Acessibilidade / Reportar erro

Fisiopatologia do transtorno afetivo bipolar: o que mudou nos últimos 10 anos?

Resumos

Apesar dos crescentes esforços para o entendimento da neurobiologia do transtorno afetivo bipolar (TAB), sua exata fisiopatologia permanece indeterminada. Inicialmente, a pesquisa estava voltada para o estudo das aminas biogênicas, devido aos efeitos dos diversos agentes psicofarmacológicos. Mais recentemente, evidências apontam que disfunções nos sistemas de sinalização intracelular e de expressão gênica podem estar associadas ao TAB. Estas alterações podem estar associadas a interrupções nos circuitos reguladores do humor, como sistema límbico, estriado e córtex pré-frontal, sendo que os efeitos neuroprotetores do uso crônico dos estabilizadores de humor podem reverter este processo patológico. Este artigo tem como objetivo trazer uma atualização dos achados recentes sobre a neuroquímica do TAB.

Transtorno bipolar; Depressão; Neurobiologia; Neuroquímica


Despite recent efforts to understand the neurobiology of Bipolar Disorder (BD), the exact pathophysiology remains undetermined. Due to the effects of various psychopharmacological agents, initial research focused on the study of biogenic amines. Recent evidence has shown that dysfunction in intracellular signaling systems and gene expression may be associated with BD. These alterations may cause interruptions in mood regulating circuits such as the limbic system, striatum and prefrontal cortex, and the neuroprotective effects of mood stabilizers may reverse this pathological process. This study aims to update the recent findings relative to the neurochemistry of BD.

Bipolar disorder; Depression; Neurobiology; Neurochemistry


Fisiopatologia do transtorno afetivo bipolar: o que mudou nos últimos 10 anos?

Flávio KapczinskiI, II; Benício Noronha FreyI, III; Vanessa ZannattoI

ILaboratório de Psiquiatria Experimental, Centro de Pesquisas, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA)

IIDepartamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

IIIDepartamento de Bioquímica, Instituto de Ciências Básicas da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Flávio Kapczinski Laboratório de Psiquiatria Experimental Centro de Pesquisas Hospital de Clínicas de Porto Alegre Rua Ramiro Barcelos, 2350 90035-000 Porto Alegre, RS E-mail: kapcz@terra.com.br

RESUMO

Apesar dos crescentes esforços para o entendimento da neurobiologia do transtorno afetivo bipolar (TAB), sua exata fisiopatologia permanece indeterminada. Inicialmente, a pesquisa estava voltada para o estudo das aminas biogênicas, devido aos efeitos dos diversos agentes psicofarmacológicos. Mais recentemente, evidências apontam que disfunções nos sistemas de sinalização intracelular e de expressão gênica podem estar associadas ao TAB. Estas alterações podem estar associadas a interrupções nos circuitos reguladores do humor, como sistema límbico, estriado e córtex pré-frontal, sendo que os efeitos neuroprotetores do uso crônico dos estabilizadores de humor podem reverter este processo patológico. Este artigo tem como objetivo trazer uma atualização dos achados recentes sobre a neuroquímica do TAB.

Descritores: Transtorno bipolar/fisiopatogia; Depressão; Neurobiologia; Neuroquímica

Introdução

O transtorno afetivo bipolar (TAB) é uma doença crônica que afeta cerca de 1,6% da população1 e representa uma das principais causas de incapacitação no mundo.2 Nos últimos 10 anos, tem-se demonstrado que o TAB é um transtorno heterogêneo, com uma ampla variação de sintomatologia e curso.3 Apesar dos avanços dos métodos de pesquisa em psiquiatria biológica e do atual conhecimento sobre os mecanismos de ação dos estabilizadores de humor, a fisiopatologia do TAB está ainda distante de ser completamente entendida.

As teorias iniciais a respeito da fisiopatologia do TAB focaram-se particularmente no sistema de neurotransmissão das aminas biogênicas.4 As manifestações comportamentais e fisiológicas do TAB são complexas e indubitavelmente mediadas por uma cadeia de circuitos neurais interconectados; logo, não é surpreendente que os sistemas cerebrais que receberam maior atenção nos estudos neurobiológicos dos transtornos de humor tenham sido os monoaminérgicos, visto que são extensivamente distribuídos nos circuitos límbico-estriado-córtex pré-frontal, regiões que controlam as manifestações comportamentais dos transtornos de humor.5 Inicialmente, hipotetizou-se que a depressão e a mania resultariam de uma diminuição no transporte de transmissores no neurônio pré-sináptico e/ou nas vesículas sinápticas. As vesículas sinápticas, servindo como sistemas de "tampão", não seriam capazes de exercer sua função plenamente, e um déficit tanto quanto um superfluxo do neurotransmissor não seria satisfatoriamente contrabalançado. Uma resultante maior flutuação do transmissor na fenda sináptica poderia, portanto, ser responsável pela flutuação do humor.1 Entretanto, modelos de TAB focados em um único sistema de neurotransmissor ou neuromodulador não conseguem explicar suficientemente as diversas apresentações clínicas deste transtorno.

