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A realidade do mundo da ciência: um desafio para a história, a filosofia e a educação científica

Resumos

O esclarecimento e a justificação dos modos pelos quais as teorias científicas apreendem e não apreendem o mundo real são tratados como problemas pertinentes à história e filosofia da ciência. Pretende-se que estes sejam também desafios próprios da educação científica. A defesa de uma concepção realista das teorias científicas é mostrada como uma maneira adequada e consistente de enfrentar esse desafio.

Relativismo; crítica; Objetivo da ciência; Realismo científico


The clarification and justification of the way scientific theories learn and do not learn about the real world have been treated as a question concerning the history and philosophy of science. It has been claimed that this should also be a query that the scientific education might suitably pursuit. The defense of one view of the scientific realism is shown to be an appropriate and consistent way of responding to that query.

Relativism; criticism; Aim of science; Scientific realism


ARTIGOS

A realidade do mundo da ciência: um desafio para a história, a filosofia e a educação científica

Eduardo Salles O. Barra

Professor Assistente do Departamento de Filosofia, Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Londrina - PR. (e-mail: barra@npd.uel.br)

RESUMO

O esclarecimento e a justificação dos modos pelos quais as teorias científicas apreendem e não apreendem o mundo real são tratados como problemas pertinentes à história e filosofia da ciência. Pretende-se que estes sejam também desafios próprios da educação científica. A defesa de uma concepção realista das teorias científicas é mostrada como uma maneira adequada e consistente de enfrentar esse desafio.

Unitermos: Relativismo: crítica; Objetivo da ciência; Realismo científico.

ABSTRACT

The clarification and justification of the way scientific theories learn and do not learn about the real world have been treated as a question concerning the history and philosophy of science. It has been claimed that this should also be a query that the scientific education might suitably pursuit. The defense of one view of the scientific realism is shown to be an appropriate and consistent way of responding to that query.

Keywords: Relativism: criticism; Aim of science; Scientific realism.

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8 As preocupações de Mattews incidem em questões muito próximas das anteriores: "O que é essa coisa chamada ciência? O que caracteriza o método científico? A 'natureza' da ciência permanece a mesma ao longo dos séculos? Ocorrem mudanças em sua epistemologia? Quais são seus testes característicos para avaliar as pretensões de verdade? Como eles se diferenciam de outras atividades intelectuais? Quais são os papéis relevantes desempenhados pela observação e pela razão na condução da ciência?" As respostas a essas questões constituem, em parte, a visão da "natureza da ciência" do professor que, de alguma forma, irá influenciar a imagem que seus alunos fazem da ciência, isto é, aquilo que eles irão reter "após terem esquecido os detalhes do que lhes foi ensinado nas aulas de ciência." O ideal, segundo Mattews, seria que essa imagem fosse "tão sofisticada e realista quanto possível nestas circunstâncias." (1994:204)

2 Em sua polêmica contra o "construtivismo radical", Mattews apresenta virtualmente a mesma linha de argumentação que apresentarei aqui. Para Mattews, "o construtivismo é uma doutrina relativista." (1994:149)

3 Até o momento, Bruno Latour teve duas de suas obras publicadas no Brasil: A Vida de Laboratório (Relume- Dumará, 1997) e Jamais Fomos Modernos (Editora 34, 1994)

4 Esta é uma formulação sintética da famosa "tese Duhem-Quine". Segundo Duhem, em qualquer experimento físico virtualmente toda a física está envolvida; o planejamento de seus aparatos e a interpretação de seus resultados devem envolver não somente as hipóteses a serem testadas, mas também princípios da óptica, termodinâmica, eletrodinâmica, etc. Assim, quando os experimentos não apresentam os resultados esperados, não há nenhuma razão lógica para eliminarmos a hipótese que supostamente estava sendo testada, pois qualquer outra das muitas hipóteses virtualmente envolvidas no teste poderiam também ser falsa. A linha de raciocínio desenvolvida por Quine conduziu a uma extensão semântica dessa conclusão. Segundo Quine, a relevância das evidências e as relações de confirmação que elas mantêm com as hipóteses serão sempre relativas a uma teoria. Desse modo, é logicamente possível que teorias rivais, isto é, que possuam hipóteses mutuamente contraditórias, sejam igualmente confirmadas pelo mesmo conjunto de observações.

