Acessibilidade / Reportar erro

Rubim de Pinho: fragmentos da Psiquiatria Transcultural

LIVROS

Paulo Dalgalarrondo

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP).

Rubim de Pinho: Fragmentos da Psiquiatria Transcultural

Organizadores: Augusto C Conceição, Gabriel C Nery e Solange Rubim de Pinho. Salvador: EDUFBA (Editora da UFBA), 2002, 164 páginas.

ISBN: 85-232-0279-X

O Professor Álvaro Rubim de Pinho foi um daqueles grandes mestres que a jovem psiquiatria brasileira ainda não aprendeu a recordar e em nele se inspirar. Pesquisou com profundidade e lecionou com competência em áreas como psiquiatria clínica, forense, neuropsiquiatria e história da psiquiatria. Entretanto, a área em que sua produção mais se destacou, pela originalidade e importância, foi a psiquiatria transcultural. Assim, este pequeno mas denso livro é um precioso tesouro que seus organizadores oferecem ao público brasileiro.

Oito importantes e belos artigos de psiquiatria cultural de autoria de Mestre Rubim são reproduzidos na íntegra. O primeiro, "Aspectos Históricos da Psiquiatria Folclórica no Brasil", talvez seja o mais significativo, pois nele, após resenhar os poucos documentos que tratam da alienação mental em nossos três primeiros séculos de existência, passa a relatar suas entrevistas etnográficas referentes ao Banzo, ao Calundu e à Caruara, culture-bound syndromes brasileiras. Aqui, encontramos o psiquiatra-antropólogo cuidadoso na identificação e exploração de informantes-chave (Kankanfô, discípulo do babalaô Martiniano do Bonfim). Sem Rubim de Pinho a etnografia e psiquiatria cultural brasileira teriam perdido a chance de estudar importantes aspectos dessas entidades marcantes do sofrimento anímico afro-brasileiro, no período histórico de formação de nosso povo. Suas análises são críticas e ponderadas, mesclando sensibilidade histórica e etnológica a uma sólida base psiquiátrica. Não há afirmações apressadas ou sem base; avança atento e cuidadoso sobre os dados disponíveis (etnográficos, historiográficos e da literatura pertinente), teorizando sempre com cautela e senso crítico, deixando revelar o médico rigoroso dialogando com o etnógrafo sensível.

No segundo artigo, sobre a ascensão da mulher, tem-se uma análise histórica e crítica do lugar da mulher nas sociedades ocidentais.

No terceiro artigo, sobre aspectos socioculturais das depressões na Bahia, através do estudo de casos de depressão atendidos em hospital universitário, o pesquisador ajuda a derrubar antigo mito da etnopsiquiatria, o de que haveria uma incipiente incidência de depressão em populações pobres e iletradas dos países africanos e latino-americanos. Rubim de Pinho demonstra que a população negra e mestiça da Bahia deprime em proporções semelhantes às Européias e Norte-Americanas, mas deprime a seu modo, com muitos sintomas somáticos e poucas idéias de culpa, embora as idéias de suicídio sejam freqüentes.

No quarto artigo é analisada a função do psiquiatra em países subdesenvolvidos. Aqui há dois ensinamentos fundamentais: 1) o psiquiatra que lida com populações pobres e marginalizadas pertence às classes dominantes e esta condição é um dos principais limitantes a seu engajamento efetivo na reforma da assistência; 2) o psiquiatra pertence à cultura dominante e, muitas vezes, a arrogância de uma visão cientificista impede que ele enxergue o sofrimento da população que atende com os matizes culturais específicos necessários.

Os quinto e sexto artigos tratam da interseção entre psiquiatria e religião. Aqui, mais uma vez, o mestre disseca a cultura brasileira e baiana de forma sutil e erudita, e expõe sua tese de que não se deve cair nas tentações do reducionismo cientificista ou medicalizante. Estados de transe, curas simbólicas, manifestações religiosas não se reduzem a estados mentais alterados. É preciso o conhecimento aprofundado do contexto cultural para uma aproximação correta de tais fenômenos. O sincretismo cultural e a dinâmica social da religiosidade baiana foi plenamente incorporado nas análises de Mestre Rubim.

O sétimo artigo, sobre a cannabis no Brasil, é uma atraente contribuição à história cultural da maconha em nosso meio. Trazida pelos escravos, a maconha foi primeiro uma droga de uso popular de boa parcela das populações excluídas ("ópio dos pobres"), utilizada de forma lúdica, medicinal e eventualmente religiosa. A sua apropriação pelas camadas médias e altas é muito recente e exige uma nova "sociologia" para compreendê-la, tarefa da qual Mestre Rubim não se exime (apesar da complexidade), comentando, não sem um toque de ironia, que os pais das classes médias e altas tendem a atribuir à maconha a lentidão de seus filhos assumirem suas identidades e responsabilidades.

No último artigo, sobre o cultural e o histórico no campo do delírio, vemos como que uma síntese de três grandes vertentes da obra de Rubim de Pinho; o histórico, o clínico e o cultural. O delírio, enigma perene, fenômeno clínico de maior centralidade na psiquiatria, emerge não de um homem fisiológico, animal, mas de um ser que é, nas palavras de Jaspers, uma essência cultural. Assim, Mestre Rubim analisa profundamente o constante diálogo dos delirantes e seu meio histórico e cultural. Relata que, curiosamente, no meio brasileiro e baiano, os delírios de culpa, ciúmes, prejuízo e destruição são muito raros, enquanto os delírios persecutórios, particularmente as acusações de homossexualismo entre os homens delirantes, são os conteúdos mais freqüentes. Rubim de Pinho aprofunda a díade patogenia/patoplastia, revelando que a temática delirante é formada por uma combinação dos elementos culturais e psicológicos sedimentados ao longo da vida com as experiências marcantes vividas pelo sujeito já no curso da psicose.

Ao final do livro temos uma lista bem preparada das publicações de Rubim de Pinho. Foram 66 obras, as primeiras neurológicas, de 1945, e as últimas de conteúdo mais bem histórico, de 1992. A maior parte das obras situa-se nas áreas psiquiatria clínica, história da psiquiatria e psiquiatria transcultural. Uma obra densa, original, consistente, de um mestre que foi grande porque estudou com paixão e arte o sofrimento mental de seu povo, nas sutilezas e riquezas culturais que muitos insistem em não enxergar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
Associação Brasileira de Psiquiatria Rua Pedro de Toledo, 967 - casa 1, 04039-032 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5081-6799, Fax: +55 11 3384-6799, Fax: +55 11 5579-6210 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: editorial@abp.org.br