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Discursos de licenciandos em física sobre a questão nuclear no ensino médio: foco na abordagem histórica

Future physics teachers discourses about nuclear issues in High School: a focus on a historical approach

Resumos

Neste trabalho analisamos os discursos de dois licenciandos ao elaborarem um episódio de ensino com abordagem histórica do tema Questão Nuclear. Utilizamos, como referencial teórico, a Análise de Discurso, tal como divulgada no Brasil por Eni Orlandi. Observamos a forte influência da memória discursiva originada no Ensino Básico e Superior dos licenciandos. Os discursos produzidos compreenderam contradições e deslocamentos que os aproximaram dos discursos da pesquisa em ensino de Física.

História da Ciência; Física nuclear; Imaginário; Formação inicial de professores


In this article we analyze two undergraduate students' discourses when talking about a teaching chapter with a historical approach to the Nuclear Issue. Methodologically we make use of the discourse analysis, as it has become know in Brazil through Eni Orlandi. We observe the strong influence of undergraduate students' discursive memory generated during high school and university period. Their discourses contained contradictions and dislocations that were similar to those in education in physics' research discourses.

History of Science; Nuclear physics; Imaginary; Initial teacher education


Discursos de licenciandos em física sobre a questão nuclear no ensino médio: foco na abordagem histórica* * Apoio FAPESP e CNPq.

Future physics teachers discourses about nuclear issues in High School: a focus on a historical approach

Thirza Pavan SorpresoI,1 1 Rua Ruberlei Boareto da Silva, nº 36 Cidade Universitária, Barão Geraldo Campinas, SP 13.083-705 ; Maria José Pereira Monteiro de AlmeidaII

ILicenciada em Física. Mestre em Educação. Doutoranda em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp). Campinas, SP, Brasil. <thirza.ps@gmail.com>

IILicenciada em Física. Livre docente em Metodologia de Ensino. Professora Titular, Departamento de Ensino e Práticas Culturais, FE/Unicamp. Campinas, SP, Brasil. <mjpma@unicamp.br>

RESUMO

Neste trabalho analisamos os discursos de dois licenciandos ao elaborarem um episódio de ensino com abordagem histórica do tema Questão Nuclear. Utilizamos, como referencial teórico, a Análise de Discurso, tal como divulgada no Brasil por Eni Orlandi. Observamos a forte influência da memória discursiva originada no Ensino Básico e Superior dos licenciandos. Os discursos produzidos compreenderam contradições e deslocamentos que os aproximaram dos discursos da pesquisa em ensino de Física.

Palavras-chave: História da Ciência. Física nuclear. Imaginário. Formação inicial de professores.

ABSTRACT

In this article we analyze two undergraduate students' discourses when talking about a teaching chapter with a historical approach to the Nuclear Issue. Methodologically we make use of the discourse analysis, as it has become know in Brazil through Eni Orlandi. We observe the strong influence of undergraduate students' discursive memory generated during high school and university period. Their discourses contained contradictions and dislocations that were similar to those in education in physics' research discourses.

Keywords: History of Science. Nuclear physics. Imaginary. Initial teacher education.

Introdução

É fato que grande número das publicações sobre o ensino da Física em nível médio aponta para a necessidade de mudanças curriculares nessa disciplina, quer estas se refiram mais diretamente aos conteúdos do ensino propriamente ditos, quer remetam para maneiras de abordá-los.

Com relação aos conteúdos, no que se refere às pesquisas sobre Física Moderna e Contemporânea no Ensino Médio, Ostermann e Moreira (2000) apontaram que eram poucas as propostas testadas em sala de aula com apresentação de resultados de aprendizagem. Esse é um conteúdo certamente com grande potencial de subsídios para mudanças significativas nesse nível de ensino.