Estudos têm demonstrado que a regulação do humor envolve uma interação de múltiplos sistemas e que a maioria das drogas efetivas provavelmente não atua sobre um sistema de neurotransmissão particular isoladamente, mas modula o balanço funcional entre os diversos sistemas que interagem.6 Interações complexas entre sistemas neurais semi-independentes, funcionando harmonicamente, são necessárias para a manutenção do apetite, do sono, da estabilização do peso e do interesse na atividade sexual, funções neurovegetativas geralmente alteradas nos transtornos de humor.7 De fato, estudos pós-mortem demonstraram diminuição significativa de células gliais no córtex pré-frontal e sistema límbico e de células neuronais no córtex pré-frontal e hipocampo de indivíduos com TAB,8 corroborando os achados de alterações anatômicas e funcionais observados nos estudos de neuroimagem.9 Além disso, estudos farmacológicos evidenciaram atividade neuroprotetora dos estabilizadores de humor frente a uma série de modelos de neurotoxicidade10 e pesquisas recentes identificaram que a ação terapêutica destes fármacos envolve a regulação de diversos sistemas de sinalização intracelulares, segundos mensageiros e regulação da expressão gênica.11

Neurobiologia da regulação do humor

O processo de geração de estados afetivos complexos, isto é, a resposta sentimental e comportamental frente a diferentes estímulos (eventos estressantes) envolve: 1) a identificação do significado emocional do estímulo (estresse), 2) a produção de um estado afetivo específico em resposta ao estímulo e 3) a regulação da resposta afetiva e comportamental, que envolve a modulação dos processos 1 e 2, passos necessários para a obtenção de uma resposta contextualmente apropriada.12 Estudos de estimulação e de neuroimagem funcional em animais e humanos, incluindo pacientes com lesões cerebrais focais, demonstraram que a amígdala, o córtex insular e o núcleo caudado participam do processo de identificação do significado emocional do estímulo (passo 1), enquanto que o córtex pré-frontal ventrolateral, o córtex orbitofrontal, o córtex insular, o giro cingulado anterior, a amígdala e o estriado participam da resposta afetiva frente aos estímulos (passo 2). A regulação afetiva e comportamental, por sua vez (passo 3), é desempenhada pelo córtex pré-frontal dorsolateral e dorsomedial, pelo hipocampo e pelo giro cingulado anterior dorsal.7,12

Estudos que avaliaram a performance de pacientes bipolares em tarefas cognitivas demonstraram prejuízo nos testes de atenção e de memória de trabalho, além de dificuldade de reconhecimento de expressões faciais de medo, tristeza e alegria e tendência a perceber estímulos neutros como particularmente negativos.13 Estes achados são apoiados pelos estudos pós-mortem, que demonstraram diminuição significativa do número e densidade de células neuronais no córtex pré-frontal subgenual, dorsolateral e hipocampo8 e pelos estudos neurofuncionais, que observaram alterações no metabolismo da amígdala, do córtex insular, orbitofrontal e cingulado anterior dorsal e na cabeça do caudado.13 Em conjunto, esses estudos sugerem que sintomas como labilidade afetiva, ciclagem depressão/mania e distratibilidade, comumente associados ao TAB, podem estar associados a estas alterações em regiões cerebrais envolvidas no processamento das emoções.

Neurotransmissores

1. Sistema serotoninérgico

A serotonina (5-HT) modula diferentes atividades neuronais e, desse modo, diversas funções fisiológicas e comportamentais, como controle de impulsos, agressividade e tendências suicidas.14 Desta forma, diminuição da liberação e da atividade da 5-HT podem estar associadas a algumas anormalidades como ideação suicida, tentativas de suicídio, agressividade e distúrbios do sono, achados freqüentes nos transtornos bipolares.3 Desde a década de 70, Prange et al15 sugeriram a participação da 5-HT na fisiopatologia do TAB, formulando a hipótese permissiva, na qual um déficit na neurotransmissão serotoninérgica central permitiria a expressão tanto da fase maníaca, quanto da depressiva; contudo, tais fases difeririam em relação aos níveis de catecolaminas (noradrenalina e dopamina) centrais, que estariam elevadas na mania e diminuídas na depressão. Além disso, foi demonstrada diminuição dos níveis de ácido 5 hidroxiindolacético (5-HIAA), principal metabólito da serotonina, no CSF de pacientes maníacos e deprimidos em comparação a controles normais, sugerindo que tanto a mania quanto a depressão estão associados a uma redução na função serotoninérgica central. Um estudo pós-mortem de cérebros de pacientes com TAB também constatou níveis significativamente menores de 5-HIAA no córtex frontal e parietal, comparados com controles, fornecendo mais uma evidência para a hipótese de diminuição na atividade serotoninérgica central em transtornos bipolares.16 Estudos de desafio neuroendócrino, quando analisados em conjunto, sugerem que a atividade pré-sináptica da serotonina no SNC está diminuída, ao passo que a sensibilidade dos receptores pós-sinápticos está aumentada na mania.14

