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Importância dos aspectos culturais em um caso com agitação psicomotora

Cultural aspects importance in a case with psychomotor agitation

CARTAS AOS EDITORES

Importância dos aspectos culturais em um caso com agitação psicomotora

Cultural aspects importance in a case with psychomotor agitation

Sr. Editor,

A globalização tem derrubado as fronteiras mundiais. Tem colocado os médicos da atualidade em contato mais freqüente com pacientes de diferentes etnias e culturas. Segundo Konner, diferentes atitudes, conhecimentos e condutas são necessários para a prática clínica neste novo século.1 Em virtude desse fato passou-se a dar importância a psiquiatria transcultural, que pode fornecer as ferramentas para diagnóstico e tratamento efetivo através da remoção das barreiras culturais e lingüísticas.1 Relatamos o caso de uma paciente de 32 anos, casada, com prendas domésticas, natural e procedente de Menongue, Angola. A paciente foi levada por amigos ao Pronto Socorro da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo após um período de 6 horas de alteração de comportamento. Segundo os acompanhantes, ela teria sido possuída pelo demônio, tornando-se muda e isolada, evoluindo posteriormente com agitação e estado de transe. Durante avaliação inicial, a paciente foi colocada no leito, adotando posturas de contorção corporal e revirando os olhos para cima. Passou a falar de modo rápido e incompreensível, o que foi inicialmente interpretado como jargonofasia. No entanto, logo foi constatado que se tratava do dialeto de uma região do país de origem. O exame físico não apresentava alterações. Os exames laboratoriais eram normais. Foi realizada radiografia de abdômen no intuito de encontrar algum corpo estranho (como porte de drogas), porém sem achados. Os acompanhantes informaram que a paciente, apesar de morar em Angola, não falava português, pois esta língua é um diferencial socioeconômico naquele país e a ela provinha de uma classe social desfavorecida. Estava no Brasil há dois dias, nunca havia ficado longe do marido e demonstrava grande preocupação pelo fato dele ter outras mulheres. Foi medicada com 2,5 mg de haloperidol, com melhora significativa dos sintomas após 1 hora, quando referiu não saber o que havia acontecido. Os acompanhantes descreveram outros episódios semelhantes no passado, todos em situações de estresse.

O presente caso evidencia a necessidade da equipe médica observar aspectos transculturais na doença mental. Foi possível observar uma paciente, recém chegada ao Brasil, admitida no Pronto Socorro com quadro de agitação. A primeira hipótese foi de intoxicação por drogas, uma vez que é comum em nosso país o tráfico feito por estrangeiros procedentes da África. A possível jargonofasia, que poderia até ser confundida com alteração da linguagem secundária a acidente vascular cerebral, logo foi descartada com a história fornecida pelos acompanhantes. Essa história evidenciou um fator estressor importante (distância e medo de ser traída) associado à dificuldade de comunicação (apenas a paciente, entre as pessoas que a acompanhavam, não falava o português).

Aspectos relevantes para o diagnóstico de um transtorno dissociativo teriam sido facilmente identificados se as particularidades socioculturais tivessem sido observadas desde o início da abordagem. Jureidini conceituou a dissociação como um estado de alteração da consciência, no qual as barreiras normais entre memórias conscientes e inconscientes, desejos e crenças, são quebradas, enquanto barreiras amnésticas vêm à tona.2 Temos aqui uma alteração funcional de uma paciente com fator estressor identificável e sem comprometimento anatômico que a justificasse, lembrando a importância da evolução histórica do diagnóstico dos transtornos dissociativos.3 É importante evidenciar que muitos estudos reforçam a idéia de que a cultura exerce uma grande influência na apresentação e determinação dos sintomas, principalmente psiquiátricos.4 Todos os médicos devem estar atentos e respeitar as diferentes formas de seus pacientes demonstrarem seus sintomas.

Leonardo Baldaçara, Luciana PC Nóbrega,

Residência de Psiquiatria, Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil

Fernando Haraguchi, Veruska Lastoria, Aida C Suozzo

Setor de Interconsulta Psiquiátrica, Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil

Referências

1. Konner M. Contribuições das Ciências Socioculturais. In: Kaplan HI, Sadock BJ. Artmed. 1999;4(1):383-423.

2. Jureidini J. Does dissociation offer a useful explanation for psychopathology? Psychopathology. 2004;37(6):259-65. Review.

3. Garcia-Valdecasas Campos J, Herrero Rodriguez O, Vispe Astola A, Gracia Marco R. Based on one case of dissociative disorder: a conceptual review. Actas Esp Psiquiatr. 2004;32(2):123-6.

4. Escobar JI. Transcultural aspects of dissociative and somatoform disorders. Psychiatr Clin North Am. 1995;18(3):555-69. Review.

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: Inexistente

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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