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Transtorno da compulsão alimentar periódica: uma entidade clínica emergente que responde ao tratamento farmacológico

EDITORIAL

Transtorno da compulsão alimentar periódica: uma entidade clínica emergente que responde ao tratamento farmacológico

José Carlos Appolinario

Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares, Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia, RJ, Brasil

O termo compulsão alimentar se refere a episódios de comer em excesso caracterizados pelo consumo de grandes quantidades de comida em intervalos curtos de tempo, seguido por uma sensação de perda de controle sobre o que se está comendo. Em 1959, Stunkard1 descreveu este fenômeno clínico em indivíduos obesos. Mais recentemente, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition (DSM-IV), incluiu o episódio de compulsão alimentar como um componente principal na definição da bulimia nervosa (BN) e também de uma nova categoria diagnóstica proposta, denominada transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP). O TCAP pode ser considerado como um exemplo de um transtorno alimentar sem outra especificação e o conjunto de seus critérios diagnósticos provisórios foi incluído no Apêndice B da DSM-IV. De forma resumida, o diagnóstico de TCAP se aplica aos indivíduos que apresentam episódios recorrentes, incontroláveis e perturbadores de compulsão alimentar, porém, sem os comportamentos compensatórios como aqueles observados na BN. Muito embora não se encontre limitado aos indivíduos obesos, é um diagnóstico freqüentemente observado neste grupo, especialmente naqueles que procuram tratamento para perder peso. Enquanto a prevalência estimada de TCAP na população geral pode variar de 1,5 a 5%, em amostras clínicas de pacientes obesos encontra-se em torno de 7,5 a 30%. Além do mais, pacientes com TCAP usualmente evidenciam uma elevação maior do que a esperada em relação às taxas de psicopatologia alimentar (perturbações da imagem corporal) e psicopatologia geral (depressão, ansiedade e impulsividade).

Podemos notar que, desde que foi incluído no DSM-IV, a validade do diagnóstico de TCAP tem sido alvo de um intenso debate entre os clínicos e pesquisadores. Os limites discretos entre o TCAP e a BN não-purgativa e as altas taxas de remissão observadas em amostras da população geral são alguns dos argumentos contra a validade do TCAP como um diagnóstico independente. Por outro lado, a sua associação distintiva com uma psicopatologia alimentar nuclear, a convergência de condições clínicas e psiquiátricas e o comprometimento do funcionamento psicossocial reforçam a idéia do TCAP como um transtorno alimentar com gravidade clínica. Devlin e cols.2 abordaram o estado atual da nosologia do TCAP resumindo exaustivamente as evidências que pudessem apoiar ou refutar quatro formas de conceituá-lo. No primeiro modelo conceitual, o TCAP é considerado um subtipo distinto de transtorno alimentar; no segundo, um subtipo da BN; no terceiro, é visto como um subtipo comportamental de obesidade; e, no último modelo hipotético, o TCAP é considerado uma condição clínica que ocorre quando dois transtornos primários coexistem (a obesidade e a depressão, ou a obesidade e a impulsividade). No final do artigo, os autores concluem que, baseando-se nas evidências atuais, nenhum destes modelos poderia ser excluído completamente.

Também é muito importante reconhecer que, até o presente momento, a grande maioria dos diagnósticos psiquiátricos contemporâneos ainda não foi descrita como categorias válidas de doenças, por si mesmas. No entanto, isto não significa que não sejam construto de valor, apresentando uma grande utilidade clínica. Kendell3 propôs que "uma rubrica diagnóstica possui utilidade quando oferece informação considerada não trivial sobre o prognóstico e a resposta ao tratamento". De acordo com esta proposição, o TCAP pode ser considerado um conceito diagnóstico valioso. A aceitação definitiva do TCAP como uma categoria diagnóstica válida ainda aguarda estudos futuros direcionados ao esclarecimento de sua validade de construto. Apesar disso, a compulsão alimentar sem qualquer comportamento compensatório permanece um fenômeno clínico perturbador para aqueles que o experimentam. Este grupo de indivíduos é freqüentemente visto no atendimento clínico cotidiano e necessitamos de tratamentos específicos voltados para esta condição.

