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Novas técnicas de neuroimagem em psiquiatria: qual o potencial de aplicações na prática clínica?

Novas técnicas de neuroimagem em psiquiatria: qual o potencial de aplicações na prática clínica?

Euclides T Rochaa, Tânia CTF Alvesb, Griselda EJ Garridoc,Carlos A Buchpiguela, Ricardo Nitrinid e Geraldo Busatto Filhob

aDepartamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). bDepartamento de Psiquiatria da FMUSP. cInstituto Nacional de Pesquisas Espaciais. dDepartamento de Neurologia da FMUSP

INTRODUÇÃO

Desde o surgimento das novas técnicas de neuroimagem, inúmeros estudos de pesquisa têm contribuído para o entendimento sobre as estruturas e o funcionamento cerebral relacionados à fisiopatologia dos transtornos neuropsiquiátricos.1-3 Esses desenvolvimentos mantêm viva a expectativa de que a neuroimagem possa ter utilidade também na prática clínica psiquiátrica, para auxiliar no diagnóstico e no seguimento de um paciente, assim como na avaliação de prognóstico etc.

No campo das doenças cerebrais orgânicas, a utilidade das técnicas de neuroimagem na rotina clínica é amplamente aceita.4,5 Os métodos mais acessíveis, como a tomografia computadorizada (TC), a ressonância magnética (RM) e a tomografia computadorizada por emissão de fóton único (single photon emission computed tomography - SPECT) são recursos importantes para o diagnóstico diferencial de demências; para o diagnóstico e manejo de doenças neurológicas que comumente cursam com sintomas psiquiátricos, como as epilepsias e acidentes vasculares cerebrais; e para a investigação do possível acometimento central em condições médicas, como o lupus eritematoso sistêmico e a síndrome de imunodeficiência adquirida.5,6 Além disso, visto que sinais e sintomas característicos dos transtornos mentais podem ocasionalmente representar a primeira manifestação de doenças cerebrais orgânicas, como tumores e doenças cerebrovasculares, solicita-se, na prática clínica, um exame de neuroimagem como TC ou RM na vigência do primeiro surto psicótico; de outros quadros psiquiátricos iniciados fora da faixa etária usual com apresentação clínica e curso atípicos e/ou má resposta a tratamento; de déficits cognitivos intensos e não-compatíveis com os demais dados de apresentação clínica; de síndromes catatônicas ou delirium; e de sinais focais neurológicos ao exame clínico e história de trauma encefálico grave.5,7

Se há aplicações práticas para a neuroimagem no diagnóstico diferencial de doenças que cursam com patologia cerebral bem definida, o mesmo não se pode dizer com relação aos transtornos psiquiátricos outrora classificados como "funcionais", como a esquizofrenia, o transtorno depressivo maior, o transtorno obsessivo compulsivo (TOC) dentre outros.2,8 Apesar do impacto indubitável dos achados reportados na literatura desta área, os resultados das pesquisas são quase sempre frutos de comparações estatísticas de médias de medidas cerebrais entre grupos de pacientes e controles normais. Já quando as imagens de qualquer modalidade são inspecionadas individualmente, anormalidades são detectadas em apenas uma parcela dos pacientes e com considerável variabilidade quanto à natureza e à localização cerebral.3 Em vista desta heterogeneidade, a neuroimagem não propiciou até hoje um único achado sequer que tenha sensibilidade e especificidade suficientes a ponto de poder estabelecer uma ligação definitiva com a clínica, através de aplicações diagnósticas práticas.2

Por outro lado, o aprimoramento dos equipamentos para aquisição de imagens cerebrais e dos métodos para análise de dados tem sido acelerado e mantém-se aberta a possibilidade de que, no futuro, esses desenvolvimentos possam levar a uma maior aplicabilidade diagnóstica para as técnicas de neuroimagem na prática psiquiátrica.

Novos métodos para a análise de imagens cerebrais: há potencial de aplicações diagnósticas?