2. Sistema dopaminérgico

Um dos achados mais consistentes em relação ao papel da dopamina na neurobiologia do TAB é o fato de agonistas dopaminérgicos diretos e indiretos simularem episódios de mania ou hipomania em pacientes com transtorno bipolar subjacente ou predisposição ao mesmo.1,5 Ackenheil3 sugeriu que, embora os resultados não tenham sido consistentes, uma maior atividade dopaminérgica induzida por aumento da liberação, diminuição da capacidade de tamponamento pelas vesículas sinápticas ou pela maior sensibilidade dos receptores dopaminérgicos pode estar associada ao desenvolvimento de sintomas maníacos, enquanto a diminuição da atividade dopaminérgica estaria associada à depressão.

3. Sistema noradrenérgico

Estudos descrevem uma subfunção desse sistema nos estados depressivos. Nesses estados, um menor débito de noradrenalina e uma menor sensibilidade dos receptores a2 são relatados, em contraste com uma tendência de maior atividade da noradrenalina em estados maníacos.3 Neste sentido, Baumann et al17 observaram que indivíduos com TAB apresentaram um maior número de células pigmentadas no locus ceruleus, em comparação com pacientes unipolares. Além disso, Shiah et al14 sugeriram que uma função serotoninérgica central diminuída, associada a uma função noradrenérgica aumentada, poderia estar envolvida na gênese da mania.

4. Sistema GABAérgico

Dados clínicos indicam que um decréscimo na função GABAérgica acompanha os estados maníacos e depressivos, e que agonistas do GABA possuem propriedades antidepressivas e antimaníacas.18 Baixos níveis de GABA foram encontrados no plasma de pacientes bipolares em depressão e mania.19

5. Sistema glutamatérgico

A participação desse sistema na etiologia do TAB tem sido constatada por meio da ação dos estabilizadores do humor sobre a neurotransmissão glutamatérgica. O ácido valpróico aumenta a concentração de glutamato em culturas de neurônios e cérebros de animais e também estimula a liberação de glutamato no córtex cerebral do rato. Conseqüentemente, o aumento do glutamato pode induzir cronicamente mecanismos que mantêm o balanço do glutamato na sinapse por meio de um feedback negativo.11 O ácido valpróico também modula respostas fisiológicas mediadas por receptores N-metil-D-aspartato (NMDA), a-amino-3-hydroxy-5-metil-4-isoxazol-ácido propiônico (AMPA) e ácido kaínico (KA).20 A carbamazepina, por outro lado, suprime a liberação de glutamato, reduz a despolarização produzida por NMDA e bloqueia a elevação dos níveis de cálcio intracelular induzida por receptores NMDA e KA. O lítio agudamente aumenta as concentrações de glutamato na sinapse, cronicamente causando up-regulation da atividade do transportador. Hipotetiza-se que, eventualmente, ocorra estabilização da neurotransmissão excitatória com o uso crônico de lítio.11 Além disso, estudos recentes utilizando a técnica de espectroscopia por ressonância magnética demonstraram in vivo que pacientes bipolares apresentam aumento significativo da concentração de glutamina/glutamato no córtex pré-frontal dorsolateral e giro do cíngulo.21-22

Sinalização intracelular

Apesar da gama de alterações observadas no nível dos neurotransmissores e da interação desses com seus receptores, tem-se demonstrado que anormalidades em rotas de sinalização intracelular estão diretamente relacionadas a uma série de alterações nos sistemas de neurotransmissão.23-24 De fato, funções cerebrais de maior complexidade como o comportamento, o humor e a cognição são criticamente dependentes dos processos de transdução de sinal para o seu funcionamento adequado. Além disso, enquanto os efeitos bioquímicos do tratamento de transtornos do humor sobre os neurotransmissores na junção sináptica são imediatos (horas), a resposta clínica ocorre mais tardiamente (dias-semanas), salientando a importância central dos eventos intracelulares, envolvendo a regulação da expressão gênica e a plasticidade celular na regulação do humor.23,25

