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Endocanabinoides e transtornos psiquiátricos: a estrada à frente

EDITORIAL

Endocanabinoides e transtornos psiquiátricos: a estrada à frente

Nature – o periódico científico mais importante na atualidade – começou o Ano Novo com um editorial intitulado "Uma década para os transtornos psiquiátricos". O editor apresentou uma imagem desoladora dos recentes avanços em pesquisa e tratamento. A esperança de que um gene único para esquizofrenia ou outras doenças mentais será encontrado evaporou-se no ar. Muito provavelmente, essas doenças estão baseadas em centenas de genes que afetam vários aspectos do desenvolvimento cerebral. A maioria das drogas introduzidas nas últimas décadas não levaram a grandes melhoras nas doenças, mas principalmente reduziram os efeitos colaterais dos tratamentos farmacológicos. Assim, o editor conclui que "uma compreensão mais profunda da biologia subjacente é essencial para melhorar o diagnóstico e o tratamento".

Os tratamentos farmacológicos em psiquiatria têm dependido demasiadamente e por tempo excessivo de sistemas neurotransmissores e seus agonistas, como a dopamina, que se tornou conhecida há mais de 60 anos. Acredito que o sistema endocanabinoide, descoberto e desenvolvido mais recentemente, possa lançar novas luzes sobre a base fisiológica das doenças psiquiátricas e possa ser uma lufada de ar fresco na farmacologia psiquiátrica.

As preparações da planta cannabis têm sido utilizadas há milênios tanto como medicamento como "uma droga que faz a mente se transportar" (como diziam antigos tabletes assírios de argila). A pesquisa médico-científica sobre a cannabis começou há cerca de 150 anos, quando o médico colonial britânico W.B. O'Shaugnessy e um psiquiatra francês, J.J. Moreau, realizaram ensaios clínicos com cannabis indiana e norte-africana, respectivamente. Os protocolos desses ensaios clínicos fariam estremecer qualquer comitê regulatório moderno, mas seus resultados são ainda considerados de grande interesse. O'Shaughessy encontrou que os extratos de etanol (tintura) de resina de cannabis, ao serem administrados a pacientes com reumatismo, tétano, raiva, convulsões infantis, cólera, vômitos e delirium tremens proporcionaram resultados positivos que levaram ao seu extenso uso na Grã-Bretanha, onde a resina de cannabis indiana estava disponível. Encontrou-se que era útil em doenças neurológicas, mas não na depressão. Moreau, em uma das primeiras publicações em psiquiatria experimental, também registrou que a cannabis não era um antidepressivo, mas em alguns "casos de delirium" ela tinha resultados animadores. Ele descreveu casos de "insanidade temporária" quando foram ministradas enormes doses de cannabis. Isto em paralelo aos casos de hipomania na África do Sul, descritos mais de 100 anos depois, após o uso de dagga, que é conhecida hoje por conter altas concentrações do princípio ativo, mas não canabidiol.

Durante a primeira parte do século passado, algum progresso foi feito sobre a química e a farmacologia da cannabis, mas como o quadro químico ainda não estava claro, o interesse diminuiu. Com a identificação, em 1964, do Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9THC) como o princípio ativo da planta, a área dos canabinoides atraiu o interesse de muitos grupos de pesquisa e centenas de artigos sobre a química, bioquímica, metabolismo e efeitos clínicos do composto foram publicados. No entanto, seu mecanismo de ação permaneceu desconhecido por cerca de duas décadas. Na metade dos anos 80, a presença de um receptor de canabinoide no cérebro foi identificada, e sendo clonado logo a seguir. A isso se sucedeu o isolamento dos principais canabinoides endógenos, anandamida e 2-araquidonoil glicerol, a elucidação de sua biossíntese e degradações. Este esclarecimento do histórico químico e bioquímico levou a uma extensa pesquisa em várias áreas biológicas e clínicas. Estamos agora no meio de um dos grandes avanços nas aplicações fisiológicas e clínicas associadas às ações dos endocanabinoides.

