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A utilização da espectroscopia de lítio por ressonância magnética (7Li-MRS) no transtorno bipolar

A utilização da espectroscopia de lítio por ressonância magnética (7Li-MRS) no transtorno bipolar

Beny Lafere José Antonio de MS Amaral

Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

INTRODUÇÃO

A espectroscopia por ressonância magnética (MRS) permite uma análise in vivo e não-invasiva da bioquímica do cérebro humano. Há um número limitado de núcleos sensíveis à MRS, com utilidade para a medicina clínica. Entre eles, o hidrogênio (1H), o fósforo (31P), o flúor (19F), o carbono (13C) e o lítio (7Li).

O importante papel do lítio no tratamento dos transtornos afetivos e, particularmente, do transtorno afetivo bipolar e de problemas clínicos, assim como a dificuldade de se prever a neurotoxicidade do lítio com base apenas em seu nível sérico, estimularam o estudo desse elemento in vivo pela MRS.

O presente artigo focaliza a espectroscopia do lítio e sua aplicação no estudo da farmacocinética do lítio, na pesquisa da fisiopatologia e no tratamento do transtorno afetivo bipolar.

Princípios básicos

Para se realizar a espectroscopia de lítio são necessárias algumas alterações no aparelho convencional de ressonância magnética, sendo utilizada uma bobina específica e um sintonizador que são disponíveis em poucos centros de pesquisa internacionais.

Ao utilizar a espectroscopia de lítio, os pesquisadores encontram duas dificuldades principais para a realização do exame: a obtenção de concentração absoluta de lítio no cérebro e sua localização espacial. A determinação absoluta dos sinais de lítio é difícil de ser quantificada e técnicas diferentes foram usadas pelos autores para conseguir essa meta, como veremos a seguir.

Estudos da farmacocinética em indivíduos normais

O primeiro estudo de medida de níveis teciduais de lítio com o uso da MRS em humanos foi realizado por Renshaw e Wicklund, que mediram níveis musculares e cerebrais de lítio, após a administração de uma única ou de múltiplas doses de carbonato de lítio em um voluntário normal.1 Os níveis séricos de lítio elevaram-se mais rapidamente do que os níveis teciduais. A concentração muscular permaneceu mais elevada do que a concentração cerebral no final de uma semana de tratamento. Observaram que o lítio acumula-se lentamente no cérebro e que isso poderia ser responsável pela demora da resposta terapêutica, perceptível após o início do tratamento.

Estudos em pacientes

Farmacocinética

A farmacocinética da captação de lítio foi avaliada in vivo por Komoroski et al pela MRS de lítio no cérebro e no músculo de um controle normal e de um paciente portador de transtorno afetivo bipolar.2 A comparação foi realizada com "fantasmas" padronizados para estimar as concentrações de lítio. Os níveis cerebrais e musculares foram semelhantes e menores do que os níveis séricos. Os autores estudaram também o nível de lítio no cérebro de um paciente portador de transtorno esquizoafetivo em seis ocasiões distintas, durante um período de sete meses. Uma variação significativa foi observada, a qual mostrou alguma correlação com o nível sérico. Este atingiu o pico por volta de duas horas, após receber uma única dose de 300 mg, enquanto o nível cerebral atingiu seu pico depois de quatro horas. Os níveis musculares atingiram pico muito antes do que os níveis cerebrais, após dose única.Gyulai et al mediram a concentração de lítio no pólo occipital do cérebro e do músculo da panturrilha de nove pacientes com transtorno afetivo bipolar em remissão.3 Observaram correlação positiva entre níveis cerebrais, séricos e musculares de lítio, e concentrações médias de lítio em cérebro e em músculo menores do que as concentrações séricas médias. A razão média da concentração de lítio cerebral/sérico foi de 0,47±0,12, enquanto a razão média da concentração de lítio muscular/sérico foi de 0,66±0,20.

Utilizando uma bobina de superfície sintonizada para 1H e7Li, Kato et al observaram que a concentração cerebral média de lítio em dez pacientes bipolares que receberam a substância, foi a metade do nível sérico médio.4 Medidas consecutivas indicaram que as concentrações de lítio cerebrais estavam elevadas durante episódios de mania, ao passo que as concentrações séricas estavam inalteradas, indicando má correlação entre níveis séricos e cerebrais de lítio nos pacientes em mania, contrastando com pacientes em depressão e eutímicos. Esse resultado sugeriu a existência de uma farmacocinética do lítio específica para cada estado de humor.

Kushnir et al usaram uma bobina de superfície sintonizada para 1H e 7Li e compararam as intensidades de sinais cerebrais com um fantasma de concentração conhecida de lítio.5 Aplicando o protocolo em oito pacientes com transtorno afetivo bipolar recebendo lítio, observaram uma razão de níveis cerebrais/séricos igual a 0,59±0,12.

Oito pacientes com transtornos afetivos foram estudados por Kato et al. Eles observaram que as concentrações cerebrais de lítio correlacionaram-se melhor com as concentrações séricas do que com as concentrações em eritrócitos.6 As diferenças de mecanismos de transporte de cátions entre neurônios e eritrócitos poderiam explicar tais resultados.

