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Saúde mental da mulher no Brasil: desafios clínicos e perspectivas em pesquisa

Saúde mental da mulher no Brasil: desafios clínicos e perspectivas em pesquisa

Joel Rennó JrI; César Eduardo FernandesII; João Carlos ManteseIII; Gislene Cristina ValadaresIV; Ângela Maggio FonsecaV; Mara DiegoliV; Silvia BrasilianoI; Patrícia HochgrafI

IInstituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

IISetor de Ginecologia Endócrina, Planejamento Familiar e Climatério, Disciplinas de Ginecologia e Obstetrícia, Universidade do Grande ABC (UNIABC), Santo André (SP), Brasil

IIIHospital Pérola Byington, São Paulo (SP), Brasil

IVServiço de Saúde Mental da Mulher, Hospital de Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte (MG), Brasil

VAmbulatório de Ginecologia, Divisão de Medicina Ginecológica, Hospital das Clínicas, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil

Correspondência Correspondência Joel Rennó Jr Pró-Mulher, Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo Rua Teodoro Sampaio, 352 - cj 127 - Pinheiros 05406-000 São Paulo, SP, Brasil Tel: (11) 3083-5278/(11) 3061-1494 Fax: (11) 3898-1246 E-mail: promulher_hc_fmusp@terra.com.br

RESUMO

O atendimento da saúde mental da mulher no Brasil permanece limitado pela falta de serviços especializados e pouco treinamento ou produtividade em pesquisa. Apesar disso, nos últimos vinte anos houve uma série de iniciativas promissoras para a integração de serviços ginecológicos e de saúde mental, visando oferecer um atendimento clínico multidisciplinar. Este artigo revê algumas destas iniciativas e discute seus pontos fortes e deficiências.

Descritores: Saúde da mulher; Saúde mental; Brasil

Introdução

A preocupação com a saúde mental da mulher no Brasil sofreu uma mudança nos últimos 40 anos. O conceito de controle de natalidade deu lugar ao conceito de saúde reprodutiva, que compreende a saúde da mulher e seus direitos. Nos anos 90, o Programa de Assistência Integrada à Saúde da Mulher (PAISM) foi criado, com base no trabalho pioneiro do Hospital Pérola Byington. Naquele momento, os principais objetivos eram:

1) Definir as prioridades nas questões de saúde pública;

2) Integrar a atenção à saúde para atender à demanda estimulada por pacientes sintomáticas com um sistema que poderia ser sincronizado no tempo e no espaço com intervenções epidemiológicas e preventivas;

3) Expandir as atividades integradas de saúde, utilizando profissionais tais como psicólogos, psiquiatras e nutricionistas;

4) Diminuir, sempre que possível, a burocracia existente;

5) Obter a aprovação e encorajar a dedicação à saúde da mulher em todos os níveis do sistema de saúde.

Este conceito mais amplo de saúde reprodutiva focava-se especialmente na assistência à saúde física e mental da mulher, desde a adolescência à terceira idade, de uma forma mais abrangente, com prioridades definidas de acordo com dados epidemiológicos sólidos. No entanto, em um país com tanta diversidade como o Brasil, a aplicação prática da assistência integrada para o conceito de saúde da mulher permanece problemática. As condições requeridas incluem vontade política, organização do próprio sistema de saúde de acordo com modelos descentralizados e estímulo e treinamento apropriados da equipe de saúde que permitam a integração dos esforços dos profissionais de diferentes áreas profissionais.

A política governamental, exceto alguns esforços no sentido contrário, permanece sendo a de organizar campanhas focadas em problemas isolados enfrentados pelas mulheres, tais como câncer cervical e de mama e doenças sexualmente transmissíveis; há falta de esforços mais integrados e pesquisas com um escopo mais amplo. No entanto, há vários hospitais e centros acadêmicos que procuram, dentro de suas limitações, prover atenção multiprofissional de saúde à saúde da mulher, durante os diferentes estágios do ciclo reprodutivo feminino. Este artigo descreve as características de vários desses centros especializados de apoio à saúde da mulher no Brasil.

Serviços de endocrinologia/Ginecologia do climatério

1. Hospital Pérola Byington

A idéia de estabelecer este serviço especializado proveio do fato de que cerca de 40% dos pacientes que compareciam ao hospital na verdade sofriam de problemas relacionados à menopausa.

A equipe compõe-se de nove médicos, juntamente com enfermeiras, nutricionistas e psicólogos.

Um total de 2.256 consultas foi realizado, representando 720 horas de atenção mensal.