O sistema endocanabinoide está envolvido nos transtornos psiquiátricos? A maioria dos estudiosos nas áreas dirão que a resposta é positiva, mas os resultados experimentais não são explícitos. Há publicações que relatam uma piora dos sintomas clínicos por um canabinoide específico e outros que relatam o contrário. A esquizofrenia é um desses transtornos. Em um relato recente de Oslo, o uso de cannabis foi associado a melhor função neurocognitiva em pacientes com um transtorno bipolar, mas o oposto foi o caso dos indivíduos com esquizofrenia. Vários grupos proporcionaram evidências substanciais de que o abuso de cannabis é um fator de risco para psicose em pessoas geneticamente predispostas e pode levar a um desfecho pior da doença, e que o sistema canabinoide endógeno propriamente dito está alterado na esquizofrenia (i.e., maior densidade na ligação do receptor CB1 de canabinoide em regiões córtico-límbicas e níveis aumentados de anandamida no líquido cérebro-espinhal). Realmente, uma "hipótese canabinoide da esquizofrenia" foi sugerida paralelamente à "hipótese da dopamina". No entanto, apesar do imenso aumento nos fumadores de maconha nas últimas décadas, o número de pacientes com esquizofrenia não aumentou. É possível que esta observação surpreendente se deva à presença na cannabis do canabidiol, um composto não-psicoativo, que demonstrou ser benéfico no tratamento de psicoses? Há também evidências de que as alterações genéticas específicas do gene do receptor 1 de canabinoide possa atuar como um fator protetor contra a esquizofrenia.

O mesmo quadro se dá na ansiedade. Os usuários declaram que a cannabis fumada leva a menor ansiedade e que a estimulação farmacológica da sinalização do endocanabinoide pode produzir respostas comportamentais ansiolíticas. Baixos níveis de endocanabinoides podem resultar em respostas comportamentais ansiogênicas em ratos. Mas, as reações de ansiedade e os ataques de pânico são os sintomas agudos mais frequentemente associados ao uso de cannabis em humanos. E, novamente, como na psicose, encontrou-se, em sua maioria nos estudos brasileiros, que o canabidiol não-psicoativo é benéfico no tratamento da ansiedade.

A forma mais simples (mas não necessariamente correta) de explicar os resultados conflitantes acima referidos baseia-se no bem conhecido efeito bifásico de muitas ações canabinoides. Em baixas doses, os canabinoides podem exercer efeitos que não são vistos em doses maiores. Inclusive efeitos opostos podem ser observados. Como muitos efeitos de canabinoides são produzidos afetando os níveis de vários neurotransmissores, pode-se presumir que um canabinoide pode causar a liberação de certo neurotransmissor em uma baixa concentração, ao passo que em uma concentração mais alta pode ampliar o nível de outro, levando a um resultado final distinto. Na mesma linha de especulação, o efeito na liberação de neurotransmissores pode variar em diferentes áreas cerebrais.

Os efeitos positivos do canabidiol provêm aparentemente dos mecanismos moleculares não associados aos receptores de canabinoides. De fato, em muitos casos, suas ações parecem estar no lado oposto dos causados pelo THC – seu vizinho na planta de cannabis.

Um quadro um pouco mais claro aparece no transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Considerável volume de trabalhos, proveniente de vários grupos e diferentes países, demonstraram que em estudos animais a sinalização de CB1 está envolvida na extinção de memórias aversivas. De fato, os pacientes com TEPT declaram que o uso de cannabis os auxilia consideravelmente. Recentemente, um estudo canadense demonstrou que a nabilona (uma droga assemelhada ao THC) tinha efeitos benéficos no sono de pacientes com TEPT. Baseando-se nisso, o Ministério da Saúde de Israel aprovou o uso de cannabis para TEPT. Como outros transtornos psiquiátricos humanos, como a fobia, parecem envolver mecanismos patológicos relacionados, o sistema endocanabinoide poderia ser um alvo terapêutico válido para o tratamento desses transtornos.

O sistema canabinoide está também envolvido nas alterações na vida afetiva e no humor diário? Deve-se o nosso perfil psicológico, pelo menos em parte, aos níveis de endocanabinoides e sua distribuição na área cerebral? Estão envolvidas as interações entre endocanabinoides e neurotransmissores? Alguns trabalhos muito originais apontam neste sentido, mas a exploração completa dessa área emocionante está a nossa frente.

Considero que o sistema endocanabinoide pode lançar esclarecimentos no mecanismo de alguns transtornos psiquiátricos e, possivelmente, em alguns aspectos de nosso perfil psicológico. Tenho a esperança de que futuros estudos sejam desenvolvidos segundo esses promissores caminhos.

Raphael Mechoulam

Institute of Drug Research, Medical Faculty,

Hebrew University, Jerusalém

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Maio 2010
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