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Psicocirurgia: a busca de um equilíbrio

EDITORIAL

(AUTORES CONVIDADOS)

Psicocirurgia: a busca de um equilíbrio ético

José Manoel BombardaI; Luiz Carlos Aiex AlvesI; Luiz Alberto BacheschiII

IConselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP)

IIFaculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - Academia Brasileira de Neurologia - Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP)

Por solicitação do Congresso dos EUA, a Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos de Pesquisas Biomédicas e Comportamentais definiu, em 1977, psicocirurgia como a ''implantação de eletrodos, destruição ou estimulação direta do cérebro por qualquer meio'', tendo como propósito primário ''controlar, mudar ou afetar qualquer distúrbio emocional ou comportamental''.1 Esta definição ainda prevalece naquele país.

Pensamos ser correto considerar, com base na literatura disponível, que o status atual da psicocirurgia é claramente ambíguo: trata-se de um recurso terapêutico e de um procedimento experimental. No entanto, todo debate sobre a dimensão ética dessa questão não pode desconsiderar a evidente diferença entre a psicocirurgia do período da leucotomia pré-frontal de Egas Muniz, depois modificada e difundida por Walter Freeman, e as técnicas psicocirúrgicas atuais, baseadas em procedimentos de neuromodulação. As investigações clínicas hoje estão alicerçadas em princípios fisiopatogênicos dos sistemas neurais subjacentes aos estados psicopatológicos muito melhor conhecidos. Também contam com estudos anatômicos e eletrofisiológicos detalhados e amplos recursos de neuro-imagem estrutural e funcional.

Joseph Fins destaca que a mencionada definição exclui o tratamento neurocirúrgico de patologias como a Doença de Parkinson, epilepsia e dor crônica. Esta exclusão ilustraria um dualismo cartesiano que distingue procedimentos invasivos objetivando a melhora de distúrbios do movimento, daqueles voltados a tratar transtornos psiquiátricos.2 Esta separação não se justificaria, segundo ele, uma vez que a linha demarcatória entre neurologia e psiquiatria está cada vez mais esmaecida. Mecanismos da Doença de Parkinson seriam, por exemplo, comparáveis aos do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) severo. Ambos se caracterizariam pela atividade hipersincrônica, e a fisiopatologia e os circuitos neurais nos dois casos compartilhariam interações gangliotalâmicas corticobasais. Ademais, o tratamento do Parkinson com estimulação cerebral profunda pode alterar o humor e induzir a uma reversível, porém aguda depressão.

Afora o pano de fundo de seus primeiros tempos, o debate ético em torno da psicocirurgia se desenvolve atualmente em um contexto muito mais exigente quanto aos direitos dos pacientes. Levando isso em conta, Fins argumenta que a sociedade deve proteger-se do risco de aventuras terapêuticas, mas o medo infundado das novas técnicas de neuromodulação pode levar a um zelo excessivo. Uma ética em que predomina a aversão ao risco pode induzir a uma posição protecionista distorcida, que teria como conseqüência o cerceamento de avanços potencialmente benéficos à própria população que a regulamentação busca proteger. Um refinamento na ''doutrina do consentimento informado'', com o paciente assumindo um papel mais igualitário ao do médico na decisão sobre seu tratamento, poderia ajudar a corrigir essa distorção.3 Permitiria talvez alcançar a justa medida entre o risco de efeitos colaterais e o acesso a terapias tecnologicamente avançadas.

Ademais, protocolos terapêuticos deveriam assegurar que, antes da indicação do procedimento cirúrgico, todos os tratamentos não invasivos pertinentes à doença alvo foram comprovadamente tentados.

A posição do CFM

Os preceitos éticos para a realização de psicocirurgia, a serem seguidos pelos médicos brasileiros, encontram-se em duas Resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM). São as Resoluções 1407 e 1408; ambas de 08 de junho de 1994.

A primeira adotou as normas da Organização das Nações Unidas, de 17 de dezembro de 1991, contidas nos ''Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental''. São 25 Princípios, a maioria com parágrafos. A psicocirurgia é referida no Princípio 11, que trata do consentimento para o tratamento. É estabelecido que ''nenhum tratamento será administrado a um usuário sem seu consentimento informado''. Usuário significa uma pessoa recebendo assistência à saúde mental.

Consentimento informado é definido (Parágrafo 2) como ''o consentimento obtido livremente, sem ameaças ou persuasão indevida, após esclarecimento apropriado com as informações adequadas e inteligíveis, na forma e linguagem compreensíveis ao usuário''. O usuário deve ser esclarecido sobre: (a) a avaliação diagnóstica; (b) o propósito, método, duração estimada e benefício esperado do tratamento proposto; (c) os modos alternativos de tratamento, inclusive aqueles menos invasivos; e (d) possíveis dores ou desconfortos, riscos e efeitos colaterais do tratamento proposto.

No tocante a ensaios clínicos e tratamentos experimentais (Parágrafo 15), eles nunca poderão ser realizados sem o consentimento informado. Caso o usuário esteja incapacitado para dar seu consentimento informado, o ensaio clínico ou tratamento experimental só poderão ser aplicados com a aprovação de um corpo de revisão competente e independente, especificamente constituído para esse fim.

Já a psicocirurgia e ''outros tratamentos invasivos e irreversíveis'' para transtornos mentais (Parágrafo 14) só serão realizados quando: (1) o usuário tiver dado seu consentimento informado e (2) um corpo de profissionais externo estiver convencido de que houve genuinamente esse consentimento e que o tratamento é o que melhor atende à saúde do usuário. Ademais, a psicocirurgia ''jamais será realizada em paciente que esteja involuntariamente em um estabelecimento de saúde mental''.

Portanto, há maior exigência para a psicocirurgia do que para tratamento experimental. Nela, o consentimento do usuário não pode ser substituído pela aprovação de um corpo de revisão, como previsto no tratamento experimental e ensaio clínico.

Já a Resolução 1408 traz especificações para esses Princípios. Estabelece que somente serão realizados tratamentos experimentais, ensaios clínicos ou pesquisas em pacientes incapacitados a dar seu consentimento esclarecido ''com a aprovação de um corpo de revisão competente e independente designado pela comissão de ética do serviço e especificamente constituído para esse fim''.

Por outro lado, a psicocirurgia só poderá ser realizada se o próprio paciente der seu consentimento esclarecido. Ademais, é estabelecido que ''um corpo de profissionais externo, solicitado ao Conselho Regional de Medicina (CRM)'', esteja convencido de que ''houve genuinamente um consentimento esclarecido e de que o tratamento é o que melhor atende às necessidades de saúde do usuário''.

Novamente aqui a exigência é maior. O consentimento do paciente não pode ser substituído pela aprovação de um corpo de revisão. E este corpo de revisão, ao invés de ser oriundo do próprio serviço que realiza o procedimento, deve ser designado pelo CRM.

Em conclusão, os cuidados e os procedimentos preconizados pelo CFM devem ser entendidos como suficientes para assegurar a proteção dos pacientes potencialmente candidatos à realização de procedimentos psicocirúrgicos.

Referências

1. Fins JJ. From psychosurgery to neuromodulation and palliation: history's lessons for the ethical conduct and regulation of neuropsychiatric research. Neurosurg Clin N Am 2003;14:303-9.

2. Fins JJ. Constructing an ethical stereotaxy for severe brain injury: balancing risks, benefits and acess. Naure 2003;4:323-7.

3. Mateos-Gómez H. Psicocirurgía y bioética (editorial). Arch Neurocien (Mex) 2001;6(3):98-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2004
  • Data do Fascículo
    Mar 2004
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