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Princípios para orientar as políticas de saúde mental em países de baixa e média rendas

EDITORAL

Princípios para orientar as políticas de saúde mental em países de baixa e média rendas

Neste editorial, daremos especial atenção às questões práticas relacionadas à implementação de políticas públicas direcionadas às pessoas com transtornos mentais. Não abordaremos temas de promoção e prevenção em saúde direcionados à população geral. No geral, há dois grandes princípios que devem nortear essas políticas: melhorar o acesso às intervenções baseadas em evidências e respeitar os direitos humanos das pessoas afetadas. Enquanto os princípios relacionados aos direitos humanos são extensivamente abordados em instrumentos internacionais como a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (CDPD), os princípios de aplicação de intervenções baseadas em evidências não foram descritos, até hoje, em diretrizes internacionalmente aceitas. Nas últimas décadas, presenciamos um aumento impressionante da quantidade de evidências disponíveis sobre o prejuízo e o impacto sofrido pelas pessoas com transtornos mentais, além das necessidades dessa população que não são atendidas nos países de baixa e média rendas (PBMR). No entanto, grande parte dos estudos que avaliaram a eficácia dos tratamentos para transtornos mentais foi realizada exclusivamente em países com grandes fontes de recursos. Fatores locais, em particular a grande escassez e a má distribuição de recursos especializados em saúde mental em PBMR, limitam muito a aplicação indiscriminada dessas evidências. Considerando essas limitações, anteriormente simplesmente não podíamos recomendar com segurança aos governos como "incrementar" os serviços (que tratamentos oferecer e como provê-los) em muitas partes do mundo. Isso agora mudou.

Em sete de outubro de 2010, o Diretor Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou as Diretrizes de Intervenção para o Programa de Ação sobre as Defasagens em Saúde Mental - mhGAP (Figura 1). O mhGAP representa a principal campanha da OMS direcionada para a saúde mental; seu objetivo é aumentar a cobertura de atendimento com intervenções objetivas, especialmente em países com renda baixa e médio-baixa. No evento de lançamento, o Dr. Chan disse que "estamos frente a uma falsa percepção de que a atenção à saúde mental é um item de luxo na agenda de saúde – que a atenção está além do alcance em ambientes com recursos escassos nos quais doenças com índices mais altos de mortalidade ganham a parte principal do apoio financeiro nacional e internacional". Temos agora boas razões para desafiar esse pensamento. Com a publicação das diretrizes do mhGAP (DM) temos acesso agora a um instrumento técnico simples para detecção, diagnóstico e gerenciamento dos transtornos mentais, neurológicos e de uso de substâncias mais prejudiciais e mais frequentes na população. Segundo esse instrumento, os procedimentos podem ser realizados "em qualquer instituição prestadora de serviços de saúde" e " não limitado por quão fraco é o sistema de saúde ou quão restritos são os seus recursos, ou seja, algo sempre pode ser feito" (www.WHOProject\mhGAP\WHODGSpeechmhGAP-IGlaunchOct2010.htm). O DM1 é o produto mais importante em saúde mental global por seu potencial impacto na melhora do acesso à atenção para as pessoas com transtornos mentais em cinco grandes esferas.


Primeiro, as orientações foram estruturadas para serem utilizadas por profissionais de saúde não especializados, tais como clínicos gerais, enfermeiras, e assistentes de saúde que trabalham em instituições de saúde responsáveis pelos níveis primário e secundário de atenção. Segundo, as orientações foram desenvolvidas seguindo uma metodologia robusta e transparente, envolvendo mais de 100 especialistas e 20 organizações e associações internacionais ao redor do mundo. Um esforço especial foi feito para priorizar evidências vindas dos PBMR. Terceiro, foram priorizados transtornos mentais, neurológicos e decorrentes do uso de substâncias que constituem uma grande sobrecarga em termos de doenças e possuem opções eficazes de tratamento disponíveis: depressão; esquizofrenia e outros transtornos psicóticos; suicídio; epilepsia; demência; transtornos por uso de álcool; transtornos por uso de drogas ilícitas; e transtornos comportamentais e do desenvolvimento em crianças. Quarto, as diretrizes cobrem todos os aspectos da atenção, desde as intervenções farmacológicas, psicológicas e sociais específicas até os princípios gerais de atenção, incluindo aqueles relacionados à autonomia e à dignidade do tratamento. Quinto, todo o conteúdo foi traduzido em menos de 100 páginas de "sabedoria clínica e de conselhos práticos sucintos", apresentados em um formato claro e lógico.