Já com relação a como ensinar determinados conteúdos, encontramos diversos estudos na pesquisa em ensino de ciências. Uma das abordagens é a História da Ciência. Na parte I deste artigo apresentamos uma revisão sobre a literatura a esse respeito, para, em seguida, apresentarmos um estudo, no qual procuramos compreender o imaginário de licenciandos em Física sobre a Questão Nuclear, numa abordagem histórica, em situações nas quais se procurava pensar o Ensino Médio.

Dentro da perspectiva da Análise de Discurso, referencial teórico que fundamenta este trabalho, considera-se que o imaginário é efetivo no funcionamento dos discursos dos sujeitos ao interferir na produção de sentidos sobre os objetos do discurso, e ainda que ele é constituído a partir da história do sujeito com esses objetos, de forma que se torna relevante na formação de professores a compreensão do imaginário dos licenciandos.

Dadas a necessidade de mudanças curriculares no ensino de Física em nível médio e as implicações dessas mudanças para a formação de professores, na disciplina Prática de Ensino de Física e Estágio Supervisionado, ministrada pela segunda autora deste artigo na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas durante um semestre, em 2005, foram trabalhadas atividades com o tema ''Questão nuclear'', numa abordagem de um assunto da física moderna e contemporânea que usualmente não é trabalhado no Ensino Médio. A disciplina incluiu em seu planejamento atividades com abordagens igualmente não usuais em aulas do Ensino Médio, mas bastante presentes na pesquisa em ensino de Física, como é o caso da História da Ciência. As atividades dessa disciplina foram acompanhadas e gravadas pela primeira autora deste artigo2 2 A dissertação de Sorpreso (2008) pautou-se nessas gravações. .

Neste texto apresentamos alguns aspectos relacionados ao imaginário dos licenciandos que trabalharam mais diretamente com a abordagem História da Ciência durante a disciplina. Procuramos apresentar elementos que nos auxiliem a compreender tanto a importância quanto as possibilidades e os limites dessa abordagem para a formação de professores.

Por fim, apontamos, a partir dessas constatações, algumas implicações para a formação de professores, e levantamos uma questão para pensar o ensino de Física nas escolas, suas atuais condições de produção e a influência das mesmas na prática de professores em sala de aula.

A História da Ciência na pesquisa em ensino de Física

Apresentamos, a seguir, uma revisão da literatura sobre a História da Ciência no ensino de Ciências. Apontamos pontos de vista de pesquisas sobre como a abordagem vem sendo utilizada e como poderia ser, caso certas condições fossem satisfeitas.

Procuramos sintetizar o que tem sido desenvolvido recentemente na pesquisa sobre a abordagem a partir de uma revisão nos periódicos: Investigações em Ensino de Ciências; Revista Brasileira de Ensino de Física; Caderno Brasileiro de Ensino de Física e Ciência & Educação.

Alguns dos trabalhos procuram apenas discutir a abordagem no ensino de ciências, sem efetivamente testar propostas em sala de aula. Dentre eles destacamos, primeiramente, artigos que alertam sobre a produção e escolha de textos em História da Ciência para o ensino.

Lílian Martins (2005) se preocupa em dar algumas orientações para quem pretende produzir trabalhos em História da Ciência, ou mesmo para professores que utilizam a abordagem, sobretudo no que diz respeito à seleção de trabalhos e identificação de seus erros. A autora considera que um estudo completo em Historia da Ciência englobaria tanto uma abordagem internalista, quanto uma abordagem externalista3 3 Os termos externalista e internalista serão retomados ao longo do artigo com os mesmos sentidos conferidos por Lílian Martins (2005). . De acordo com a autora, a abordagem internalista, ou conceitual, ''discute os fatores científicos (evidências, fatos de natureza científica) relacionados a determinado assunto ou problema. Procura responder a perguntas tais, como se determinada teoria estava bem fundamentada, considerando o contexto científico de sua época'' (MARTINS, 2005, p. 306). Já a abordagem externalista, ou não-conceitual, ''lida com os fatores extracientíficos (influências sociais, políticas, econômicas, luta pelo poder, propaganda, fatores psicológicos)'' (MARTINS, 2005, p. 306).

