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Qual o papel da neurocirurgia psiquiátrica no século XXI?

EDITORIAL

(AUTORES CONVIDADOS)

Qual o papel da neurocirurgia psiquiátrica no século XXI?

Scott L RauchI; Darin D DoughertyI; G Rees CosgroveI; Edwin H CassemI; Bruce H PriceII; Benjamin D GreenbergIII; Steven A RasmussenIII

IMassachusetts General Hospital e Harvard Medical School, Boston, Massachusetts, USA

IIMcLean Hospital, Belmont, Massachusetts, USA

IIIBrown University Medical School & Butler Hospital, Providence, Rhode Island USA

Os tratamentos neurocirúrgicos não devem ser adotados indiscriminadamente para qualquer indicação. É especialmente compreensível que tenham sido levantadas preocupações sobre a prudência de intervenções neurocirúrgicas para indicações psiquiátricas, dado o histórico que rodeia os procedimentos manuais a seco aventados durante a metade do século XX.1-3 Um entusiasmo precoce sobre lobotomias frontais levaram ao uso extenso e relativamente indiscriminado durante a era prévia ao advento das terapias psicofarmacológicas contemporâneas.

No entanto, as últimas cinco décadas foram testemunhas de uma evolução essencial no tratamento neurocirúrgico de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e depressão maior (DM), graves e refratários aos tratamentos.1,2 Os avanços foram conseguidos em particular em relação aos padrões e práticas da seleção de pacientes, refinamento de métodos cirúrgicos, evidências de eficácia, experiência em relação aos efeitos adversos e investigação neurocientífica relevante.

Cingulotomia anterior, capsulotomia anterior, tracto subcaudada e leucotomia límbica são agora vistos como tratamentos aceitáveis (não experimentais) para formas graves e refratárias ao tratamento de TOC e/ou DM.1,2 Os princípios críticos da seleção de pacientes incluem o consentimento informado e um processo pelo qual a revisão multidisciplinar dos casos candidatos assegurem um diagnóstico exato, gravidade suficiente da doença, avaliação das potenciais contra-indicações e uma exaustiva gama de terapias não cirúrgicas já tentadas sem sucesso.

Acumulam-se dados que indicam modestos índices de resposta (de 35 a 70%, dependendo da amostra de pacientes e dos critérios de resposta) com estes procedimentos, que podem salvar vidas nos casos de TOC e DM mais graves e não responsivos aos tratamentos de outra espécie. A melhoria clínica é alcançada tipicamente após várias semanas ou meses do pós-operatório. Para alguns desses procedimentos, repetir a cirurgia é uma opção frente a uma resposta incompleta. Desconfortos pós-operatórios temporários previstos incluem cefaléia, náusea e edema. Os riscos de eventos adversos mais sérios, incluindo infecção, dificuldades urinárias, ganho de peso, convulsões, hemorragia ou infarto cerebrais, e déficits cognitivos, são reais, mas estimáveis, relativamente pouco freqüentes e usualmente transitórios.1,2,4

Da mesma forma que com quaisquer opções terapêuticas, as informações detalhadas disponíveis sobre potenciais riscos e benefícios compreendem elementos essenciais do processo de consentimento informado. Sob nenhuma circunstância uma neurocirurgia psiquiátrica deve ser realizada contra a vontade de um paciente ou no contexto da coerção. Da mesma forma, a intervenção não deve ser considerada como substituta ao atendimento psiquiátrico, exigindo a realização de um tratamento pós-operatório sob a supervisão de um psiquiatra.

É importante ter em mente que existem diferentes padrões para estabelecer a eficácia de tratamentos médicos (e.g., farmacológicos) em comparação aos cirúrgicos. Enquanto o padrão-ouro em farmacoterapia exige ensaios duplo-cegos placebo-controlados, em terapias cirúrgicas esses ideais são raramente buscados. Devido aos desafios práticos que rodeiam controles com procedimentos falsos e a intervenção cega no contexto cirúrgico, esses ensaios não são requeridos e nem mesmo esperados. No caso da neurocirurgia psiquiátrica, assim como em muitos tratamentos neurocirúrgicos aceitos para quadros médicos ou neurológicos, os dados clínicos em relação à eficácia têm sido compilados a partir da experiência clínica extensa coletada abertamente. Além disso, para que a experiência neurocirúrgica se acumule, a probabilidade de respostas substanciais com placebo ou os índices de remissão espontânea coincidente parecem ser remotos dados a longa duração da doença e o alcance heróico prévio dos tratamentos alternativos fracassados.

