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Diretrizes para a neurocirurgia dos transtornos psiquiátricos graves no Brasil: uma proposta preliminar

EDITORIAL

(AUTORES CONVIDADOS)

Diretrizes para a neurocirurgia dos transtornos psiquiátricos graves no Brasil: uma proposta preliminar

Euripedes Constantino MiguelI; Antonio Carlos LopesI; Eda Zanetti GuertzensteinII; Maria Elvira Borges CalazasIII; Manoel Jacobsen TeixeiraIV; Marco Antônio BrasilV

IDepartamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, FMUSP

IIInstituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP

IIIDepartamento de Neurologia da FMUSP

IVDivisão de Neurocirurgia Funcional, IPq HC-FMUSP

VAssociação Brasileira de Psiquiatria

''Ter medo da tecnologia é ter medo de nós mesmos. É essencial que nós nos protejamos, aqui, assim como em qualquer lugar, da arrogância e da insensibilidade. A resposta não é proibir a tecnologia, mas insistir que esta seja sempre subserviente aos valores transcendentes da dignidade humana''1

Nos últimos anos, verificamos um grande avanço nas neurociências e presenciamos a descoberta de novos métodos de investigação que permitiram um maior conhecimento das bases neurobiológicas de diversos transtornos mentais. Simultaneamente, surgiram técnicas neurocirúrgicas mais eficazes, menos invasivas e, conseqüentemente, associadas a menor perfil de efeitos colaterais. A integração destes avanços permite a realização, hoje, de intervenções neurocirúrgicas orientadas a partir de uma base neuro-anatômica ou para influir em circuitos neuronais específicos cuja atividade parece anormal em determinados transtornos psiquiátricos. Com o progresso da pesquisa nesta área, e o melhor conhecimento dos substratos neurobiológicos envolvidos na etiopatogênese dos transtornos mentais, pode-se esperar a descoberta de alvos cada vez mais precisos para procedimentos neurocirúrgicos. Reciprocamente, os resultados no tratamento com o uso destas técnicas podem confirmar ou gerar novas informações para os modelos vigentes sobre a patogênese destes transtornos.2

O transtorno obsessivo-compulsivo e a depressão maior refratários aos tratamentos convencionais são, entre outros, os quadros psicopatológicos para os quais há mais estudos quanto ao emprego de neurocirurgias funcionais. Estes transtornos causam sofrimento incomensurável, profunda incapacitação e efeitos negativos de grande impacto na vida conjugal, familiar, profissional e social de seus portadores.3

Para o tratamento neurocirúrgico funcional destes transtornos graves e não responsivos aos tratamentos convencionais, existem diversas técnicas estereotáxicas, que evoluíram a partir das primeiras intervenções ''a céu aberto'' para lesões precisas induzidas em regiões específicas do encéfalo, que resultam em grau considerável de eficácia: a capsulotomia, a cingulotomia, a tratotomia subcaudada e a leucotomia límbica. Estas técnicas consistem em interromper circuitos neurais por radiofreqüência via trepanação no crânio ou por radiocirurgia, quando a lesão actínica é induzida sem a necessidade de abertura do crânio. Técnicas neurocirúrgicas reversíveis, como a estimulação encefálica profunda, que consiste na implantação de eletródios ativados a partir de estimuladores, implantáveis na cápsula interna anterior, surgiram mais recentemente e já estão sendo utilizadas.3

Diante do surgimento destas novas técnicas neurocirúrgicas e também a partir de reações contrárias que determinaram a proposta de leis que proíbem este tipo de procedimento, diversos grupos de trabalho têm se organizado com a finalidade de definir diretrizes claras para sua realização.

Recentemente, a Associação Brasileira de Psiquiatria organizou um grupo de trabalho com o objetivo de definir normas nacionais para as neurocirurgias dos transtornos psiquiátricos graves (também chamadas de psicocirurgias). Paralelamente, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, uma comissão procurou elaborar normas no âmbito desta instituição. Esta discussão é importante, uma vez que não há Resoluções atuais do Conselho Regional de Medicina específicas sobre o assunto. As diretrizes preliminares apresentadas a seguir reúnem pontos cruciais, comuns às propostas destes dois grupos.

Tratamentos neurocirúrgicos para transtornos psiquiátricos graves devem ser realizados de acordo com o seguinte procedimento:

1. Pacientes devem estar inseridos em projetos de pesquisa. Ou seja, estas pesquisas necessitam ser aprovadas por comissão de ética e pesquisa;

2. Critérios operacionais de refratariedade aos tratamentos convencionais e de indicação para a neurocirurgia, claramente definidos e fundamentados de acordo com as normas internacionais atualizadas;

3. Avaliação da refratariedade e indicação de cada caso potencial por comitê independente de profissionais, designado pelo Conselho Regional de Medicina;

4. Informações necessárias, adequadas, totais e inteligíveis, transmitidas ao doente e, quando necessário, ao seu responsável, na forma e linguagem compreensíveis, abrangendo todos os aspectos descritos nas normas internacionais;

5. Consentimento Informado para o tratamento assinado pelo doente e, quando necessário, por seu responsável, na presença de um indivíduo, não integrante do projeto, capacitado para avaliar se foi realizado de forma adequada;

6. Seguimento, em longo prazo, dos doentes operados, bem como avaliação sistemática dos seus efeitos adversos e complicações;

7. Realização de procedimentos neurocirúrgicos em centros credenciados, ligados ou filiados a universidades e que mantenham comitês de ética. Psiquiatras envolvidos, que deverão ter papel de liderança sobre o projeto, necessitam ter reconhecida experiência no tratamento dos transtornos para os quais a neurocirurgia funcional foi indicada. O seguimento destes pacientes deve ser feito de forma multidisciplinar envolvendo, além de psiquiatras e neurocirugiões, neurologistas, neuropsicólogos e psicoterapeutas.

As diretrizes sugeridas acima encontram muitas semelhanças com outras propostas internacionais, como aquelas recentemente elaboradas para a utilização de estimulação encefálica profunda em transtornos psiquiátricos.4

A definição dessas normas tem o objetivo de proteger os pacientes da submissão a procedimentos que envolvam riscos e efeitos colaterais potencialmente relevantes sem a adequada indicação ou ulterior acompanhamento médico. Ao mesmo tempo, critérios claros e cautelosos são importantes para garantir que a neurocirurgia para transtornos psiquiátricos continue disponível para pacientes adequadamente selecionados.5

Referências

1. Gaylin WM. The problem of psychosurgery. In: Gaylin WM, Meister JS, Neville RC, editors. Operating on the mind: the psychosurgery conflict. New York: Basic Books; 1975. p. 2.

2. Rauch SL. Neuroimaging and neurocircuitry models pertaining to the neurosurgical treatment of psychiatric disorders. Neurosurg Clin N Am 2003;14:213-23.

3. Greenberg BD, Price LH, Rauch SL, Friehs G, Noren G, Malone D, et al. Neurosurgery for intractable obsessive-compulsive disorder and depression: critical issues. Neurosurg Clin N Am 2003;14:199-212.

4. Nuttin B, Gybels J, Cosyns P, Gabriels L, Meyerson B, Andreewitch S, et al. Deep brain stimulation for psychiatric disorders. Neurosurg Clin N Am 2003;14:15-6.

5. Fins JJ. From psychosurgery to neuromodulation and palliation: history's lessons for the ethical conduct and regulation of neuropsychiatric research. Neurosurg Clin N Am 2003;14:303-19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2004
  • Data do Fascículo
    Mar 2004
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