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A importância de estudos epidemiológicos sobre o transtorno obsessivo-compulsivo

EDITORIAL

A importância de estudos epidemiológicos sobre o transtorno obsessivo-compulsivo

Estudos epidemiológicos são muito importantes em Psiquiatria, pois fornecem uma visão mais abrangente dos transtornos mentais, suas taxas de prevalência e incidência, curso natural, fatores de risco associados e necessidade de serviços de saúde. Casos da comunidade, ao contrário de casos clínicos, representam todos os portadores daquele transtorno numa população específica e não apenas aqueles que procuraram ou foram selecionados para tratamento. Sabe-se que o comportamento de procura por tratamento é influenciado por uma série de fatores, incluindo características sociodemográficas (idade, sexo, nível educacional, situação conjugal e ocupacional, classe social) e outras diretamente relacionadas aos transtornos (duração, gravidade e incapacitação, tipos de sintomas, comorbidade, etc).

Por diversos motivos, a relutância em procurar tratamento é particularmente importante quando pensamos no transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Indivíduos com esta condição procuram relativamente pouco os profissionais de saúde,1 mesmo quando esta interfere bastante em suas vidas, e apesar da disponibilidade de tratamentos efetivos. O TOC é reconhecido há muito tempo como um problema secreto, pois a maioria dos portadores mantém preservada a crítica sobre a irracionalidade dos sintomas; muitos consideram seus pensamentos obsessivos e rituais compulsivos ridículos ou inaceitáveis. Em função disso, eles os ocultam ao máximo, mesmo de seus familiares e, compreensivelmente, evitam contato com serviços de saúde. Na falta de orientação profissional, o desconhecimento das opções de tratamento é a regra.

Como apontado por Simonds & Elliot,2 pacientes com TOC podem não falar de seus sintomas não apenas por vergonha e medo do julgamento alheio, mas também por medo de serem internados ou presos (de serem considerados loucos ou perigosos por terem pensamentos de cunho agressivo ou sexual, por exemplo), ou pela crença mágica de que falar sobre um acontecimento temido pode fazer com que este de fato ocorra. Há evidências, também, de que eles podem revelar apenas os sintomas menos desagradáveis, ocultando os mais embaraçosos ou estranhos (por exemplo, rituais de verificação para prevenir acidentes podem parecer mais aceitáveis do que lavagens que chegam a ferir a pele ou pensamentos homicidas em relação a pessoas queridas). Portanto, a ocultação de sintomas no TOC é bastante compreensível, mas tem conseqüências significativas na busca por tratamento e no prognóstico.

Inquéritos populacionais importantes, conduzidos nos EUA e no Canadá, mostraram que apenas 34 a 37% dos portadores de TOC já haviam mencionado seus sintomas para algum médico,1 enquanto em amostras clínicas a demora média para procurar ajuda profissional foi estimada em 11 anos.2 Além de vergonha, fatores que podem contribuir para essa demora são: querer resolver o problema sozinho, achar que este vai melhorar sozinho ou que ninguém pode ajudar, não saber quem procurar e dificuldades financeiras.2 Medo de contaminação ou de outros estímulos obsessivos pode também manter alguns portadores longe dos serviços de saúde, assim como o medo de efeitos colaterais dos medicamentos. Outros podem procurar tratamento indiretamente com dermatologistas (por lesões secundárias a compulsões de lavagem),2 ou com clínicos gerais e infectologistas (para fazer testes repetidos de HIV), sem revelar o problema primário, seus sintomas obsessivo-compulsivos (OC). A idéia geral de que os casos em tratamento são mais graves não se aplica necessariamente ao TOC, pois alguns indivíduos podem ficar totalmente impossibilitados de sair de casa em função dos sintomas, ou perder a crítica em relação a eles, diminuindo a probabilidade de aceitarem tratamento. A cronicidade da condição também favorece uma situação não rara, em que os familiares acabam se adaptando aos sintomas e exigências do paciente no dia-a-dia, para evitar conflitos.