Proteínas G (proteínas ligantes de GTP) são moléculas que traduzem o sinal de um receptor transmembrana a ela acoplado para os segundos mensageiros intracelulares. A especificidade da interação do receptor com uma proteína G em particular determina a natureza do mecanismo efetor ao qual o receptor ativado estará acoplado. As proteínas G realizam a transdução de sinal de mais de 80% das moléculas extracelulares de sinalização, incluindo hormônios, neurotransmissores e neuromoduladores. Logo, são interessantes candidatas para anormalidades envolvendo a comunicação entre múltiplos sistemas neurais.26

Dois estudos iniciais demonstraram um aumento dos níveis da proteína G estimulatória (G) no córtex frontal, temporal e occipital de indivíduos com TAB,27-28 enquanto outro estudo demonstrou um aumento da atividade da G, quando estimulada por agonista.29 Em um estudo mais recente, foi demonstrado um aumento significativo da G entre os pacientes que não estavam em uso de lítio, mas não houve diferenças entre o total dos pacientes e os voluntários normais, sugerindo uma possível ação do lítio na atividade da G.30 Além disso, estudos com marcadores periféricos também demonstraram alterações dos níveis de G em pacientes com TAB,31-33 sugerindo que alterações desta proteína podem estar envolvidas na fisiopatologia do TAB.

Rota de sinalização da adenilato ciclase

A adenilato ciclase é uma enzima que converte o ATP no segundo mensageiro AMP cíclico (AMPc). A proteína Gs está envolvida na estimulação da adenilato ciclase, ao passo que a proteína Gi inibe essa enzima, sendo que a maioria dos receptores que regula a ação do AMPc o fazem através do seu efeito em uma dessas proteínas G. Um efeito central do AMPc é a ativação da proteína quinase A (PKA), uma enzima que regula canais iônicos, elementos do citoesqueleto e fatores de transcrição, constituindo, desse modo, um passo crítico nas modificações neurobiológicas duradouras. Um dos fatores de transcrição fosforilados e modulados pela PKA é a AMPc response element binding protein (CREB), que regula numerosos processos neuronais, incluindo excitação, desenvolvimento e apoptose de neurônios e plasticidade sináptica.34

Estudos pós-mortem e com células periféricas têm demonstrado, com consistência, aumento da atividade da adenilato ciclase, AMPc e da PKA em pacientes com TAB.35-36 Além disso, estudos farmacológicos têm demonstrado que o lítio, ácido valpróico e a carbamazepina possuem ação regulatória nesta via de sinalização.20

Rota de sinalização do fosfatidilinositol

A ativação de um receptor acoplado à cascata do fosfatidilinositol (PIP2) estimula uma proteína efetora chamada fosfolipase C, que induz a formação de dois importantes segundos-mensageiros: o diacilglicerol (DAG) e o inositol-1,4,5-trifosfato (IP3). A DAG, por sua vez, ativa a proteína quinase C (PKC), envolvida em processos celulares incluindo secreção, exocitose, expressão gênica, modulação da condução iônica, proliferação celular e down-regulation de receptores extracelulares. O IP3 regula a liberação das reservas de cálcio intracelular armazenadas no retículo endoplasmático. O cálcio liberado interage com numerosas proteínas celulares, incluindo um grupo de receptores sensíveis ao cálcio intracelular denominado calmodulinas (CaM), que ativam proteínas quinases dependentes de calmodulina (CaMK), levando à ativação de canais iônicos, moléculas sinalizadoras, apoptose e fatores de transcrição.26

Brown et al37 observaram níveis aumentados de PIP2 em plaquetas de bipolares maníacos. Este achado também foi observado na fase depressiva,38 enquanto outros estudos encontraram níveis diminuídos após tratamento com lítio.39-40 Da mesma forma, estudos pós-mortem e com células periféricas evidenciaram um aumento dos níveis de PKC em indivíduos com TAB41-42 e subseqüente diminuição com o tratamento com o lítio.43 De fato, a ação do lítio nesta via de sinalização foi demonstrada em dois estudos com espectroscopia por ressonância magnética (ERM), que demonstraram que o lítio diminui significativamente os níveis de myo-inositol, desta forma diminuindo a atividade desta via de sinalização.44-45 Utilizando a técnica de ERM, nosso grupo recentemente demonstrou que bipolares em episódio maníaco apresentam níveis significativamente aumentados de myo-inositol no córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo, em comparação a voluntários normais.