O fortalecimento do papel de não especialistas na atenção à saúde mental foi endossado por todas as principais partes envolvidas na saúde mental global, incluindo, de forma importante, a comunidade psiquiátrica mundial2. Há também uma crescente base de evidências apontando para a eficácia no provimento de tratamentos de saúde mental por profissionais não especializados - um processo referido como "transferência de tarefas" - para transtornos tão variados como esquizofrenia, demência e depressão3. O DM fornece uma forte base para o desenvolvimento de instrumentos práticos que serão utilizados por profissionais de saúde na atenção primária e secundária, incluindo instrumentos que permitirão o envolvimento de uma maior parcela das equipes no provimento de atenção em saúde mental do que tem sido a norma até hoje. Se esses instrumentos forem utilizados adequadamente, a tarefa pela frente é a de definir os requisitos em termos de supervisão e de organização para assegurar sua implementação de modo a maximizar a fidelidade e a qualidade, e comprometer os recursos para dar maior escala ao programa, aumentando a cobertura até atingir o conjunto global da população. É claro que para fazer isso precisaremos de uma compreensão muito maior de quem participa da força de trabalho em saúde mental - todos os membros da força de trabalho em saúde podem agora ser considerados como profissionais de saúde mental em potencial. Os especialistas em saúde mental precisarão desempenhar um papel-chave em prover supervisão e assegurar a qualidade dos serviços em que o contato do paciente na maioria dos casos será por meio desses outros profissionais. Essa orientação pode representar um desafio aos papeis tradicionais, mas o investimento no desenvolvimento de especialistas com foco em saúde pública significa que uma carreira estimulante e recompensadora nessa área está se tornando uma opção cada vez mais atrativa e viável.

O sucesso na implementação do programa se baseia, primeiro e de forma mais importante, no comprometimento político no mais alto nível. Uma forma de começar a alcançar isso é estabelecer nacionalmente um grupo central de sujeitos interessados em nível estadual ou nacional ou que tenham especialização multidisciplinar para orientar os processos de implementação. A avaliação das necessidades e dos recursos é crítica para guiar a atribuição das prioridades e o planejamento das fases de intervenção e melhorar a probabilidade de sua implementação bem sucedida. O desenvolvimento de uma política e de uma infraestrutura legislativa é um marco importante para atender às necessidades de pessoas com transtornos mentais e promover a proteção dos direitos humanos das pessoas com esses transtornos. Os obstáculos que dificultam a implementação indiscriminada dessas intervenções devem também ser considerados e enfrentados4. A essência do mhGAP é estabelecer e reforçar as parcerias produtivas; atrair e energizar novos parceiros; e acelerar esforços aumentando os investimentos para uma redução do prejuízo decorrente dos transtornos mentais. O sucesso da progressão dos esforços é responsabilidade conjunta de governos, profissionais de saúde, sociedade civil, comunidades e famílias, estendendo-se à comunidade internacional. O Movimento por uma Saúde Mental Global (www.globalmentalhealth.org) é um exemplo de uma parceria que procura alcançar a meta de progredir5 e estamos presenciando agora ganhos significativos nesse processo em muitos países.

Vikram Patel

London School of Hygiene eTropical Medicine (UK) e

Sangath (India)

Julian Eaton

CBM, West Africa Region (Nigeria Country Office)

  • 1
    1. WHO - World Health Organization. mhGAP intervention guide for mental, neurological and substance use disorders in non-specialized health settings: mental health Gap Action Programme (mhGAP). Geneva: WHO; 2010.
  • 2. Patel V, Maj M, Flisher AJ, DE Silva MJ, Koschorke M, Prince M; WPA Zonal and Member Society Representatives*. Reducing the treatment gap for mental disorders: a WPA survey. World Psychiatry 2010;9(3):169-76.
  • 3. Patel V, Thornicroft G. Packages of care for mental, neurological, and substance use disorders in low- and middle-income countries: PLoS Medicine Series. PLoS Med 2009;6:e1000160.
  • 4. Saraceno B, van Ommeren M, Batniji R, Cohen A, Gureje O, Mahoney J, Sridhar D, Underhill C. Barriers to improvement of mental health services in low-income and middle-income countries. Lancet 2007;370(9395):1164-74.
  • 5. Patel V, Collins PY, Copeland JR, et al. Movement for global mental health. Br J Psychiatry. In press 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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