Entre os desenvolvimentos que despertam mais interesse estão os métodos de análise automática de imagens, que permitem a quantificação de anormalidades em exames radiológicos no nível do voxel (a unidade tridimensional básica das imagens cerebrais, de volumes na ordem de poucos milímetros cúbicos). O método de análise voxel-a-voxel mais conhecido é o Statistical Parametric Mapping (SPM), usado há mais de uma década por pesquisadores internacionais e hoje disponibilizado na internet (www.fil.ion.ucl.ac.uk).9 Originalmente criado para a análise de estudos de fluxo sangüíneo cerebral regional (FSCr) com a tomografia por emissãode pósitrons (positron emission tomography - PET), este método foi posteriormente adaptado para SPECT e, mais recentemente, tem sido usado até para análises volumétricas com RM estrutural.10,11 Através do SPM, é possível realizar comparações estatísticas da média da intensidade de sinal em cada voxel do volume cerebral entre grupos de pacientes psiquiátricos e controles normais, ou ainda comparar imagens de um mesmo grupo em duas condições diferentes (como em estudos de FSCr, realizados durante uma tarefa de ativação psicológica e uma tarefa-controle). Inicialmente, as imagens de todos os sujeitos são transformadas espacialmente, posicionando-as anatomicamente de acordo com o atlas estereotáxico de Talairach & Tornoux, a fim de que cada voxel passe a ter o mesmo valor fixo de coordenadas nos eixos x,y,z, representando a mesma localização cerebral em todos os sujeitos.12 Com isto, a intensidade de sinal em cada um dos milhares de voxels cerebrais passa a ser vista como uma variável independente, a ser comparada entre grupos através de testes estatísticos como t-teste de Student ou análise de variância etc. As múltiplas comparações feitas ao longo de todo o volume cerebral têm, como resultado final, um mapa estatístico cerebral que contém o valor do teste estatístico para cada voxel e sua localização no cérebro. Pode-se assim verificar, utilizando as coordenadas do atlas de Talairach & Tornoux, qual a localização anatômica dos voxels nos quais se observou uma diferença de intensidade média de sinal entre os grupos acima de um limiar de significância estatística pré-determinado (p.ex.: p<0,01).12

Recentemente, o SPM tem sido explorado também para análises individuais, comparando estatisticamente a imagem de um único indivíduo à média de bancos de imagens de voluntários normais.13,14 A possibilidade de utilizar o SPM na análise de casos individuais tem trazido à discussão se tal aplicabilidade poderia melhorar a objetividade da análise individual de exames de PET e SPECT cerebral em relação à análise visual tradicional, empregada na prática clínica.13 A Figura 1 ilustra o uso desta nova metodologia num caso de suspeita de doença de Alzheimer em que a interpretação visual de um médico nuclear experiente foi contrastada com o mapa estatístico produzido pelo SPM. Neste tipo de situação, o mapa paramétrico estatístico individual pode reproduzir, de forma objetiva, o achado detectado visualmente pelo avaliador clínico, assim como detectar alterações mais sutis.13 Abre-se assim um potencial de aplicação prática para o SPM em casos como os de suspeita de demência, onde a interpretação visual do exame de SPECT tenha sido dúbia, ou no auxílio à localização de foco epiléptico com o SPECT e outras situações.


Além do uso diagnóstico em doenças cerebrais orgânicas, poderia o SPM também ampliar a aplicabilidade clínica nos transtornos psiquiátricos "funcionais"? O grupo dos autores responsáveis pelo presente artigo começou a avaliar essa questão recentemente, aproveitando os dados de um estudo prévio de SPECT, no qual a média do FSCr em um grupo de 26 pacientes com TOC havia se mostrado alterada no cíngulo anterior do córtex órbito-frontal e em outras áreas cerebrais, em comparação com as médias de um grupo-controle normal.15 Os autores do presente artigo estão reavaliando as imagens de SPECT de cada paciente com TOC individualmente através do SPM, em comparação com um banco de imagens de 32 voluntários normais da mesma faixa etária. Os resultados preliminares mostram que, num nível flexível de significância estatística (p<0,01), o SPM detecta alterações com extensão de 200 ou mais voxels cúbicos (de 2x2x2 milímetros) em, aproximadamente, 75% dos casos de TOC. No entanto, essas alterações mostram-se bastante variáveis, não só quanto à localização cerebral, mas também na direção dos achados (hipo ou hiperperfusão). Além disso, observou-se, em diferentes limiares de significância estatística, alterações focais também numa proporção de voluntários sadios, quando comparados individualmente aos demais sujeitos do banco de imagens normais. Já numa análise buscando anormalidades só nas regiões mais especificamente implicadas na fisiopatologia do TOC observou-se, com maior freqüência, alterações no cíngulo anterior, mas essas alterações estão presentes em não mais que 50% dos casos de TOC avaliados individualmente. Esse estudo encontra-se ainda em andamento e será verificada a possível influência de variáveis clínicas como a gravidade de sintomas específicos e idade de início da doença, sobre os padrões dos mapas estatísticos individuais. No entanto, os resultados preliminares já permitem especular que o SPM, apesar de sensível e objetivo, será de pouca utilidade diagnóstica em transtornos psiquiátricos "funcionais", nos quais a heterogeneidade dos sintomas clínicos e possíveis fatores de confusão, como o uso prévio de medicações, trazem grande variabilidade aos padrões detectados em cada sujeito.