Regulação da expressão gênica e neuroproteção

A regulação das diversas cascatas de sinalização intracelular modula os fatores de transcrição gênica, proteínas que se ligam a genes específicos no DNA, induzindo a formação de novas proteínas envolvidas na plasticidade celular. Desta forma, alterações em qualquer nível da cascata podem provocar a morte celular através da formação de proteínas pró-apoptóticas ou da diminuição dos fatores de proteção/sobrevivência celular, como as neurotrofinas e proteínas estabilizadoras do citoesqueleto.

Estudos farmacológicos demonstraram com consistência que o lítio aumenta a sobrevivência celular em uma série de modelos de neurotoxicidade.10 Mais especificamente, o lítio promoveu aumento significativo da expressão da bcl-2 e do BDNF, proteínas envolvidas com neuroproteção46-47 e inibição da atividade da GSK3-b, uma proteína associada à apoptose,48 enquanto o ácido valpróico e, mais recentemente a lamotrigina, também demonstraram efeito inibitório na atividade da GSK3-b.49 Além disso, a regulação da estabilidade do RNAm durante a fase de transcrição gênica e formação de novas proteínas é um fator essencial na resposta celular em situações de estresse. Neste sentido, Chen et al50 demonstraram que o lítio e o ácido valpróico aumentam a expressão da proteína AUH, uma das proteínas que estabilizam o RNAm durante a fase de transcrição; desta forma, esses fármacos são capazes de regular a expressão de múltiplos genes no SNC, efeito este que pode ter um papel central no tratamento de uma doença complexa como o TAB.

Modelos animais

A escassez de modelos animais consistentes é uma das atuais limitações no entendimento da neurobiologia dos transtornos de humor.51 Até o presente, não existem modelos animais apropriados para o estudo do TAB, uma vez que os modelos atualmente disponíveis não conseguem mimetizar a ciclicidade das fases mania-depressão.52 Modelos animais de mania incluem indução com psicoestimulantes (anfetamina, cocaína),53-54 privação do sono,55 lesões cerebrais,56 estimulação elétrica57 e modelos genéticos.58 Os modelos animais de depressão, por sua vez, envolvem ablação do bulbo olfatório (hipótese hiposerotoninérgica),59 auto-estimulação intracraniana (dessensibilização do sistema de recompensa),60 isolamento social,61 nado forçado,62 estresse leve crônico,63 desesperança aprendida64 e modelos genéticos.65

Comentários

Os avanços das técnicas de pesquisa em biologia molecular têm demonstrado que o TAB está associado a alterações de substâncias intracelulares envolvidas na regulação de neurotransmissores, plasticidade sináptica, expressão gênica, sobrevivência e morte neuronal. Além disso, estudos pós-mortem observaram uma redução significativa das células nervosas em regiões cerebrais envolvidas na regulação do humor. No entanto, ainda não se pode determinar o papel da atrofia/morte neuronal na evolução da doença. Estudos prospectivos com indivíduos em 1º episódio e estudos genéticos em indivíduos em maior risco são estratégias interessantes de investigação nesta área.

É notável a crescente evidência da ação dos estabilizadores de humor na regulação de vias de sinalização intracelular implicadas nos processos de neuroplasticidade e neuroproteção.20,43,46,49 De fato, os efeitos clínicos dos estabilizadores de humor requerem tratamento crônico, consistente com o tempo necessário para a cascata de eventos intracelulares e subseqüente modulação da expressão gênica. A busca de novos medicamentos com atividade em vias de sinalização mais específicas é uma área promissora no tratamento de uma doença crônica e complexa como o TAB.