O advento de procedimentos estereopáticos guiados por ressonância magnética por imagem levou a uma refinada capacidade de localizar lesões de forma exata em locais-alvo desejados. Esses procedimentos ablativos são realizados tipicamente usando métodos neurocirúrgicos convencionais para termocoagulação por meio de craniotomia. No entanto, a capsulotomia anterior pode ser alternativamente realizada utilizando o Gamma Knife. O aparelho possibilita aos neurocirurgiões produzirem lesões cerebrais direcionadas por meio de radiação gama direta, através do crânio intacto, evitando dessa forma a necessidade de realizar uma craniotomia.1,2

Esses tratamentos neurocirúrgicos psiquiátricos para TOC e DM deverão ser conceitualizados como não experimentais. No entanto, a pesquisa nessa área deve continuar em um esforço para delinear ou aperfeiçoar mais os desfechos, investigar métodos ou indicações alternativas e para avançar na compreensão científica sobre esses transtornos e os mecanismos pelos quais os tratamentos neurocirúrgicos exercem seus efeitos. A pesquisa em neuroimagem já influenciou substancialmente os modelos neurobiológicos de trabalho de DM e TOC.5 Talvez o mais animador seja a perspectiva de que os testes de neuroimagem funcional possam ser desenvolvidos para ajudar a guiar o atendimento médico de excelência, por meio de informação de seleção entre os pacientes ou entre as opções neurocirúrgicas.5,6 Da mesma forma, o desenvolvimento de técnicas de estimulação cerebrais profundas oferecem o potencial de substituir procedimentos ablativos atuais com intervenções que sejam flexíveis, ajustáveis e reversíveis.2,7 Por ora, no entanto, o padrão-ouro estabelecido para tratamentos de TOC e DM permanecem sendo: cingulotomia anterior, capsulotomia anterior, tractotomia do subcaudado e leucotomia límbica.

Nós sustentamos que, a esta altura do século XXI, os tratamentos neurocirúrgicos para TOC e DM graves e refratários ao tratamento representam um conjunto viável de opções em situações clínicas apropriadas. Eles devem ser considerados racionalmente e disponibilizados aos pacientes por equipes capacitadas, experientes e multidisciplinares que incluam psiquiatras, neurocirurgiões e neurologistas.

Apoiamos e aplaudimos as políticas que encorajem ou assegurem a conduta responsável do tratamento neurocirúrgico psiquiátrico. Opomo-nos a políticas que pelo seu desenho ou prática neguem aos pacientes o acesso a essas opções de tratamento. Existe mundialmente um longo e trágico histórico de estigmatizar as doenças mentais e negar os direitos fundamentais aos indivíduos que sofrem de problemas psiquiátricos. Sob a justificativa de ''proteger'' esses indivíduos desafortunados, é negado às pessoas com doenças psiquiátricas o direito de acesso e escolha entre as opções de tratamento apropriado disponíveis. Configura-se assim uma violação de direitos, principalmente nos casos em que os pacientes com doenças psiquiátricas têm a capacidade de dar seu consentimento.

Referências

1. Greenberg BD, Price LH, Rauch SL, Friehs G, Noren G, Malone D et al. Neurosurgery for intractable obsessive-compulsive disorder and depression: Critical issues. Neurosurgical Clin N Am 2003;14(2):199-212.

2. Rauch SL, Greenberg BD, Cosgrove GR. Neurosurgical treatments and deep brain stimulation. In: Sadock BJ, Sadock V, eds. Comprehensive textbook of psychiatry. 8th ed. Baltimore: Williams & Wilkens (in press).

3. Persaud R, Crossley D, Freeman C. Should neurosurgery for mental disorder be allowed to die out? For & Against. Br J Psychiatry 2003;183:195-6.

4. Dougherty DD, Baer L, Cosgrove GR, Cassem EH, Price BH, Nierenberg AA et al. Update on cingulotomy for intractable obsessive-compulsive disorder: prospective long-term follow-up of 44 patients. Am J Psychiatry 2002;159:269-75.

5. Rauch SL. Neuroimaging and neurocircuitry models pertaining to the neurosurgical treatment of psychiatric disorders. Neurosurgical Clin N Am 2003;14(2):213-24.

6. Rauch SL, Dougherty DD, Cosgrove GR, Cassem EH, Alpert NM, Price BH et al. Cerebral metabolic correlates as potential predictors of response to anterior cingulotomy for obsessive compulsive disorder. Biol Psychiatry 2001;50:659-67.

7. Nuttin B, Cosyns P, Demeulemeester H, Gybels J, Meyerson B. Electrical stimulation in anterior limbs of internal capsules in patients with obsessive-compulsive disorder. Lancet 1999;354:1526.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2004
  • Data do Fascículo
    Mar 2004
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