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Incorporação das perspectivas brasileiras e latino-americanas na classificação de transtornos mentais e comportamentais da CID-11

EDITORIAL

Incorporação das perspectivas brasileiras e latino-americanas na classificação de transtornos mentais e comportamentais da CID-11

Geoffrey M. Reed

Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias, Organização Mundial da Saúde

As responsabilidades institucionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) incluem: 1) o estabelecimento e a revisão de classificações internacionais de doenças, causas de morte e práticas em saúde pública; e 2) a padronização de procedimentos diagnósticos1. A OMS está atualmente revisando a 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), e a aprovação da CID-11 pela Assembléia Mundial de Saúde que deve ocorrer em 2014. A CID constitui o padrão internacional para avaliação e monitoramento da mortalidade, morbidade e outros parâmetros relacionados à saúde. Os países membros da OMS se comprometem, por meio de tratados internacionais, a coletar e fornecer à OMS estatísticas relacionadas à saúde, utilizando a CID como base para este propósito.

O Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS coordena o desenvolvimento da classificação de transtornos mentais e comportamentais da CID-11. A prioridade deste departamento é auxiliar os países afiliados à OMS, especialmente aqueles com menos recursos, na redução do impacto e da incapacitação associados aos transtornos mentais. Doenças neuropsiquiátricas são responsáveis por 13% do impacto global de doenças, índice superior ao de qualquer outra doença não contagiosa2. Apenas uma minoria dos indivíduos que sofrem de transtornos mentais graves - menos de 25% nos países em desenvolvimento - recebe algum tipo de tratamento3, e somente uma pequena parte do tratamento recebido por estes pacientes é oferecida por psiquiatras.

Uma meta primordial da classificação de transtornos mentais e comportamentais da CID-11 é promover a identificação mais ampla e eficiente desses transtornos e a priorização de pacientes com transtornos mentais necessitando de tratamento. Os portadores de transtornos mentais terão mais chance de receberem os serviços de que necessitam se os profissionais de saúde em atividade, nos lugares onde estes pacientes têm maior probabilidade de entrar em contato com o sistema de saúde, dispuserem de um sistema diagnóstico que seja confiável, válido, clinicamente útil e adequado ao contexto. Preocupações importantes têm sido manifestadas quanto à utilidade clínica dos sistemas atuais de classificação de transtornos mentais4, abrangendo tanto a CID-10 como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-4ª Edição (DSM-IV), editado pela Associação Americana de Psiquiatria. O fator que mais contribui para o questionamento da utilidade clínica dos atuais sistemas de diagnóstico psiquiátrico refere-se à sua extraordinária complexidade, a qual é desnecessária no caso de muitas aplicações clínicas e não promove o uso eficiente de recursos limitados de tratamento, seja na clínica ou em nível nacional.

Esta perspectiva da saúde pública está na base dos requisitos da OMS para a revisão da CID. Em primeiro lugar, entende-se que, para ter impacto sobre a saúde pública global, o desenvolvimento da CID-11 também deve ser global, oferecendo aos usuários de todas as partes do mundo a oportunidade significativa de moldar o produto final. Assegurar a forte participação de países em desenvolvimento é um desafio e uma necessidade. Um segundo requisito, relacionado ao primeiro, é o de que a revisão seja multilíngue. Particularidades culturais e regionais estão firmemente imbuídas na linguagem e, caso não se dê a atenção necessária ao processo de tradução e equivalência linguística ao longo de todo o processo, o resultado deverá ser a pouca utilidade clínica das versões não inglesas. A OMS já realizou uma análise dos sistemas de classificação latino-americanos5, mas deve haver um envolvimento mais direto com grupos regionais para a realização da revisão.

Em terceiro lugar, o esforço de revisão deve ser multidisciplinar. Como mencionado antes, a grande maioria dos portadores de transtornos mentais no mundo jamais verá um psiquiatra. Para servir como mecanismo de redução do impacto de doenças, a classificação de transtornos mentais e comportamentais da CID-11 deverá ser passível de uso por uma gama muito maior de profissionais de saúde. A OMS vê a todos os profissionais que utilizam a classificação de transtornos mentais como elementos importantes para sua revisão.