  • 1. Blazer DG. Mood disorders: epidemiology. In: Sadock BJ, Sadick VA, editors. Kaplan & Sadock's comprehensive textbook of psychiatry. 7th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, c2000. p. 1298-308.
  • 2. Murray CJ, Lopez AD. Global mortality, disability, and the contribution of risk factors: Global Burden of Disease Study. Lancet. 1997;349(9063):1436-42.
  • 3. Ackenheil M. Neurotransmitters and signal transduction processes in bipolar affective disorders: a synopsis. J Affec Disord. 2001;62(1-2):101-11.
  • 4. Ressler KJ, Nemeroff CB. Role of norepinefrine in the pathophysiology and treatment of mood disorders. Biol Psychiatry. 1999;46(9):1219-33.
  • 5. Brunello N, Tascedda F. Cellular mechanisms and second messengers: relevance to the psychopharmacology of bipolar disorders. Int J Neuropsychopharmacol. 2003;6(2):181-9.
  • 6. Chen G, Hasanat KA, Bebchuk JM, Moore GJ, Glitz D, Manji HK. Regulation of signal transduction pathways and gene expression by mood stabilizers and antidepressants. Psychosom Med. 1999;61(5):599-617.
  • 7. Davidson RJ, Lewis DA, Alloy LB, Amaral DG, Bush G, Cohen JD, et al. Neural and behavioral substrates of mood and mood regulation. Biol Psychiatry. 2002;52(6):478-502.
  • 8. Rajkowska G. Cell pathology in bipolar disorder. Bipolar Disord. 2002;4(2):105-16.
  • 9. Strakowski SM, DelBello MP, Adler C, Cecil DM, Sax KW. Neuroimaging in bipolar disorder. Bipolar Disord. 2000;2(3 Pt 1):148-64.
  • 10. Chuang DM, Chen RW, Chalecka-Franaszek E, Ren M, Hashimoto R, Senatorov V, et al. Neuroprotective effects of lithium in cultured cells and animal models of diseases. Bipolar Disord. 2002;4(2):129-36.
  • 11. Li X, Ketter TA, Frye MA. Synaptic, intracellular and neuroprotective mechanisms of anticonvulsants: are they relevant for the treatment and course of bipolar disorders? J Affect Disord. 2002;69(1-3):1-14.
  • 12. Phillips ML, Drevets WC, Rauch SL, Lane R. Neurobiology of emotion perception I: The neural basis of normal emotion perception. Biol Psychiatry. 2003;54(5):504-14.
  • 13. Phillips ML, Drevets WC, Rauch SL, Lane R. Neurobiology of emotion perception II: Implications for major psychiatric disorders. Biol Psychiatry. 2003;54(5):515-28.
  • 14. Shiah IS, Yatham LN. Serotonin in mania and in the mechanism of action of mood stabilizers: a review of clinical studies. Bipolar Disord. 2000;2(2):77-92.
  • 15. Prange AJ Jr, Wilson IC, Lynn CW, Alltop LB, Stikeleather RA. L-tryptophan in mania. Contribution to a permissive hypothesis of affective disorders. Arch Gen Psychiatry. 1974;30(1):56-62.
  • 16. Young LT, Warsh JJ, Kish SJ, Shannak K, Hornykeiwicz O. Reduced brain 5-HT and elevated NE turnover and metabolites in bipolar affective disorder. Biol Psychiatry. 1994;35(2):121-7.
  • 17. Baumann B, Danos P, Krell D, Diekmann S, Wurthmann C, Bielau H, et al. Unipolar-bipolar dichotomy of mood disorders is supported by noradrenergic brainstem system morphology. J Affect Disord. 1999;54(1-2):217-24.
  • 18. Petty F. GABA and mood disorders: a brief review and hypothesis. J Affect Disord. 1995;34(4):275-81.
  • 19. Petty F, Kramer GL, Fulton M, Moeller FG, Rush AJ. Low plasma GABA is a trait-like marker for bipolar illness. Neuropsychopharmacology. 1993;9(2):125-32.
  • 20. Lenox RH, Frazer A. Mechanism of action of antidepressants and mood stablizers. In: Davis KL, Charney D, Coyle JT, Nemeroff C, editors. Neuropsychopharmacology: the fifth generation of progress. Lippincott Williams & Wilkins; 2002. p. 1139-63.
  • 21. Michael N, Erfurth A, Ohrmann P, Gossling M, Arolt V, Heindel W, Pfleiderer B. Acute mania is accompanied by elevated glutamate/glutamine levels within the left dorsolateral prefrontal cortex. Psychopharmacology(Berl). 2003;168(3):344-6.
  • 22. Dager SR, Friedman SD, Parow A, Demopulos C, Stoll AL, Lyoo IK, et al. Brain metabolic alterations in medication-free patients with bipolar disorder. Arch Gen Psychiatry. 2004;61(5):450-8.
  • 23. Manji HK, Lenox RH. Signaling: cellular insights into the pathophysiology of bipolar disorder. Biol Psychiatry. 2000;48(6):518-30.
  • 24. Bezchlibnyk Y, Young LT. The neurobiology of bipolar disorder: focus on signal transduction pathways and the regulation of gene expression. Can J Psychiatry. 2002;47(2):135-48.
