudos com doses maiores que 0,2 mg diários de pergolida não surtiram efeito em pacientes dependentes de cocaína.17,18 Além disso, estudos com duração maior que quatro semanas não mostraram vantagens do uso da pergolida na redução da ''fissura".17 Isto mostra que, se a redução da ''fissura'' é fundamental para que um fármaco tenha utilidade no tratamento da dependência de cocaína, levanta-se a questão do tempo necessário (e útil) do uso do fármaco no tratamento da dependência química, tanto no sentido da realização de estudos na área quanto no uso da farmacoterapia na prática clínica. Note-se que a eficácia de tratamentos em dependência química não é consensual, dependendo do critério adotado pelo avaliador (p. ex: tempo de abstinência, critério mais freqüente).

A medicação, seja ela pergolida ou placebo, pode ter sua utilidade como adjuvante, podendo colaborar para a abstinência, enquanto o paciente apreende as diretrizes do tratamento multidisciplinar.1 O uso da pergolida poderia, teoricamente, aumentar a ''fissura'', mas isto também não ocorreu, tendo em vista que, para ambos os grupos, a ''fissura'' não piorou ao longo do estudo.

Não foi encontrada diferença significativa em relação à ocorrência de efeitos colaterais entre os grupos pergolida e controle. Os efeitos colaterais encontrados, como aumento da duração do sono, ganho ponderal, sonolência, fadiga, déficit de memória e de concentração, podem não ser necessariamente efeitos colaterais, mas sim devidos à própria abstinência de cocaína, daí sua ocorrência nos dois grupos. Neste estudo, a pergolida se mostrou medicação segura, sendo que os efeitos colaterais mais freqüentemente encontrados, como cefaléia e náuseas, já haviam sido descritos previamente.9,13

É interessante notar que apenas um paciente abandonou o estudo por intolerância à medicação; este apresentou cefaléia intolerável que não cedeu com a redução do medicamento (no caso, o placebo). Com relação ao uso do placebo, a diversidade de efeitos colaterais encontrados, incluindo sua gravidade, pode ser conseqüência da expectativa de cada paciente a respeito do tratamento e da medicação que recebe. Frise-se que, no tocante à dependência química, o sucesso terapêutico é fortemente condicionado por expectativas do paciente a respeito do tratamento. Este procuraria uma "pílula mágica" que resolvesse imediatamente todos seus problemas e necessidades e que, assim, lhe permitisse a interrupção do uso da droga, e uma medicação que anulasse a vontade de usar a droga em curto prazo, atendendo ao imediatismo característico desses pacientes.24

As medicações usadas no tratamento da dependência química poderiam ter sua ação mediada por efeito placebo, o que seria obstáculo para a avaliação de sua real eficácia. Ainda assim, não há estudos abertos usando exclusivamente placebo no tratamento dessa doença.

Apesar de diversas tentativas terem sido feitas no sentido de desenvolver medicamentos eficazes para a dependência de cocaína, seu tratamento continua sendo essencialmente não-farmacológico, pois não se encontrou, até o momento, fármaco que atue nos múltiplos neurotransmissores em que a cocaína atua, como dopamina, noradrenalina e serotonina.25,26 A terapia de substituição com agonistas dopaminérgicos tem sido alvo de múltiplos estudos, com resultados contraditórios.9,27 Como já visto, a pergolida mostrou resultados controversos numa série de estudos.7,9,15-18 Estudos em ratos submetidos a agonistas dopaminérgicos D1 mostraram redução do uso de cocaína, ao contrário de agonistas dopaminérgicos D2, o que pode ser uma esperança na pesquisa de novos tratamentos com agonistas dopaminérgicos.28 Saliente-se que a pergolida tem mais especificidade sobre receptores D1, mas o efeito verificado em ratos não se repetiu em humanos.9

O presente estudo não mostrou vantagens do uso da pergolida em relação ao placebo, no sentido de reduzir a intensidade da "fissura'' por cocaína, em acordo com outros trabalhos.16-18

Finalmente, são necessários mais estudos duplo-cegos com outros tipos de drogas que não necessariamente atuem no sistema dopaminérgico, que possam auxiliar no tratamento da dependência de cocaína. Isto poderia fomentar a compreensão dos mecanismos neurobiológicos de ação da cocaína no sistema nervoso central.

CONCLUSÕES

O agonista dopaminérgico pergolida não se mostrou superior ao placebo na redução da "fissura'' por cocaína, apesar de ter se mostrado medicação segura.

Correspondência

Guilherme Rubino de Azevedo Focchi

Rua Napoleão de Barros, 167, Vila Clementino

04024-000 São Paulo, SP, BrasilTel.: (0xx11) 5571-2569/ 3873-0517

Fax: (0xx11) 5575-9251

Recebido em 7/2/2001. Revisado em 4/5/2001. Aceito em 4/6/2001.

Trabalho subvencionado pela Fapesp (Processo nº 01210-7/98).

Conflito de interesses inexistente.

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Anexo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2002
  • Data do Fascículo
    Dez 2001

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2001
  • Revisado
    04 Maio 2001
  • Aceito
    04 Jun 2001
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