Roberto Martins (2001) afirma que, apesar da História da Física atrair pesquisadores, especialmente nas últimas décadas, devido à sua utilização no ensino, nem sempre as publicações são de bom nível. O autor expõe alguns requisitos que considera necessários para a produção de trabalhos de boa qualidade, dentre eles: o conhecimento aprofundado do autor do trabalho sobre o tema pesquisado e, ainda, prática em técnicas de pesquisa histórica; realização de pesquisa documental de qualidade; familiaridade tanto com a bibliografia primária, quanto com a secundária, sobre o assunto estudado, além de conhecimento historiográfico. O autor aponta o que considera erros banais cometidos em publicações em História da Ciência, relacionados à Física Aristotélica.

Silva e Martins (2003) discutem o trabalho de Newton sobre luz e cores, mostrando um exemplo de como a História da Ciência poderia ser utilizada em sala de aula, e fazendo advertências em relação ao uso inadequado dessa abordagem. Os autores afirmam que a utilização da abordagem depende dos objetivos pedagógicos e do tipo de estudante em questão. Para eles, se o objetivo do professor for ensinar Ciência através de sua História, os detalhes técnicos devem ser apresentados, e não apenas a História da Ciência externalista, deixada para o caso em que o objetivo do ensino seja não o aprendizado da ciência em si, mas de suas relações com aspectos socioculturais e relações entre desenvolvimento técnico e científico.

Em outro trabalho, Martins (2004) procura mostrar a grande influência das hipóteses e teorias na execução e interpretação de experimentos, por meio da abordagem histórica e exposição do contexto científico da descoberta da radioatividade. Para isso, discute originais e correspondências de cientistas da época. O autor esclarece que, ao suporem que a emissão de raios X era um fenômeno de luminescência, alguns cientistas, entre eles Becquerel, consideraram que chapas fotográficas, ao serem expostas a materiais radioativos (propriedade até então não explicada), eram impressionadas devido a um tipo de fosforescência, a hiperfosforescência. Ele procura mostrar como o conhecimento científico da época guiou os cientistas nessas conclusões.

Dias e Martins (2004) preocupam-se com a maneira como a História da Ciência é utilizada no ensino. A partir do estudo e discussão de trechos de trabalhos publicados por Faraday e de seu diário pessoal, os autores procuram transmitir uma visão mais adequada do processo de desenvolvimento da ciência. De acordo com os autores, esse processo seria comumente apresentado como sendo simples e linear, se daria por ''meio da apresentação do ''surgimento'' (normalmente descontextualizado) de uma grande teoria que ''derruba'' a teoria anteriormente vigente'' (DIAS e MARTINS, 2004, p. 518) e seria protagonizado por grandes gênios, apresentados aos alunos através de biografias caricaturais e fotos. Ao aprofundar o estudo sobre trechos dos trabalhos de Faraday, os autores procuram mostrar que, ''a evolução científica se faz com muita pesquisa, com resultados positivos e negativos, com debates dentro da comunidade, com conflitos e, principalmente, com investigações em torno de hipóteses e idéias'' (p. 528).

Também numa linha crítica, mas agora direcionada a concepções que subjazem à utilização da História da Ciência, Silveira e Peduzzi (2006) apresentam episódios da História da Ciência (gênese da Física de Galileu, gênese da teoria da relatividade restrita e a gênese do modelo atômico de Bohr), por meio de dois enfoques:, um empirista e outro baseado na filosofia da ciência contemporânea. Procuram, assim, criticar a história empirista, e em contrapartida mostrar que existe uma outra História da Ciência, muito mais rica e complexa, sobre a produção do conhecimento científico, e que apresenta uma interpretação mais realista e humana da história do conhecimento científico.

Já Arriassecq e Grega (2002) fazem críticas ao livro didático. Com base em pontos de vista da História e Filosofia da Ciência, as autoras defendem a introdução da Teoria da Relatividade Especial no ensino secundário. O objetivo do artigo é apontar aspectos que deveriam ser contemplados pelo livro didático, com relação ao tema. Pretendem também contribuir com os professores que queiram fazer tal introdução, apresentando contextos da teoria dentro do ponto de vista histórico, filosófico e epistemológico.