  • 25. Ghaemi SN, Boiman EE, Goodwin FK. Kindling and second messengers: an approach to the neurobiology of recurrence in bipolar disorder. Biol Psychiatry. 1999;45(2):137-44.
  • 26. Gould TD, Manji HK. Signaling networks in the pathophysiology and treatment of mood disorders. J Psychosom Res. 2002;53(2):687-97.
  • 27. Young LT, Li PP, Kish SJ, Siu KP, Warsh JJ. Postmortem cerebral cortex Gs alpha-subunit levels are elevated in bipolar affective disorder. Brain Res. 1991;553(2):323-6.
  • 28. Young LT, Li PP, Kish SJ, Siu KP, Kamble A, Hornykiewicz O, Warsh JJ. Cerebral cortex Gs alpha protein levels and forskolin-stimulated cyclic AMP formation are increased in bipolar affective disorder. J Neurochem. 1993;61(3):890-8.
  • 29. Friedman E, Wang HY. Receptor-mediated activation of G proteins is increased in postmortem brains of bipolar affective disorder subjects. J Neurochem. 1996;67(3):1145-52.
  • 30. Dowlatshahi D, MacQueen GM, Wang JF, Reiach JS, Young LT. G Protein-coupled cyclic AMP signaling in postmortem brain of subjects with mood disorders: effects of diagnosis, suicide, and treatment at time of death. J Neurochem. 1999;73(3):1121-6.
  • 31. Spleiss O, van Calker D, Scharer L, Adamovic K, Berger M, Gebicke-Haerter PJ. Abnormal G protein alpha(s)- and alpha(i2)-subunit mRNA expression in bipolar affective disorder. Mol Psychiatry. 1998;3(6):512-20.
  • 32. Avissar S, Nechamkin Y, Barki-Harrington L, Roitman G, Schreiber G. Differential G protein measures in mononuclear leukocytes of patients with bipolar mood disorder are state dependent. J Affect Disord. 1997;43(2):85-93.
  • 33. Mitchell PB, Manji HK, Chen G, Jolkovsky L, Smith-Jackson E, Denicoff K, et al. High levels of Gs alpha in platelets of euthymic patients with bipolar affective disorder. Am J Psychiatry. 1997;154(2):218-23.
  • 34. Walton MR, Dragunow I. Is CREB a key to neuronal survival? Trends Neurosci. 2000;23(2):48-53.
  • 35. Perez J, Zanardi R, Mori S, Gasperini M, Smeraldi E, Racagni G. Abnormalities of cAMP-dependent endogenous phosphorylation in platelets from patients with bipolar disorder. Am J Psychiatry. 1995;152(8):1204 6.
  • 36. Chang A, Li PP, Warsh JJ. Altered cAMP-dependent protein kinase subunit immunolabeling in post-mortem brain from patients with bipolar affective disorder. J Neurochem. 2003;84(4):781-91.
  • 37. Brown AS, Mallinger AG, Renbaum LC. Elevated platelet membrane phosphatidylinositol-4,5-bisphosphate in bipolar mania. Am J Psychiatry. 1993;150(8);1252-4.
  • 38. Soares JC, Dippold CS, Wells KF, Frank E, Kupfer DJ, Mallinger AG. Increased platelet membrane phosphatidylinositol-4,5-bisphosphate in drug-free depressed bipolar patients. Neurosci Lett. 2001;299(1-2):150-2.
  • 39. Soares JC, Chen G, Dippold CS, Wells KF, Frank E, Kupfer DJ, et al. Concurrent measures of protein kinase C and phosphoinositides in lithium-treated bipolar patients and healthy individuals: a preliminary study. Psychiatry Res. 2000;95(2):109-18.
  • 40. Soares JC, Mallinger AG, Dippold CS, Frank E, Kupfer DJ. Platelet membrane phospholipids in euthymic bipolar disorder patients: are they affected by lithium treatment? Biol Psychiatry. 1999;45(4):453-7.
  • 41. Wang HY, Friedman E. Enhanced protein kinase C activity and translocation in bipolar affective disorder brains. Biol Psychiatry. 1996;40(7):568-75.
  • 42. Wang HY, Markowitz P, Levinson D, Undie AS, Friedman E. Increased membrane-associated protein kinase C activity and translocation in blood platelets from bipolar affective disorder patients. J Psychiatr Res. 1999;33(2):171-9.
  • 43. Manji HK, Etcheberrigaray R, Chen G, Olds JL. Lithium decreases membrane-associated protein kinase C in the hippocampus: selectivity for the alpha isozyme. J Neurochem. 1993;61(6):2303-10.
  • 44. Moore GJ, Bebchuk JM, Parrish JK, Faulk MW, Arfken CL, Strahl-Bevacqua J, Manji HK. Temporal dissociation between lithium-induced changes in frontal lobe myo-inositol and clinical response in manic-depressive illness. Am J Psychiatry. 1999;156(12):1902-8.
  • 45. Davanzo P, Thomas MA, Yue K, Oshiro T, Belin T, Strober M, McCrocken J. Decreased anterior cingulate myo-inositol/creatine spectroscopy resonance with lithium treatment in children with bipolar disorder. Neuropsychopharmacology. 2001;24(4):359-69.