5 As primeiras obras de Thomas Kuhn, fundamentalmente A Estrutura das Revoluções Científicas (publicada originalmente em 1962), foram a grande fonte de inspiração dos teóricos do relativismo - embora ele a seguir, mesmo reconhecendo a influência que teve no seu desenvolvimento, tenha renegado algumas de suas consequências mais radicais. Sobre a impossibilidade de que as mudanças e, consequentemente, os consensos científicos sejam racionalmente orientados, Kuhn observa que "precisamente por tratar-se de uma transição entre incomensuráveis, a transição entre paradigmas em competição não pode ser feita passo a passo, por imposição da Lógica e de experiências neutras. (...) Ao invés disso, eu argumentaria que em tais assuntos, nem prova, nem erro estão em questão. A transferência de adesão de um paradigma a outro é uma experiência de conversão que não pode ser forçada. (...) Cientistas individuais abraçam um novo paradigma por toda sorte de razões e normalmente por várias delas ao mesmo tempo. Algumas razões - por exemplo, a adoração do Sol que ajudou a fazer de Kepler um copernicano - encontram-se inteiramente fora da esfera aparente da ciência. Outros cientistas dependem de idiossincrasias de natureza autobiográficas ou relativas a sua personalidade. Mesmo a nacionalidade ou a reputação prévia do inovador e seus mestres podem desempenhar algumas vezes um papel significativo." (1978:190, 191e 193)

6 Na visão de Laudan, indicar o fato do sucesso empírico da ciência "não é necessariamente justificá-lo, pois não preciso comprometer-me a respeito de se esse controle da natureza é uma coisa boa ou má; que subministrem esse controle é uma propriedade descritiva das ciências naturais." (1990:189) De certo modo, assumirei aqui a mesma visão de Laudan. Mas devo reconhecer que alguma coisa a mais parece estar aqui em jogo. Lacey apresenta uma interessante interpretação do papel desempenhado pelo controle da natureza na formação da crença científica moderna. Ele concorda com o diagnóstico acima: "Nas análises sociológicas pós-modernas, o conhecimento científico parece não se diferenciar da opinião, da ideologia, do dogma e do juízo de valor. 'Parece', pois a argumentação pós-moderna não leva em consideração um fenômeno muito significativo: o sucesso da ciência moderna." (1998:27) No entanto, Lacey acredita que uma análise atenta do papel que o controle da natureza desempenha na ciência moderna pode nos revelar mais do que supõe Laudan: o fato de o controle da natureza ser sobretudo um valor social implica que as teorias desenvolvidas nessa perspectiva não podem revelar o mundo como ele é (cf. 1998:30).

7 Do mesmo modo que fiz acima com relação aos padrões de racionalidade, evitarei novamente uma série de questões embaraçosas. O tema que pretendo desenvolver a seguir, a defesa de uma determinada forma de realismo científico, tem sido objeto de uma contínua divergência entre os filósofos da ciência. Minha discussão aqui assumirá um certo tom dogmático em relação a essa polêmica. Pouca ou nenhuma referência será feita a posições divergentes da minha - exceto, é claro, as divergências que representem uma adesão às posições relativistas criticadas acima. Isso porque apenas me interessa apontar um caminho plausível para enfrentar o desafio de Mattews. Para uma esclarecedora apresentação dos aspectos polêmicos das idéias que serão apresentadas, ver o artigo do Prof. Marcos Rodrigues da Silva publicado neste volume.