Ainda sobre artigos que discutem a abordagem sem apresentar o uso de propostas em sala de aula, encontramos aqueles que se referem, não à escolha ou produção de trabalhos em História da Ciência, mas ao debate sobre o que seria a abordagem histórica no ensino (AL-MEIDA, 2004b) e sobre os paralelos existentes entre concepções originadas no desenvolvimento da História da Ciência e concepções apresentadas pelos estudantes (BATISTA, 2004).

Almeida (2004b) procura refletir sobre a natureza do discurso, que permitiria que se falasse em abordagem histórica no ensino de ciências. A autora discute as noções de história e historicidade, procurando dirigir seu olhar para diferentes perspectivas na produção de conhecimento na História. Em seguida, discute as noções de discurso científico e interdiscurso, e conclui que a compreensão de discursos referentes à ciência poderia ser facilitada pela narrativa histórica.

Batista (2004) preocupa-se com as contribuições da História e Filosofia da Ciência para o ensino de Física, especialmente no que diz respeito ao auxílio destas disciplinas para lidar com aspectos cognitivos no aprendizado científico e concepções prévias dos alunos. O autor afirma que aprender Física implica aspectos que podem ser difíceis para os alunos, como: abstração, interpretação e reflexão. Para ele, haveria paralelos entre a História e Filosofia da Ciência e as estruturas cognitivas e concepções prévias dos estudantes.

Dentre os artigos revisados, alguns apresentam propostas de utilização da abordagem no ensino de Física e os resultados de aplicação em sala de aula. Esse é o caso de Guerra e Reis (2004) que apresentam uma proposta curricular para abordagem histórico-filosófica do eletromagnetismo realizada em salas de aula do Ensino Médio, no Rio de Janeiro. Para o desenvolvimento da proposta curricular apresentada, os autores afirmam que buscaram um equilíbrio entre o estudo aprofundado de História e Filosofia da Ciência, e a especificidade do ensino de ciências. De acordo com os autores, os alunos mostraram-se bastante motivados com o trabalho, discutindo cada vez mais, conforme as aulas se desenvolviam, expondo inclusive questões que os afligiam pessoalmente, como, por exemplo, relacionadas à ciência e à fé. A proposta teria permitido que os estudantes enxergassem a ciência como parte da cultura, e desenvolvessem um olhar crítico para a mesma. Afirmam ainda que a proposta possibilitou a abordagem de questões técnicas, internas à ciência, e questões externas, relacionadas a preocupações filosóficas de épocas específicas.

Köhnlein e Peduzzi (2005) apresentam um módulo didático centrado em temática histórico-filosófica da Teoria da Relatividade Restrita. Nele foram desenvolvidas atividades diferentes das usuais no Ensino Médio, como, por exemplo, a elaboração de histórias em quadrinhos. Com essa unidade procuraram contribuir com a elaboração de estratégias que promovessem reflexões críticas sobre a natureza da ciência. A partir dos resultados, afirmam que a unidade apresentou-se como uma estratégia bastante positiva, envolvendo os alunos em discussões em sala de aula e promovendo seu interesse em relação a conteúdos históricos e filosóficos. Quanto à visão sobre a natureza da ciência e do trabalho científico, afirmam que a mudança dos estudantes mostrou-se favorável e significativa.

Magalhães, Santos e Dias (2002) também apresentam proposta testada em sala de aula. Os autores preocupam-se com o ensino e a aprendizagem dos conceitos de campo elétrico e magnético. O objetivo do artigo é apresentar uma proposta, para o ensino desses conceitos, inspirada na teoria da aprendizagem significativa e na História da Física. A proposta levou em consideração as concepções dos alunos, obtidas a partir tanto de um questionário prévio, quanto da História da Física. Essa última, por sua vez, de acordo com os autores, serviria como elemento facilitador de uma aprendizagem significativa. Na apresentação da proposta, eles catalogaram eventos, questões e problemas que consideraram significativos para a formulação e fundamentação de conceitos relacionados ao eletromagnetismo. Concluem que os resultados obtidos indicaram uma melhoria no entendimento dos conceitos, pelos estudantes.