Medicamentos podem fazer parte de um tratamento multimodal do TCAP, que também inclui intervenções psicológicas e nutricionais. A farmacoterapia do TCAP é uma área que tem experimentado um desenvolvimento promissor nos últimos anos. Alguns ensaios clínicos randomizados, placebo-controlados, com diversos agentes, têm sido recentemente publicados.4 Os estudos farmacológicos conduzidos no TCAP têm apresentado um refinamento progressivo. Estes aperfeiçoamentos metodológicos podem ser observados em várias etapas da concepção dos estudos, como na inclusão de pacientes diagnosticados de acordo com os critérios da DSM-IV ou DSM-IV-TR, na introdução de medidas primárias de desfecho mais equivalentes (contagem da freqüência de episódios de compulsão alimentar), no uso de instrumentos padronizados para avaliar as psicopatologias alimentar e geral, e na avaliação de parâmetros antropométricos.

De uma maneira geral, três classes de medicamentos têm sido estudadas em ensaios controlados com placebo em pacientes com TCAP.5 Os antidepressivos – e de forma particular os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS) – permanecem como a classe farmacológica mais estudada nesta condição. Os ISRS (fluoxetina, fluvoxamina, sertralina e o citalopram) têm sido descritos como capazes de reduzir significativamente o comportamento de compulsão alimentar e o peso. Mais recentemente, a sibutramina,4 um agente antiobesidade, e o topiramato, um agente neuroterapêutico, demonstraram sua eficácia no TCAP.

Apesar destes refinamentos, alguns tópicos precisam ser considerados quando analisamos os estudos farmacológicos do TCAP. Um achado importante, especialmente observado nos primeiros estudos com medicamentos, foi a intensa resposta ao placebo evidenciada neste grupo de pacientes. Esta alta resposta, entretanto, não é um fenômeno exclusivo do TCAP. Ela é característica da maioria dos transtornos psiquiátricos. Por exemplo, Versiani6 também observou uma resposta placebo variável e pronunciada quando revisou os estudos farmacológicos de fobia social. De forma adicional, a síndrome de compulsão alimentar pode ter um curso clínico variável (com remissões e recaídas), o que pode contribuir para esta resposta placebo elevada. Uma outra importante limitação dos estudos farmacológicos no TCAP é que todos eles são estudos de curta duração, com períodos de 6 a 14 semanas. Dessa forma, não é certo se os efeitos terapêuticos observados podem ser generalizáveis para períodos de tratamento mais longos.

Em resumo, a farmacoterapia da compulsão alimentar encontra-se ainda em estágios iniciais de desenvolvimento. Entretanto, existem algumas evidências que sugerem que a compulsão alimentar, um fenômeno clínico freqüentemente observado, pode responder a diferentes abordagens farmacológicas. Estudos adicionais serão necessários para responder diversas questões como qual seria a medicação mais adequada, o regime mais apropriado de dose e duração de tratamento, assim como os efeitos de tratamentos combinados (medicação e psicoterapia, medicação e aconselhamento nutricional, etc).

Referências

1. Stunkard AJ. Eating patterns and obesity. Psychiatr Q. 1959;33:284-95.

2. Devlin MJ, Goldfein JA, Dobrow I. What is this thing called BED? Current status of binge eating disorder nosology. Int J Eat Disord. 2003;34[suppl.]:S2-S18.

3. Kendell R, Jablensky A. Distinguishing between the validity and utility of psychiatric diagnoses. Am J Psychiatry 2003;160:4-12.

4. Appolinario JC, Bacaltchuck J, Sichieri R, Claudino AM, Godoy-Mattos, Morgan C, Zanella MT, Coutinho W. A randomized, double-blind placebo controlled study of sibutramine in the treatment of binge-eating disorder. Arch Gen Psychiatry. 2003;60:1109-16.

5. Appolinario JC, Mc Elroy SL. Pharmacological approaches for the treatment of binge-eating disorder. Curr Drug Targets 2004;5(3):301-7.

6. Versiani M. A review of 19 double-blind placebo-controlled studies in social anxiety disorder (social phobia). World J Biol Psychiatry 2000;1(1):27-33.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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