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Psicanálise e pesquisa

Psychoanalysis and research

EDITORIAL

Psicanálise e pesquisa

Psychoanalysis and research

Quero iniciar agradecendo aos editores desta revista a oportunidade deste diálogo entre psiquiatras e psicanalistas a partir da exposição das questões relativas à possibilidade de se pesquisar empiricamente hipóteses psicanalíticas.

O que me animou a escrever um editorial sobre pesquisa, embora eu seja essencialmente um psicanalista clínico, foi a possibilidade de incentivar um diálogo amplo entre nossas disciplinas, tentando contornar uma série de preconceitos que tendem a oferecer uma noção de que perspectivas diferentes só podem produzir um confronto incontornável: uma disputa na qual uma visão deveria destruir a outra. Embora a experiência da sessão seja irredutivelmente subjetiva, não podemos ignorar a necessidade de que, para comunicar nossos fatos clínicos aos outros, precisamos seguir certas regras para apresentá-los, de forma a possibilitar um debate e extrair conclusões.

A relação entre a pesquisa e a clínica é muito ampla e controvertida. Deste modo, não é fácil abordá-la sinteticamente sem simplificá-la. De um lado, o termo "pesquisa" tem tanto prestígio no campo da racionalidade e no universo da academia que, num primeiro momento, nós, analistas, somos quase forçados a nos inclinar diante dele sem questioná-lo, o que não é possível. De outro lado, seria absurdo recusá-lo por esta razão.

As dificuldades metodológicas com as quais nos deparamos para pesquisar dados eminentemente subjetivos devem ser enfrentadas objetivamente, podendo, inclusive, ser benéfico para a própria teoria psicanalítica e nos levar a reformular a própria noção de pesquisa no campo psicanalítico.

Ao invés de recusar dificuldades metodológicas e conceituais que a pesquisa nos impõe, talvez essa questão pudesse ser melhor colocada se nos perguntássemos simplesmente o que pode ser pesquisado em psicanálise. A questão se torna ainda mais intrincada depois que os conceitos de hipercomplexidade e auto-organização abriram um campo novo no seio da epistemologia científica.

Ainda que os conceitos psicanalíticos sejam amplos por tentarem captar objetos fugidios, pesquisá-los nos força a tentar descrevê-los, assim como a definir os critérios de observação e os processos de inferência que se seguem. As dificuldades são inúmeras, porque não temos uma unidade conceitual (e não estou seguro que seria útil tê-la) e os períodos de tempo a serem recortados para servir de base para definirmos se um processo psicanalítico está em curso ou não implicam grandes dificuldades metodológicas. Assim, neste contexto, pesquisar possa apenas significar um engajamento em tentar definir bem as questões às quais nos dirigimos de forma suficientemente clara e de maneira a nos assegurar que poderemos avaliar a situação de um mesmo ponto de vista.

A perspectiva do psicanalista ao abordar a questão da importância da investigação não é a de reafirmar o paralelismo mente/corpo, a meu ver um ponto de vista ultrapassado. Penso que mente e corpo, em sua expressão cerebral, referem-se a níveis de organização da vida distintos, com certa autonomia em cada uma das instâncias e que mantêm uma relação dialética entre si. Assim, como consciente e inconsciente, são dois modos coexistentes de gerar experiência.

Freud considerava tão evidente que a psicanálise pertencia ao campo das ciências que não sentia necessidade de demonstrá-lo. Considerava que cada caso clínico tratado poderia ser considerado um projeto de investigação por estarmos sempre trabalhando com hipóteses a serem confrontadas com a observação e, nesse sentido, colocava-se contra posturas dogmáticas.

Alguns autores consideram que o próprio espírito da psicanálise, sua natureza mesma, estaria sendo violentado pelas demandas feitas a ela pela pesquisa empírica. Neste caso, o grande desafio seria desenvolver métodos desenhados especificamente para não violentar nem a natureza nem o "espírito" daquele objeto que está sendo estudado.

Dentro deste contexto, será que poderíamos traçar alguns princípios gerais sobre os quais haveria uma concordância em relação a como abordar a questão da pesquisa em psicanálise? Acredito que sim e esta nos parece bem apresentada por Michael Rustin.

Rustin, citando a concepção de ciência de David Will e Roy Bhaskar (1978), afirma com razão que uma ciência não pode se constituir apenas com base em observações diretas. Ela também necessita construir-se e validar-se a partir de inferências obtidas a partir de observações do que se convencionou chamar de "efeitos de estrutura".1

Bhaskar afirma que existem estruturas geradoras que serão conhecidas mais pela inferência a partir de seus efeitos do que pela soma de observações realizadas, considerando que esta descrição é a que melhor caracteriza o modo de acumulação e validação de conhecimento em psicanálise.2

A psicanálise baseia-se, enquanto construto teórico-prático, na idéia de que existem estruturas subjacentes (concebidas como geradoras de significado) à consciência, dinamicamente "escondidas" (existindo sob a forma de estados de espírito expressivos de relações de objetos) dessa e que geram efeitos sobre a maneira de perceber e de vivenciar o mundo de relações.

A postulação da existência de um mundo interno de relações, povoado por objetos internos que modelam nosso comportamento e nossa forma de sentir na vida cotidiana, não pode ser observada diretamente, mas talvez possa ser investigada com base nos seus efeitos e, a partir desses, estruturas escondidas possam ser inferidas. Estas pesquisas permitirão, de um lado, auxiliar o psicanalista a identificar melhor as teorias implícitas com as quais está trabalhando, a oferecer-lhe condições de reformulação de suas hipóteses e a construção de novas perguntas. De outro lado, também contribuirão para que áreas afins da psicanálise melhor compreendam a natureza das hipóteses psicanalíticas.

A discussão científica - sempre marcada pelas ideologias - pode ser enriquecida com a apresentação transparente dos fundamentos de cada disciplina. Este me parece um caminho mais fértil que o dogmatismo, que é surdo ao debate e, frequentemente, conduz à mistificação.

Elias Mallet da Rocha Barros

Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil

Referências

1. Rustin M. A boa sociedade e o mundo interno: psicanálise, política e cultura. Rio de Janeiro: Imago; 2000.

2. Bhaskar R. A realist theory of science. 2nd ed. Brighton, UK: Harvester; 1978.

3. Blaya C, Dornelles M, Blaya R, Kipper L, Heldt E, Isolan L, Bond M, Manfro GG. Do defense mechanisms vary according to psychiatric disorder? Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(3):179-84.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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