A população atendida tinha as seguintes características:

1) Idade média: 53,5 anos

2) Etnia: 79% brancos

3) Estado civil: 94% eram mulheres casadas ou participavam de um casal estável

4) Nível de escolaridade: 65% das mulheres tinham menos de oito anos de escolaridade

5) Ocupação: 93% dos pacientes eram "do lar"

O modelo atualmente adotado no Hospital Pérola Byington para a assistência integrada à saúde da mulher é caro, já que realiza uma série de procedimentos de saúde independentemente das queixas da paciente. Alguns desses procedimentos poderiam também ser realizados nas clínicas de saúde que provêm atenção primária à saúde, mas eles são raramente realizados nesses lugares. Entretanto, as vantagens do sistema incluem o reduzido número de consultas hospitalares e a detecção precoce das doenças com maiores chances de cura, assim como menores custos em tratamentos menos radicais. O gerenciamento estabelecido tem procurado fornecer esse tipo de atenção às mulheres no climatério, ao mesmo tempo em que também torna acessíveis os medicamentos necessá-rios em colaboração com a Secretaria de Saúde.

A equipe de psicologia do hospital realiza, atualmente, estudos psicopedagógicos e psicológicos. A pesquisa é facilitada pela assistência médica que se baseia em protocolos que cobrem todos os desfechos diagnósticos e terapêuticos.

2. Escola de Medicina do ABC

A equipe multiprofissional que trabalha nesse setor consiste de ginecologistas, psicólogos, enfermeiras e fisioterapeutas. Há 36 médicos residentes, provindos da residência de três anos em ginecologia e obstetrícia, que participam na atenção médica, ensino e atividades de pesquisa.

A principal unidade de atenção e ensino, localizada no Centro de Atenção Integrada à Saúde da Mulher (CAISM), na cidade de São Bernardo do Campo-SP, tinha 3.005 pacientes no climatério em seus registros ao final do ano de 2004. O ambulatório de Ginecologia Endócrina realizou 365 consultas. A população atendida tinha um índice de longevidade de 67 anos, sendo 95,4% da população alfabetizada e 32,5% com 4 a 7 anos de escolaridade.

Os diagnósticos mais comuns nas consultas incluem síndrome climatérica, distúrbios de peso, transtornos do humor, tensão pré-menstrual e síndromes metabólicas.

Cursos educativos são organizados para aquelas pacientes que utilizam os serviços. As principais dificuldades enfrentadas por esse grupo incluem problemas de financiamento para realizar pesquisas e a pequena interação com os outros serviços. Atualmente, há pequena interação com a psiquiatria, ainda que exista envolvimento maior do setor de ginecologia endócrina com outras disciplinas da Faculdade de Medicina do ABC.

3. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

A equipe médica multiprofissional inclui 10 ginecologistas, um endocrinologista, um psiquiatra, quatro estudantes de pós-graduação, um fisioterapeuta e vários estagiários.

A população atendida é principalmente constituída de mulheres em idade reprodutiva com distúrbios endócrinos, juntamente com mulheres em transição à menopausa. O tratamento oferecido inclui atenção clínica (terapia hormonal), psiquiátrica e, inclusive, cirúrgica. Entre as principais dificuldades encontradas estão os problemas das pacientes para aderirem ao tratamento, falta de medicamentos fornecidos pelo SUS, sobrecarga de pacientes e falta de instalações adequadas. Apesar das dificuldades, pós-graduandos e médicos assistentes têm realizado vários projetos de pesquisa.

Serviços de saúde mental da mulher

1. Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Há dois centros especializados: o Projeto de Atenção à Saúde Mental da Mulher (Projeto Pró-Mulher) e o Projeto de Atenção à Mulheres Usuárias de Drogas (PROMUD).

O Pró-Mulher foi fundado em 1993, iniciado por um psiquiatra, Dr. Cláudio Soares. A iniciativa inovadora para criar um serviço dedicado à saúde mental da mulher foi estimulada pela alta demanda de casos de mulheres relacionados a problemas reprodutivos atendidos durante o trabalho feito pelo Dr. Soares no Grupo de Interconsultas, na mesma instituição. Inicialmente, o Pró-Mulher foi estruturado para realizar atividades clínicas, de ensino e pesquisa. Atualmente, esse grupo possui uma equipe multiprofissional de quatro psiquiatras, seis psicólogos e três nutricionistas. Existem consultores clínicos nas áreas de ginecologia, obstetrícia e endocrinologia. O grupo colabora na atenção clínica e nos projetos de pesquisa que envolvem transtornos relacionados ao ciclo reprodutivo da mulher, tais como transtornos disfóricos pré-menstruais, transtornos de humor e ansiedade pré-natal e pós-natal e transtornos relacionados à menopausa.

O tratamento oferecido inclui medicamentos e psicoterapia individual e em grupo, na qual os pacientes são agrupados com base na faixa etária e na principal queixa. As principais queixas físicas são dores de cabeça, hipersensibilidade dolorosa nas mamas, alterações no sono, cólicas menstruais, alterações no estímulo ou desejo sexual e sudorese. As queixas psicológicas e cognitivas mais comuns são labilidade do humor (82%), ansiedade (80,5%), irritabilidade (79%), falta de energia (70,5%), baixa auto-estima (63%), impulsividade (60%), isolamento social (60%) e dificuldades de memória (59%).