Novas técnicas de ressonância magnética (RM)

Uma outra área da neuroimagem cujas capacidades técnicas têm se ampliado consideravelmente é a RM, com equipamentos de resolução espacial cada vez maior, bobinas para aquisição mais rápida de imagens (vide artigo de Amaro e Yamashita neste suplemento), e novos tipos de seqüências de pulsos.16 Esses desenvolvimentos também mantêm vivas as expectativas de possíveis aplicações práticas em psiquiatria no futuro.

No campo da RM estrutural, um dos achados mais freqüentes em pacientes com transtornos mentais são hiperintensidades de substância branca, reportados em estudos de pacientes com transtornos afetivos (vide artigo de Sassi e Soares neste suplemento), esquizofrenia e doença de Alzheimer.17 Hoje em dia, tais hiperintensidades podem ser visualizadas com grande nitidez em imagens pesadas em T2 ou em FLAIR (fluid attenuated inversion recovery), e quantificadas em sua extensão através de métodos cada vez mais automatizados.16,18 Apesar destas lesões não apresentarem valor diagnóstico, há achados recentes sugerindo que as hiperintensidades, quando graves, podem estar associadas a pior prognóstico e pior resposta à medicação em pacientes depressivos idosos.19,20 Este tipo de informação, se confirmada em outros estudos, pode reforçar a utilidade prática do uso da RM na avaliação prognóstica de pacientes com transtornos afetivos.

Outra técnica de grande interesse é a RM funcional, que possibilita obter imagens mostrando mudanças do funcionamento cerebral durante tarefas de estimulação mental de forma não-invasiva e com resolução temporal superior em relação a PET e SPECT (vide artigos de Arcuri e McGuire e Moll et al neste suplemento). As tarefas mentais podem ser assim repetidas múltiplas vezes durante a mesma sessão de RM funcional, proporcionando poder estatístico suficiente para que se construam, de forma automática, mapas estatísticos individuais mostrando os voxels cerebrais ativados num único sujeito, num limiar de significância pré-determinado. A possibilidade de uma análise objetiva de casos individuais faz da RM funcional uma técnica a mais que merece ser investigada em pesquisas sistemáticas quanto à sua aplicabilidade prática na clínica psiquiátrica.8 Pesquisas deste tipo, no entanto, não foram reportadas até hoje na literatura.

Tais estudos, assim como outros utilizando os novos métodos que vão se tornando cada vez mais disponíveis, serão de fundamental importância para avaliar se será viável, no futuro, uma ampliação do campo de aplicações práticas das técnicas de neuroimagem na rotina clínica em psiquiatria.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Euripedes C. Miguel, Alex F. Maia, Denis R. Zamignani e demais membros do projeto "Transtornos do espectro obsessivo-compulsivo" (Protoc), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, pela colaboração científica e avaliação clínica dos pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo e voluntários normais mencionados neste artigo.

Fonte de financiamento: Fapesp (processo 95/9446-1)

Correspondência: Geraldo Busatto Filho

R. Des. Ferreira França, 40, apto. 92C - Alto de Pinheiros - 05446-900 São Paulo, SP

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2002
  • Data do Fascículo
    Maio 2001
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