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Apresentação

APRESENTAÇÃO

Atualização em estresse pós-traumático

An update on posttraumatic stress disorder

O conceito de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), como atualmente o definimos, está intimamente ligado a um tipo particular de vivência traumática, qual seja a guerra. Veteranos, no seu retorno da guerra do Vietnam, chamavam a atenção pela expressão peculiar de certos comportamentos e atitudes. Pensamentos e revivescências recorrentes de eventos traumáticos, alheamento afetivo e ativação autonômica eram sintomas freqüentes naqueles ex-combatentes. O termo estresse pós-traumático foi cunhado em 1978 para descrever essa forma de mal estar psíquico e as dificuldades de ajustamento dele provenientes. Nos dias de hoje, está bem estabelecido o fato de que populações civis são acometidas pelo TEPT, secundário a uma variedade de exposições a eventos traumáticos. Mais que isso, existem evidências que populações civis apresentam um melhor prognóstico e resposta a tratamentos.

No TEPT, a recorrência de memórias vívidas, incontroláveis, na forma de flashbacks ou pesadelos, sinaliza no sentido de uma memorização defeituosa da situação traumática. Com efeito, avanços na neurobiologia do TEPT apontam para uma consolidação excessiva de memórias aversivas, de conteúdo emocional. A contínua evocação dessas memórias parece ser um dos mecanismos subjacentes à manutenção dos sintomas de TEPT por longos períodos de tempo. A evocação normal de memórias pressupõe um fluxo relativamente ordenado e orientado para questões presentes. As revivescências do TEPT se caracterizam pela desconexão com o fluxo normal do pensamento. Freqüentemente os pacientes descrevem as memórias ligadas ao trauma como autônomas ou parasitárias. De forma similar às intrusões características do Transtorno Obsessivo-Compulsivo, as memórias traumáticas passam a assombrar os portadores do TEPT.

Desde as descrições originais dos anos 80, o TEPT evoluiu como uma síndrome bem definida, diferente de outras reações ao estresse pela persistência e intensidade dos seus sintomas. No primeiro artigo deste suplemento, os critérios diagnósticos utilizados internacionalmente para definir o TEPT são apresentados e discutidos. Na seqüência, a evolução histórica do conceito de trauma psíquico e do estresse pós-traumático é sistematizada. Entretanto, mesmo de posse dos critérios adequados para o diagnóstico do TEPT, são inúmeros os desafios para o diagnóstico dessa entidade clínica. Neste suplemento, é discutida a questão do diagnóstico do TEPT, sendo ilustrados com vinhetas clínicas alguns pontos importantes para evidenciar os seus sintomas. Muitas vezes os portadores do transtorno associam seus sintomas a uma forma de fraqueza. Algo que deveria ser ocultado por ser vergonhoso, quanto a essência da vivência traumática, ou simplesmente por não ser considerado relevante. Comorbidades freqüentes como a Depressão Maior poderão aparecer como queixa principal. Dificuldades para trazer à tona o diagnóstico de TEPT podem significar o não tratamento do transtorno e a cronificação do quadro.

A forma freqüente com que a Depressão Maior e outros Transtornos do Humor se apresentam como comorbidades do TEPT, e muitas vezes dominam sua expressão clínica, fez com que o assunto fosse discutido em três artigos neste suplemento. No primeiro deles, são abordadas as mais freqüentes comorbidades do TEPT. A relevância das comorbidades com os transtornos de humor fez com que o tema fosse abordado em mais detalhe em dois capítulos específicos, que se dedicam a Depressão Maior e ao Transtorno do Humor Bipolar.

Além da evolução no que tange aos critérios diagnósticos, análise da fenomenologia e comorbidades do TEPT, esse transtorno tem sido sistematicamente investigado quanto à sua base biológica. Uma síntese dos achados recentes na psicobiologia do TEPT é apresentada neste suplemento. Nesta área do conhecimento, surgem alguns dos desenvolvimentos mais interessantes na caracterização do TEPT. Foi demonstrado que uma falha no sistema de desativação da reação ao estresse, mediada por níveis reduzidos de cortisol, pode desempenhar um papel fundamental na perpetuação dos sintomas em pacientes com TEPT.

O tratamento psicoterápico do TEPT é abordado neste suplemento segundo o enfoque cognitivo-comportamental, psicanalítico e segundo a perspectiva do Debriefing. O Debriefing consiste em um procedimento onde, de forma individual ou em grupo, os indivíduos expostos a experiências traumáticas realizam a catarse dessas experiências dentro de um setting estruturado para essa finalidade. Esse procedimento vinha sendo utilizado como rotina em vítimas de desastres e acidentes em certos países. O resultado de revisões sistemáticas sobre o assunto tem gerado controvérsias quanto a utilidade do método. Metanálises recentes indicam que o Debriefing não é um fator de proteção para o desenvolvimento do TEPT e pode estar, inclusive, associado com o aumento de sua incidência. Esses achados justificam a busca de tratamentos baseados em evidências para a prevenção do surgimento e o tratamento dos sintomas do TEPT. Há um bom número de ensaios clínicos sugerindo que certas medicações, especialmente antidepressivos com propriedades serotoninérgicas, podem ser úteis no tratamento do TEPT. Novas abordagens terapêuticas, incluindo o uso de novos anticonvulsivantes estão em fase de teste.

Não conhecemos os números exatos relativos aos casos de TEPT em nossa realidade. Estimamos que, diante de fenômenos como a violência urbana, violência contra a mulher e o maltrato de crianças, a prevalência do transtorno no Brasil, e o conseqüente impacto sobre as vítimas do trauma e seus familiares, não seja inferior a de outros países. Esperamos que este suplemento aumente a atenção dispensada pelos psiquiatras brasileiros à importância do desenvolvimento de programas específicos de educação médica, pesquisa e assistência na área do TEPT.

Flávio Kapczinski

Laboratório de Psiquiatria Experimental, Centro de Pesquisa,

Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Porto Alegre, RS, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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