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Epistemologia: quem precisa dela?

CARTA AOS EDITORES

Epistemologia: quem precisa dela?

Paulo L R Sousa; Bernardo L Horta; Ricardo T Pinheiro; Maria L Tiellet Nunes

Programa de pós-graduação em Saúde e Comportamento, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, Brasil, e Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Sr. Editor,

A epistemologia é a disciplina que estuda como construímos o conhecimento ou como sabemos o que cremos que sabemos. Recentemente, um editorial do CMAJ Editorial1 salientou a necessidade da utilização de marcos teóricos mais claros para construir questões de pesquisa pertinentes, ou seja, como construímos nosso conhecimento, ou quais crenças, ou fundamentos, embasam nossa pesquisa. Por exemplo, a velha teoria de que "o câncer de mama começa como uma enfermidade localizada e depois torna-se metástase",1 prevalente em nosso pensamento desde o início dos anos 90, dominou a maior parte dos desenhos de pesquisa até o período mais recente. Uma forte conseqüência dessa modelagem foi a promoção mundial do auto-exame de mama como um método seguro para a prevenção. Mas todo esse "conhecimento" está hoje questionado. O achado de que estágios iniciais do câncer de mama podem ocorrer com micro-metástases simultâneas na medula espinhal1 cria um conflito com o antigo modelo de pensamento e a necessidade de mudança. Achados como o anterior, ou outros, em muitas áreas diferentes, são fatos notáveis para os desafios epistemológicos. Na área dos desfechos psicoterapêuticos, muitos autores têm direcionado suas pesquisas sob a crença teórica de que as sessões de psicoterapia são comparáveis ao tratamento farmacológico. Alguns pesquisadores têm apontado para o "abuso da metáfora da droga"2 como um forte viés percebido por meio da análise epistemológica.

O uso da análise epistemológica dirigida ao enfoque crítico sobre o nosso conhecimento dá um novo alento aos pesquisadores. Em epidemiologia, os autores raramente dedicam tempo para a análise epistemológica. Victora et al3 enfatizaram que a construção de desenhos epidemiológicos adequados requer a análise dos marcos conceituais. Um modelo complexo – utilizando não somente os pressupostos estatísticos, mas também incluindo as bases sociais e biológicas – oferece interpretações mais significativas dos dados. Não levar em conta a necessidade de considerações epistemológicas "é comum na literatura epidemiológica e conduz à subestimação dos efeitos dos determinantes distais".3

A epistemologia enfoca os graus de certeza e probabilidade de um certo campo do conhecimento, buscando a validação e fundamentação lógica para afirmarmos o que afirmamos. A epistemologia possui uma variedade de objetivos: 1) clarificar os paradigmas que os pesquisadores utilizam para construir observações e teorias; 2) evidenciar a coerência interna e relacional entre as teorias; 3) determinar os níveis de confiabilidade dos construtos (o problema da certeza e da crença); e 4) desenhar a atividade mental (pensamento, linguagem, inferência, uso do raciocínio, utilização de preconceitos ocultos e a priori) utilizada para construir a ciência. A epistemologia pode ser compreendida como uma ciência cujo objetivo é a qualidade do conhecimento.

O valor universal da epistemologia foi primeiramente reconhecido nas ciências humanas. A raiz filosófica da epistemologia foi, provavelmente, o principal fator nessa performance pioneira. Hoje em dia, pesquisadores de dados demográficos (tais como os epidemiologistas) estão inclinados a identificar a utilidade da análise epistemológica de seus dados através da necessidade da utilização de modelos com desenhos mais complexos, que combinem métodos quantitativos e qualitativos.

Referências

1. Editorial. The epistemology of epidemiology. CMAJ. 2002;166(2):157.

2. Stiles WB & Shapiro DA. Abuse of the drug metaphor in psychotherapy process-outcome research. Clin Psychol Rev. 1989;9:521-43.

3. Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto MTA. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiology. 1997;26:224-7.

Financiamento: Núcleo de Pesquisa Núcleo de Pesquisa em Saúde e Comportamento (NUPESC), Universidade Católica de Pelotas. Registro: 561/03-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2005
  • Data do Fascículo
    Set 2004
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