Outro artigo que apresenta propostas com resultados de trabalho em sala de aula, é o de Guridi e Arriasecq (2004). As autoras afirmam que a pesquisa em ensino tem avançado no que diz respeito ao embasamento teórico para incorporação da História e Filosofia da Ciência, no Ensino de Ciências, porém são poucas as propostas de como utilizá-las, testadas em sala de aula. Elas procuram apresentar uma proposta concreta de introdução da História e Filosofia da Ciência, em sala de aula no Ensino Médio, com o tema Modelo Atômico de Bohr. As autoras apresentam os recursos utilizados nesse trabalho, as concepções que esperam dos alunos, atividades desenvolvidas e a forma de avaliação. No artigo afirmam que, ao colocarem em prática algumas das propostas, os estudantes envolveram-se em discussões fervorosas.

Ainda sobre artigos que apresentam trabalhos em História da Ciência, encontramos Peduzzi e Basso (2005), que se preocupam com a introdução da Física Moderna e Contemporânea no Ensino Médio. Os autores apresentam um texto sobre o átomo de Bohr, voltado para o professor do Ensino Médio, procurando oferecer uma alternativa à abordagem empirista para fundamentar as discussões sobre o assunto em sala de aula. O texto foi submetido à avaliação de professores, que compreenderam e ressaltaram a insuficiência da abordagem empírico-indutivista, criticaram alguns de seus aspectos e deram sugestões para seu aprimoramento.

No trabalho de Dias (2001) podemos notar a importância da História da Ciência na discussão de modelos teóricos. A autora apresenta um estudo de caso, relacionado à Teoria do Calor, para exemplificar como a História da Ciência pode ser utilizada para melhorar a compreensão dos fundamentos da Física. Nesse sentido afirma que nem todos os modos de se fazer História da Ciência servem para o aprendizado de conceitos, ou servem aos fundamentos da ciência. Ao dar exemplos, ela afirma que certos conceitos, hoje considerados banais devido ao uso ao longo do tempo, tiveram de ser bastante discutidos para serem aceitos na época de sua gênese, e sem o estudo dessas discussões, os conceitos se tornariam de certa forma mágicos.

Dentre os artigos revisados, alguns conferem atenção especial para a utilização da História da Ciência por professores e em sua formação. Esse é o caso do artigo de Duarte (2004), que procura levantar implicações para a formação do professor, no que diz respeito à utilização da História da Ciência. A autora investiga práticas de professores e analisa suas percepções, com relação à própria formação e à importância da História da Ciência, além de analisar os currículos de Ciências em Portugal.

Outro trabalho que se preocupa com a História da Ciência e a formação de professores é o de Gatti, Nardi e Silva (2004). Os autores apresentam uma proposta de trabalho, desenvolvida na disciplina de prática de ensino de Física, sobre o tema atração gravitacional, destinada aos docentes de Física do Ensino Médio. Seu objetivo era refletir sobre como a evolução histórica dos modelos de atração entre corpos, tendo como pano de fundo a evolução dos modelos de mundo, poderia auxiliar na formação inicial dos docentes de Física.

Por fim, Neves e Savi (2000) manifestaram preocupação com a questão das ideias dos estudantes e do papel do ensino em sua modificação. Os autores desenvolveram um questionário com estudantes de graduação em engenharia e matemática, para compreender suas concepções e conhecimentos sobre História da Física. Afirmam que, de acordo com a pesquisa, fica evidente que o Ensino Médio não é suficiente para que os alunos rompam com concepções de senso comum. Entre outros motivos, acreditam que isso aconteça pela omissão da abordagem histórica no ensino. Afirmam que os resultados da pesquisa são desalentadores, pois os alunos desconhecem conceitos, períodos e personagens que definiram grandes paradigmas da ciência.