Em quarto lugar, a OMS reconhece os usuários de serviços de saúde mental e seus familiares como partes interessadas no processo de revisão da CID. A comunidade de usuários de serviços de saúde mental tem se alinhado cada vez mais com movimentos para os direitos de pessoas com deficiências, adotando o lema "Nada relacionado a nós sem a nossa participação!", rejeitando aquilo que enxergam como paternalismo médico e exigindo participação nas decisões que afetam suas vidas. A revisão da CID deve criar oportunidades reais para a participação de grupos de usuários que possam contribuir construtivamente para o processo.

Foi dentro deste contexto que o Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias solicitou ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo que organizasse um fórum para permitir que a OMS se envolvesse e começasse a aprender com a diversidade das perspectivas brasileiras e latino-americanas relevantes para o desenvolvimento da CID-11. O encontro sobre "Classificação de Transtornos Mentais e Comportamentais na América Latina" aconteceu nos dias 17 e 18 de maio de 2010, em São Paulo, e contou com a participação de aproximadamente 50 especialistas em diagnóstico e classificação de transtornos mentais e comportamentais procedentes do Brasil, Argentina, México e Peru.

Com base na importância e significância das discussões ocorridas durante o encontro, a Revista Brasileira de Psiquiatria abriu uma chamada para artigos sobre o tema "A Contribuição Latino-Americana para a Revisão da CID-10", com o propósito explícito de fornecer informações relevantes para a OMS e seus grupos de trabalho. As melhores propostas foram selecionadas pelo corpo editorial e os artigos resultantes foram reunidos neste suplemento. As perspectivas dos autores são próprias e não representam as políticas oficiais da OMS, mas destacam diversos temas críticos que o Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS deve considerar ao buscar desenvolver uma classificação que seja útil para a saúde pública global. Esperamos manter a nossa colaboração com colegas brasileiros e latino-americanos de forma a incorporar os conhecimentos científicos e práticos da região e assegurar que o novo sistema de classificação da CID-11 reflita suas perspectivas e realidades clínicas. Este trabalho conjunto irá apoiar esforços mais amplos por parte da OMS para reduzir o impacto das doenças ao redor do mundo.

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  • 1. World Health Organization - WHO. Basic documents. 46th ed. Geneva, Switzerland: World Health Organization; 2007.
  • 2. World Health Organization - WHO. The global burden of disease: 2004 update. Geneva, Switzerland: World Health Organization; 2008.
  • 3. Demyttenaere K, Bruffaerts R, Posada-Villa J, Gasquet I, Kovess V, Lepine JP, Angermeyer MC, Bernert S, de Girolamo G, Morosini P, Polidori G, Kikkawa T, Kawakami N, Ono Y, Takeshima T, Uda H, Karam EG, Fayyad JA, Karam AN, Mneimneh ZN, Medina-Mora ME, Borges G, Lara C, de Graaf R, Ormel J, Gureje O, Shen Y, Huang Y, Zhang M, Alonso J, Haro JM, Vilagut G, Bromet EJ, Gluzman S, Webb C, Kessler RC, Merikangas KR, Anthony JC, Von Korff MR, Wang PS, Brugha TS, Aguilar-Gaxiola S, Lee S, Heeringa S, Pennell BE, Zaslavsky AM, Ustun TB, Chatterji S; World Health Organization World Mental Health Survey Consortium. Prevalence, severity, and unmet need for treatment of mental disorders in the World Health Organization World Mental Health surveys. JAMA. 2004;291(21):2581-90.
  • 4. Reed GM. Toward ICD-11: improving the clinical utility of WHO's international classification of mental disorders. Prof Psychol Res Pract. 2010;41(6):457-64.
  • 5. Rivas Rodríguez M, Reed GM, First MB, Ayuso-Mateos JL. Aportaciones de dos clasificaciones psiquiátricas latinoamericanas para el desarrollo de la CIE-11. Rev Panam Salud Pública. 2011;29(1):130-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Maio 2011
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