As dificuldades enfrentadas por este grupo incluem falta de recursos financeiros e a falta de experiência em pesquisa - apesar da vasta experiência clínica de todos os membros da equipe -, assim como a ausência de um apoio mais consistente por parte dos ginecologistas. No entanto, um acordo formal foi recentemente realizado com o Serviço de Obstetrícia na mesma Faculdade de Medicina para uma colaboração em assistência e pesquisa.

A população atendida pelo PROMUD consiste de mulheres com dependência de substâncias psicoativas (segundo o DSM-IV), com 18 anos ou mais. O PROMUD combina enfoques cognitivo-comportamentais para alguns aspectos do tratamento, tais como a prevenção de recaídas, com enfoques psicodinâmicos para ajudar as mulheres a entenderem suas emoções e sofrimentos. O programa oferece tratamento psiquiátrico, psicoterapia individual, psicoterapia de família, terapia ocupacional individual e aconselhamento nutricional para mulheres com transtornos alimentares associados. Setenta por cento das mulheres atendidas pelo PROMUD demonstram recuperação total ou parcial do funcionamento global, bem como uma redução do consumo ou abstinência de álcool e outras drogas. Os obstáculos enfrentados são a falta de recursos financeiros e o insuficiente espaço físico adequado para tratar os grupos.

2. Serviço Psiquiátrico do Hospital de Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais

A equipe consiste de um psiquiatra, dois psicólogos, um terapeuta musical e um escultor. Os pacientes são encaminhados pelos Serviços de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como por outros hospitais públicos. Cem pacientes, em média, são tratadas por mês, com idade média em torno de 35 anos. Os principais problemas detectados entre esses pacientes são a falta de auto-estima, os relacionados à sexualidade e a discriminação laboral por razões de gênero. O serviço oferece atenção psiquiátrica e psicoterapia individual e em grupo, assim como musicoterapia e arteterapia, em programas de 12 semanas.

Os transtornos psiquiátricos comumente encontrados neste serviço incluem transtorno disfórico pré-menstrual, transtornos relacionados à gravidez e ao puerpério, transtornos ligados à infertilidade, bem como abuso ou violência às mulheres. As dificuldades continuam, relacionadas a questões institucionais e pessoas preconceituosas que discriminam serviços específicos de gênero. Finalmente, a atual falta de títulos acadêmicos daqueles que prestam o serviço continua sendo um obstáculo para obter fundos para projetos de pesquisa. Há pouca integração com outros serviços similares.

3. Centro de Apoio à Mulheres com Tensão Pré-menstrual, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Este centro, vinculado à Clínica Ginecológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, foi inaugurado em 1993 e compreende um ginecologista, com apoio e colaboração de um psicólogo, e uma assistente social do mesmo serviço.

Há extenso trabalho em colaboração com o Pró-Mulher, já descrito. As pacientes são mulheres com idades entre 15 e 55 anos. Em média, 20 pacientes por semana são atendidas. Os sintomas mais freqüentes são os psicológicos, tais como depressão, irritabilidade, baixa auto-estima, agressividade e ansiedade. Quando os sintomas ocorrem exclusivamente durante o período pré-menstrual, um ginecologista lida com eles. Se os problemas persistem durante o ciclo menstrual, as pacientes são encaminhadas ao Pró-Mulher.

As intervenções terapêuticas mais empregadas envolvem o uso de hormônios para suprimir a menstruação, medicações sintomáticas, antidepressivos, ansiolíticos e fitoterapias.

É oferecida orientação sobre o comportamento, compreendendo aconselhamento de como lidar com tais sintomas, alguns exercícios físicos a serem realizados, bem como assistência relacionada à dieta durante a fase pré-menstrual. As pacientes que necessitam de psicoterapia são encaminhadas ao Instituto de Psiquiatria. Os principais problemas incluem o pequeno tamanho da equipe multiprofissional e a falta de recursos.

Conclusões

A atenção à saúde da mulher no setor de saúde pública, apesar dos limitados recursos financeiros e dos problemas burocráticos, possui vários centros de excelência, integrando atenção à saúde e atividades preventivas em vários períodos da vida reprodutiva da mulher. Há crescente preocupação nesses centros, assim como entre os serviços ginecológicos e instituições acadêmicas, sobre a necessidade de uma maior integração com os serviços dedicados à saúde mental.

Com relação aos poucos serviços no Brasil que se especializam na saúde da mulher, ainda que forneçam uma atenção de alta qualidade, permanecem limitados devido à falta de recursos financeiros, ao treinamento inadequado e à baixa produtividade. Há uma necessidade absoluta de um trabalho colaborativo maior com centros nacionais e internacionais para o desenvolvimento de serviços clínicos e atividades de pesquisa e pós-graduação

Financiamento: Nenhum

Conflito de interesses: Nenhum

  • Correspondência
    Joel Rennó Jr
    Pró-Mulher, Instituto de Psiquiatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2005
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