Komoroski et al monitoraram a farmacocinética do lítio no cérebro de três pacientes recebendo tratamento.7 Os níveis cerebrais atingiram o pico de 0 a 2 horas após o nível sérico ter atingido o seu auge. A eliminação de lítio pelo tecido cerebral foi mais longa do que pelo tecido muscular.

Gonzalez et al desenvolveram um método para quantificar o nível cerebral de lítio com mais precisão que os estudos anteriores.8 Realizaram análise morfométrica das imagens de ressonância magnética e usaram maior volume cerebral para maximizar a relação de sinal-ruído e um intervalo mais longo entre pulsos, a fim de eliminar erros provenientes de valores incertos de T1. Estudando dez pacientes tratados com carbonato de lítio, observaram um nível cerebral médio de lítio de 0,58 mEq/L±0,17 mEq/L. A razão média de níveis cerebrais/séricos foi de 0,77 mEq/L±0,14 mEq/L (r=0,90). Uma variação significativa de lítio cerebral foi observada em pacientes com níveis séricos similares.

Kato et al estudaram 14 pacientes com transtorno afetivo bipolar, dos quais 12 em fase de mania.9 Observaram melhor correlação da resposta ao tratamento com níveis cerebrais de lítio (r=0,33) do que com níveis séricos (r=0,64; p<0,05).

Estudando 25 pacientes com transtorno afetivo bipolar, Sachs et al observaram alta correlação (r=0,68) dos níveis séricos com os níveis cerebrais de lítio.10 No entanto, observaram menor correlação (r=0,39) nos pacientes cujos níveis séricos de lítio estavam entre 0,6 mmol/l e 1,0 mmol/l, variabilidade que pode explicar a observação de alguns pacientes que apresentam níveis séricos terapêuticos de lítio não responderem à profilaxia com lítio.

A relação entre os efeitos colaterais do lítio e a concentração cerebral do mesmo em 17 pacientes com transtorno afetivo bipolar tratados com esta e outras drogas psicotrópicas foram investigados por Kato et al.11 Pacientes com tremor aparente nas mãos apresentaram níveis cerebrais de lítio significativamente mais elevados (0,51mM±0,27 mM) do que aqueles sem tremor (0,36mM±0,20 mM), mas não apresentaram diferenças no nível sérico.

Efeito da administração do lítio no metabolismo cerebral

Além de medir os níveis cerebrais de lítio, podemos utilizar a espectroscopia de próton na investigação do mecanismo de ação terapêutico do lítio.

Devido ao fato do lítio inibir especificamente o transporte de colina pela membrana, Stoll et al utilizaram a 1H-MRS para avaliar se o uso de lítio altera a concentração de colina cerebral.12 Estudaram sete pacientes tratados com lítio e seis controles tratados sem o mesmo, e não acharam diferença significativa entre os dois grupos. Concluíram que o tratamento com lítio não parece alterar o conteúdo cerebral de compostos que contêm colina. Lafer et al encontraram achado similar em um estudo de 1H-MRS utilizando 12 pacientes bipolares medicados com lítio, comparados a sete pacientes com o mesmo diagnóstico, mas que não faziam uso de lítio no momento do exame.13

A ação do lítio pode estar ligada à diminuição de concentração intracelular de mioinositol. Silverstone et al mediram os efeitos do uso de lítio no mioinositol.14 Para isso, 11 indivíduos receberam lítio (n=7) ou placebo (n=4) durante sete dias em um estudo duplo-cego. O lítio não alterou as concentrações cerebrais de mioinositol, em comparação ao placebo.

CONCLUSÃO

Apesar da complexidade técnica e da variedade metodológica na obtenção de níveis de lítio por MRS, os resultados dos estudos publicados são consistentes. Os níveis cerebrais de lítio correspondem a valores entre 47% e 77% dos níveis séricos em pacientes recebendo lítio cronicamente. Os níveis musculares observados foram iguais ou mais elevados do que os níveis cerebrais. A razão entre níveis cerebrais e séricos de lítio pode não ser estável em mudanças do estado afetivo.

Outra dificuldade é a dúvida quanto à significância do nível cerebral médio de lítio, já que estudos em animais e em humanos post-mortem mostraram uma variação regional na distribuição de lítio no cérebro. As estruturas periventriculares tendem a apresentar níveis mais elevados de lítio e este acumula-se na substância branca em maiores concentrações do que na substância cinzenta, possivelmente devido a maior densidade de canais de sódio. Isso também faz com que níveis intraneuronais de lítio variem em função da atividade cerebral regional15

Não se sabe se a variação interindividual dos níveis cerebrais de lítio é relevante do ponto de vista terapêutico. Alguns estudos sugerem que os níveis podem variar significativamente com mudanças no estado afetivo.

Concluímos que a espectroscopia de lítio é um método experimental que pode auxiliar o esclarecimento de questões fundamentais no tratamento como o mecanismo de ação, a ausência de resposta clínica em alguns pacientes e a variabilidade interindividual na incidência e gravidade de efeitos colaterais.

Fonte de financiamento: Fapesp (Processo nº 99/02253-4)

Correspondência: Beny Lafer

Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas

Rua Ovídio Pires de Campos, s/n - sala 4045 - Tel./fax: (0xx11)3064-3321 - Email: blafer@attglobal.net

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2002
  • Data do Fascículo
    Maio 2001
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