  • 46. Chen RW, Chuang DM. Long term lithium treatment suppresses p53 and Bax expression but increases Bcl-2 expression. A prominent role in neuroprotection against excitotoxicity. J Biol Chem. 1999;274(10):6039-42.
  • 47. Hashimoto R, Takei N, Shimazu K, Christ L, Lu B, Chuang DM. Lithium induces brain-derived neurotrophic factor and activates TrkB in rodent cortical neurons: an essential step for neuroprotection against glutamate excitotoxicity. Neuropharmacology. 2002;43(7):1173-9.
  • 48. Hong M, Chen DC, Klein PS, Lee VM. Lithium reduces tau phosphorylation by inhibition of glycogen synthase kinase-3. J Biol Chem. 1997;272(40):25326-32.
  • 49. Li X, Bijur GN, Jope RS. Glycogen synthase kinase 3beta, mood stabilizers, and neuroprotection. Bipolar Disord. 2002;4(2):137-44.
  • 50. Chen G, Huang LD, Zeng WZ, Manji H. Mood stabilizers regulate cytoprotective and mRNA-binding proteins in the brain: long-term effects on cell survival and transcript stability. Int J Neuropsychopharmacol. 2001;4(1):47-64.
  • 51. Manji HK, Drevets WC, Charney DS. The cellular neurobiology of depression. Nat Med. 2001;7(5):541-7.
  • 52. Machado-Vieira R, Kapczinski F, Soares JC. Perspectives for the development of animal models of bipolar disorder. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. 2004;28(2):209-24.
  • 53. Cappeliez P, Moore E. Effects of lithium on an amphetamine animal model of bipolar disorder. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. 1990;14(3):347-58.
  • 54. Antelman SM, Caggiula AR, Kucinski BJ, Fowler H, Gershon S, Edwards DJ, et al. The effects of lithium on a potential cycling model of bipolar disorder. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. 1998;22(3):495-510.
  • 55. Gessa GL, Pani L, Fadda P, Fratta W. Sleep deprivation in the rat: an animal model of mania. Eur Neuropsychopharmacol. 1995;5 Suppl:89-93.
  • 56. Wilkinson LS, Mittleman G, Torres E, Humby T, Hall FS, Robbins TW. Enhancement of amphetamine-induced locomotor activity and dopamine release in nuclear accumbens following excitotoxic lesions of the hippocampus. Behav Brain Res. 1993;55(2):143-50.
  • 57. Post RM, Weiss SR, Leverich GS, Smith M, Zhang LX. Sensitization and kindling-like phenomena in bipolar disorder: implication for psychopharmacology. Clin Neurosci Res. 2001;1(1):69-81.
  • 58. Niculescu AB 3rd, Segal DS, Kuczenski R, Barrett T, Hauger RL, Kelsoe JR. Identifying a series of candidate genes for mania and psychosis: a convergent functional genomics approach. Physiol Genomics. 2000;4(1):83-91.
  • 59. Connor TJ, Song C, Leonard BE, Anisman H, Merali Z. Stressor-induced alterations in serotonergic activity in an animal model of depression. Neuroreport. 1999;10(3):523-8.
  • 60. Simpson DM, Annau Z. Behavioral withdrawal following several psychoactive drugs. Pharmacol Biochem Behav 1977;7(1):59-64.
  • 61. Garzon J, Fuentes JA, Del Rio J. Antidepressants selectively antagonize the hyperactivity induced in rats by long-term isolation. Eur J Pharmacol. 1979;59(3-4):293-6.
  • 62. Porsolt RD, Le Pichon M, Jalfre M. Depression: a new animal model sensitive to antidepressant treatments. Nature. 1977;266(5604):730-2.
  • 63. Willner P. Validity, reliability and utility of the chronic mild stress model of depression: a 10-year review and evaluation. Psychopharmacology(Berl). 1997;134(4):319-29.
  • 64. Seligman ME, Beagley G. Learned helplessness in the rat. J Comp Physiol Psychol. 1975;88(2):534-41.
  • 65. Yadid G, Nakash R, Deri I, Tamar G, Kinor N, Gispan I, Zangen A. Elucidation of the neurobiology of depression: insights from a novel genetic animal model. Prog Neurobiol. 2000;62(4):353-78.
  • Endereço para correspondência
    Flávio Kapczinski
    Laboratório de Psiquiatria Experimental
    Centro de Pesquisas
    Hospital de Clínicas de Porto Alegre
    Rua Ramiro Barcelos, 2350
    90035-000 Porto Alegre, RS
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2004
    Associação Brasileira de Psiquiatria Rua Pedro de Toledo, 967 - casa 1, 04039-032 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5081-6799, Fax: +55 11 3384-6799, Fax: +55 11 5579-6210 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: editorial@abp.org.br