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Dementia praecox: a loucura moderna?

Dementia praecox: a modern folie?

CARTA AOS EDITORES

Dementia praecox: a loucura moderna?

Dementia praecox: a modern folie?

Sr. Editor,

O artigo "Is the outcome of schizophrenia really better in developing countries?"1 abordou uma das principais conclusões dos estudos de colaboração internacional, realizados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), sobre o comportamento da esquizofrenia ao redor do mundo. Supostamente, a esquizofrenia apresentaria melhor prognóstico em sociedades não industrializadas. Os autores sugerem que esta afirmação se tornou um axioma internacionalmente inquestionável. Citando registros provenientes dos mesmos centros colaboradores, alegam que esta conclusão deveria ser revista. Haveria "poucas evidências oriundas de países pobres que demonstrem a influência benéfica das variáveis apontadas pelos estudos da OMS".

Embora os estudos da OMS sugiram que "a maior contribuição destas pesquisas não é apresentar respostas, mas delinear questões a respeito de como as sociedades e culturas moldam o processo de doença", de fato, seus instrumentos oferecem tão poucos recursos conceituais que os autores do artigo aqui referido acabam confundindo conceitos demasiadamente genéricos, como "sociedades não industrializadas" e "países em desenvolvimento", com "miséria social".

Na realidade, atravessamos um processo de velocíssima transição global e aqueles estudos procuraram replicar conclusões que há muito sinalizavam a ausência de esquizofrenia, ou importantes variações evolutivas, em diferentes contextos histórico-culturais.2,3

Como a própria OMS reconheceu, foi um projeto ambicioso. Vale lembrar que o primeiro da série foi iniciado em 1969, quando a psiquiatria vinha sendo solapada por sua evidente falta de confiabilidade diagnóstica. Os instrumentos elaborados pela OMS padronizaram a entrevista psiquiátrica e operacionalizaram os sintomas, estratégias essenciais para o incremento da confiabilidade diagnóstica.

Ultrapassado aquele período, ninguém mais duvida de que a insuficiente clareza sobre a natureza das múltiplas manifestações esquizofrênicas persiste como problema básico. E mais, o critério operacional criou uma ilusão de precisão e absoluta confiabilidade que não resolveu indagações relacionadas à validade do diagnóstico de esquizofrenia,4 e nem conferiu maior sensibilidade aos instrumentos em uso.

Mas a conclusão mais intrigante foi a idéia de a prevalência da esquizofrenia ser universalmente homogênea e estável, independente de épocas e contextos socioculturais. Aparentemente, esta conclusão pode ter sido apenas o resultado do peso excessivo dado à categoria "S", do sistema CATEGO/PSE. Neste caso, apenas os sintomas desta categoria, ou melhor, alguns sintomas equivalentes aos de primeira ordem de K. Schneider é que teriam prevalência homogênea e universal.

O problema surge quando consideramos os esquizofrênicos marcados por acentuada deterioração da personalidade. Como conjugar esta evidência clínica com a literatura passada, que sugeria sua ausência em sociedades tribais, hoje extintas, assim como em épocas anteriores à revolução industrial?5 Tampouco há registros, na antiguidade, de algum tipo de loucura seguido de um processo de deterioração mental tão marcante quanto os encontrados a partir de Pinel. Além disto, recente meta-análise6 indica que tem havido significativas variações epidemiológicas entre países, nas últimas décadas.

Desta forma, se apenas a psicose for, de fato, universal, e não o curso evolutivo, diferente das críticas apontadas pelos autores, a indagação principal deve se voltar para os elementos capazes de influir na emergência deste complexo fenômeno, hoje definido pelo curso desfavorável, e não apenas pela psicose".

Nelson Goldenstein

Laboratório de Estudo e Pesquisas em Psicopatologia

e Subjetividade, Instituto de Psiquiatria,

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: Inexistente

  • 1. Patel V, Cohen A, Thara R, Gureje O. Is the outcome of schizophrenia really better in developing countries? Rev Bras Psiquiatr 2006;28(2):149-52.
  • 2. Torrey F. Schizophrenia and Civilization New York, NY: Jason Aroson; 1980.
  • 3. Murphy HB. Cultural influences on incidence, course, and treatment response.. In: Wynne LC, Cromwell LR, Matthysse S, editors. The Nature of Schizophrenia New York, NY: John Wiley & Sons; 1978. p. 586-94.
  • 4. Robins E, Guze SB. Establishment of diagnostic validity in psychiatric illness: its application to schizophrenia. Am J Psychiatry 1970;126(7):983-7.
  • 5. Gottesman I. Schizophrenia Genesis: The Origins of Madness W. Freedman; 1990.
  • 6. Mc Grath JJ. Variations in the incidence of schizophrenia: data versus dogma. Schizophr Bull 2006;32(1):195-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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