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Esquizofrenia e distorção da imagem corporal: considerações nosológicas

Schizophrenia and body image distortion: nosological considerations

CARTAS AOS EDITORES

Esquizofrenia e distorção da imagem corporal: considerações nosológicas

Schizophrenia and body image distortion: nosological considerations

Sr. Editor,

Relatos de pacientes esquizofrênicos apresentando delírios de cunho somático e distorções da imagem corporal são encontrados desde o início do século XX, tendo sido descritos, inclusive, por Eugen Bleuler.1 O termo "esquizofrenia cenestopática" foi proposto por Huber, em 1957, como um subtipo daquela doença,2 caracterizado por queixas corporais predominantes e contínuas. Esta denominação não está incluída nas modernas classificações psiquiátricas (CID-10 e DSM-IV-TR), tendendo a desaparecer da nosologia psiquiátrica.

Neste trabalho, descrevemos o caso de uma paciente do sexo feminino, 31 anos, solteira, sem filhos, sem profissão, com oito anos de escolaridade. Vivia com a mãe e o irmão (este com diagnóstico de esquizofrenia). Não apresentava antecedente pessoal de transtorno psiquiátrico. Após seis meses de admissão em nosso serviço, passou a evoluir com ideação delirante persecutória (acreditava que pessoas planejavam matá-la ou prejudicar sua saúde), reforçada por vozes alucinatórias que dialogavam com a paciente e referiam-se à mesma em terceira pessoa. Paralelamente, iniciou comportamento caracterizado por ingesta, em grande quantidade, de alimentos de alto valor calórico. Fazia três refeições básicas com episódios de hiperingesta entre as mesmas, por vezes ingerindo 3.000 a 5.000 calorias ao dia. Por ocasião da admissão, afirmava ter sido vitimada por um "feitiço" que acarretava perda de peso e que seus pensamentos eram "controlados" por pessoas que desejavam que ela se tornasse progressivamente mais magra. Seu afeto tendia ao embotamento e seu humor não se encontrava polarizado. Desde o início do quadro, ganhou aproximadamente 15 kg (cerca de dois kg por mês) e, não obstante exibir peso acima do ideal, dizia enxergar a si própria como uma pessoa extremamente magra. Referia que o peso acima citado seria resultado de erros de mensuração, ou seja, que as balanças esta-riam "defeituosas".

Durante a internação, a paciente foi tratada com medicação antipsicótica, seguimento nutricional e atendimento psicoterápico de orientação cognitivo-comportamental. Uma vez que não apresentou resposta com monoterapia (haloperidol até 15 mg, risperidona até 8 mg e ziprasidona até 160 mg), optou-se, por fim, pela associação de ziprasidona 160 mg e risperidona 8 mg ao dia. Houve melhora da sintomatologia psicótica e da hiperingesta alimentar, embora a paciente ainda mantivesse distorção da imagem corporal, crenças delirantes residuais (acreditava que as diversas balanças do hospital poderiam ter sido modificadas para indicar valores superiores aos reais quando de sua pesagem) e sobrepeso (manteve peso de 70 kg, com índice de massa corporal = 28 Kg/m2, apesar de se encontrar sob acompanhamento nutricional). Recebeu alta após três meses de internação, sendo encaminhada para continuidade de seu tratamento em regime de hospital-dia.

A paciente em questão apresentava sintomas claramente compatíveis com o diagnóstico de esquizofrenia segundo os crité-rios do DSM-IV-TR. Concomitantemente, exibia clara sintomatologia relacionada a alterações da imagem corpórea e comportamento alimentar alterado. Estas alterações, embora sugestivas da presença de um transtorno alimentar comórbido, não possibilitaram que a paciente fosse considerada portadora de um transtorno desta natureza segundo as classificações psiquiátricas atuais. Casos semelhantes encontrados na literatura apontam para a existência de elementos comuns entre transtornos psicóticos, dismorfofobia e, possivelmente, um subgrupo de pacientes portadores de transtornos alimentares, gerando dificuldades de natureza nosológica e diagnóstica.1,3-4 A literatura ainda é escassa no que se refere ao manejo de casos semelhantes e pouco se tem documentado sobre as possíveis abordagens terapêuticas. Por fim, cabe destacar que delírios bizarros e sintomas cenestopáticos parecem estar associados a pior prognóstico em pacientes psicóticos.5

Leonardo Baldaçara, Luciana P C Nóbrega,

Andréa Freirias, Ana Paula Marques, Marsal Sanches

Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Ciências

Médicas, Santa Casa de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil

Referências

1. Foulon C. Schizophrenia and eating disorders. Encephale. 2003;29(5):463-6.

2. Kato S, Ishiguro T. Clinical courses of hypochondriac-cenesthopatic symptoms in schizophrenia. Psychopathology. 1997;30(2):76-82.

3. Phillips KA. Psychosis in body dysmorphic disorder. J Psychiatr Res. 2004;38(1):63-72.

4. De Leon J, Bott A, Simpson GM. Dysmorphophobia: body dysmorphic disorder or delusional disorder, somatic subtype? Compr Psychiatry. 1989;30(6):457-72.

5. Morozov PV. [Prognosis of juvenile schizophrenia with dysmorphophobic disorders (according to catamnestic findings]. Zh Nevropatol Psikhiatr Im S S Korsakova. 1976;76(9):1358-66. Russian.

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: Inexistente

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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