Outra característica importante do TOC, muito descrita tanto em estudos epidemiológicos quanto clínicos, são as altas taxas de coocorrência de outros transtornos psiquiátricos. A comorbidade pode aumentar as chances de procura por tratamento.1 No entanto, portadores de TOC podem achar mais aceitável falar de sintomas emocionais como depressão, fobias, ansiedade generalizada e ataques de pânico do que de suas obsessões e compulsões. Desta forma, sintomas de um transtorno associado podem levar a procurar ajuda, mas o diagnóstico primário pode permanecer ignorado.3 Na verdade, um estudo4 mostrou que sintomas OC são surpreendentemente sub-relatados em serviços de saúde: entre os 32 casos novos de TOC, nenhum disse que suas obsessões e compulsões foram a razão da procura por tratamento. A ocultação dos sintomas, seja na presença dos efeitos confundidores da comorbidade psiquiátrica ou não, é apenas uma das barreiras para o reconhecimento efetivo do TOC. Mesmo quando os sintomas OC são relatados, isso não garante que o transtorno seja adequadamente diagnosticado e tratado ou encaminhado.2 Um estudo,3 por exemplo, mostrou que 83% dos casos de TOC de serviços de atenção primária, na Inglaterra, haviam deixado de receber diagnóstico ou sido diagnosticados erroneamente.

O TOC não é um transtorno raro, tendo uma prevalência-ponto estimada em torno de 1% e uma prevalência na vida de aproximadamente 2% em várias partes do mundo.5 É também freqüentemente crônico e incapacitante, causando muito sofrimento e tendo um impacto negativo importante em várias esferas do funcionamento pessoal,1 de modo por vezes comparável a quadros psicóticos. Entretanto, pelas razões mencionadas, muitos portadores não procuram o sistema de saúde ou não recebem tratamento de saúde mental especializado, e não é surpreendente achar-se na comunidade indivíduos com sintomas de TOC clinicamente significativos, porém não tratados,2 e que podem diferir bastante daqueles que estão em tratamento. A maioria dos estudos epidemiológicos mostra, por exemplo, que o TOC é mais freqüente em mulheres do que em homens, não está associado com nível de escolaridade e a maioria dos casos tem apenas obsessões, ao contrário de estudos clínicos que sugerem uma taxa equivalente entre os sexos, nível educacional alto e um grande predomínio de casos com obsessões e compulsões associadas.5 Estudos populacionais detectaram, ainda, taxas menores de emprego e casamento no TOC, assim como nível socioeconômico mais baixo, comparado a pessoas sem transtornos mentais ou com outros transtornos de ansiedade. A co-ocorrência de transtornos por abuso de substâncias também parece ser mais comum em amostras populacionais do que clínicas.1,4 No entanto, grande parte do nosso conhecimento atual sobre o TOC se baseia em amostras clínicas que, como vimos, estão sujeitas a importantes vieses de seleção e não representam a totalidade dos portadores. Portanto, estudos epidemiológicos grandes, representativos e bem conduzidos têm um papel crucial na melhor compreensão desse transtorno sério, complexo e subdiagnosticado.

Albina R Torres

Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de

Medicina de Botucatu - UNESP

Martin J Prince

Section of Epidemiology, Institute of Psychiatry,

King's College, London, UK.

Referências

1. Mayerovitch JI, Du Fort GG, Kakuma R, Bland RC, Newman SC, Pinard G. Treatment seeking for obsessive-compulsive disorder: role of obsessivecompulsive disorder symptoms and comorbid psychiatric diagnoses. Compr Psychiatry. 2003;44:162-8.

2. Simonds LM, Elliot SA. OCD patients and non-patients groups reporting obsessions and compulsions: phenomenology, help-seeking, and access to treatment. Brit J Med Psychol. 2001;74:431-49.

3. Millar L, Tallis F. Obsessive-compulsive disorder detection rate in general practice. Clin Psychology Forum. 1999;134:4-8.

4. Nestadt G, Bienvenu J, Cai G, Samuels J, Eaton WW. Incidence of obsessive-compulsive disorder in adults. J Nerv Ment Dis. 1998;186:401-6.

5. Weissman MM, Bland RC, Canino GJ, Greenwald S, Hwu HG, Lee CK, et al. The cross national epidemiology of obsessive-compulsive disorder: the cross national collaborative group. J Clin Psychiatry. 1994;55(Supl 3):5-10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2005
  • Data do Fascículo
    Set 2004
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