8 Como adiantei na nota anterior, estamos lidando aqui com questões filosóficas de grande complexidade. A teoria da verdade como correspondência, defendida por Kitcher, é uma delas. Para o leitor mais familiarizado com essa discussão, talvez umas breves observações possam ajudar a entender a posição de Kitcher. Para retirar da noção de verdade tudo que nos pareça misterioso, mágico ou sobrenatural, ele pretende tornar a verdade tão coerente quanto a referência. Para tanto, é preciso entender a referência "naturalisticamente", isto é, como uma relação entre os usuários de uma linguagem e a natureza. Na medida em que exista tal relação, "os enunciados representam o mundo como sendo de um modo particular. O enunciado é verdadeiro quando o modo como o mundo é representado é o modo como ele realmente é." (Kitcher, 1993:128)

9 Esta talvez seja uma idéia que possa dar sentido a um programa epistemológico naturalizado, que poderia consistir em "estudar nosso próprio aparato perceptivo e cognitivo e nossas próprias estruturas sociais para descobrir como as crenças são formadas e determinar a confiabilidade (ou inconfiabilidade) dos processos de cognição humana. Tais investigações conduzem-nos a artifícios e procedimentos destinados a aperfeiçoar a maneira como adquirimos novas crenças e devem conduzir-nos a modificar ou abandonar algumas das crenças compartilhadas por nossa cultura. Assumindo as crenças - ou, a maioria delas - às quais somos predispostos pela natureza ou pela cultura, prosseguimos no sentido de expandir nosso conhecimento científico." (Glymour, 1992:122). As noções de"descoberta" e "aperfeiçoamentos" que conduzam a "modificações ou abandonos" por força de critérios "cognitivos", são algumas das noções que os relativistas desejam considerar como sendo contra-sensos ou equívocos notórios.

10 Mattews identifica o mesmo movimento problemático do relativismo nas versões radicais do construtivismo: "É endêmico aos textos construtivistas o argumento constituído por um único passo partindo da premissa psicológica de que (1) 'a mente é ativa na construção do conhecimento' para a conclusão epistemológica de que (2) 'nós não conhecemos a realidade'." (1994:151)

11 Essa pesquisa foi descrita por H. Schecker ("The Paradigmatic Change in Mechanics: Implicacions of Historical Processes on Physics Education" Science & Education 1 (1): 71-76, 1992).

12 Kitcher, em outro lugar, fornece outros detalhes importantes sobre o seu ponto de vista sobre as idealizações: "Um grande número de verdades serão bastante irrelevantes para a provisão de explicações e, então, serão cognitivamente desprezíveis. Conversamente, existirão falsidades que são relevantes e que, portanto, são de fato consideradas como cognitivamente valiosas. Em certos momentos os fenômenos concernentes ao comportamento de sistemas complexos, que descrevem como os mecanismos básicos combinam-se ou como os modelos fundamentais de explicações são sintetizados, encobrirão as principais linhas de dependência. Em tais casos, revelaremos a estrutura da natureza mediante idealizações, postulando que o mundo é mais simples do que de fato ele é e oferecendo uma explicação que seria verdadeira somente se algumas complicações fossem removidas." (1992:106)

  • GLYMOUR, Clark (1992) "Realism and the Nature of Theories". In: SALMON, M. et alli (eds.) Introduction to the Philosophy of Science New Jersey: Prentice Hall, pp. 104-131.
  • KITCHER, Philip (1992) "The Naturalist Return" The Philosophical Review 101 (1):53-114.
  • KITCHER, Philip (1993) The Advancement of Science New York: Oxford University Press.
  • KUHN, Thomas. (1978) A Estrutura das Revoluções Científicas São Paulo : Perspectiva.
  • LACEY, Hugh. (1998) Valores e Atividade Científica São Paulo: Discurso Editorial.
  • LAUDAN, Larry. (1984) Science and Values Berkeley: University of California Press.
  • LAUDAN, Larry. (1990) La Ciencia y el Relativismo Madrid: Alianza.
  • MATTEWS, Michael R. (1994) Science Teaching: The Role of History and Philosophy of Science New York: Routledge.
  • SHWARTZMAN, Simon. (1994) "Os Dinossauros de Roraima (ou a Sociologia da Ciência e da Técnica de Bruno Latour)" Novos Estudos CEBRAP 39:172-179.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2012
  • Data do Fascículo
    1998
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