A partir dessa breve revisão, acrescentamos ainda que a questão das concepções alternativas foi encontrada em diversos artigos. Alguns levantam a possibilidade de correspondência - ou existência de paralelos - entre as ideias e concepções de alunos e professores e concepções de senso comum; com ideias, ou concepções de cientistas, ao longo da História da Ciência (ARRUDA et al., 2004; ALMEIDA, 2004b; BATISTA, 2004; DUARTE, 2004; GATTI, NARDI e SILVA, 2004). Outros elaboram propostas com abordagem histórica, nas quais pesquisam e/ou levam em consideração as concepções dos alunos estudados, ou levam em consideração concepções alternativas divulgadas pela pesquisa em ensino de ciências (GAT-TI, NARDI e SILVA, 2004; GURIDI e ARRIASECQ, 2004; MAGALHÃES, SANTOS e DIAS, 2002; NEVES e SAVI, 2000).

Ressaltamos que, nos artigos citados, podemos encontrar críticas: ao ensino de Ciências, dito tradicional, à formação de professores, a livros didáticos, livros e textos de divulgação científica, e a artigos de História da Ciência por, em diversos casos, contribuírem com a disseminação de uma visão equivocada da Ciência, muitas vezes empírico-indutivista, e com racionalismo exagerado, a qual já foi abandonada por filósofos e historiadores atuais. Entre as justificativas: por não contextualizarem adequadamente os temas; por tratarem conceitos científicos de forma superficial; por apresentarem a História da Ciência como um conjunto de fatos curiosos, a ciência como um processo linear e acumulativo, e os cientistas como mitos; ou, ainda, por priorizar os produtos finais da ciência; ou simplesmente por não contemplarem a História e/ou Filosofia da Ciência, gerando dificuldades nos alunos, impossibilitando a compreensão da natureza da ciência ou impossibilitando que suas ideias sejam confrontadas peloensino (MELO e PEDUZZI, 2007; SILVEIRA e PEDUZZI, 2006; KÖHNLEIN e PEDUZ-ZI, 2005; GURIDI e ARRIASECQ, 2004; PEDUZZI e BASSO, 2005; BATISTA, 2004; DIAS e MARTINS, 2004; MARTINS, 2004; SILVA e MARTINS, 2003; MARTINS, 2001).

Nos artigos revisados, também são relacionadas vantagens e justificativas para a utilização da abordagem histórica no ensino. Para alguns autores, o trabalho com a abordagem histórica permitiria que os alunos compreendessem: as dificuldades e obstáculos que foram superados na produção de teorias científicas; que os cientistas utilizam ferramentas lógicas, metodológicas e epistemológicas presentes em sua época, e muitas vezes diferentes das atuais; a justificativa para uma proposição ser considerada comprovada, e de como ela se relacionaria com outras proposições na Física; o processo de construção da ciência, e reflexão sobre sua natureza; a superação da ideia de uma ciência construída por meio de descobertas de verdades inquestionáveis; o desenvolvimento da ciência que se dá por acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas, relacionado com contextos sociais, culturais, filosóficos e tecnológicos; como e por que os conceitos são criados e seus significados. Poderia ainda gerar atitudes positivas nos alunos com relação à Ciência; também poderia facilitar a percepção de que a ciência é uma atividade humana, e não de supergênios; permitiria a percepção das semelhanças entre o conhecimento de senso comum e o científico ao longo da história, auxiliando na mudança conceitual. Promoveria o aprendizado, ao invés da crença científica, e contribuiria para a constituição de uma visão mais crítica e humana da gênese e desenvolvimento científico(KÖHNLEIN e PEDUZZI, 2005; ALMEIDA, 2004b; BATISTA, 2004; DIAS e MARTINS, 2004; DUARTE, 2004; GATTI, NARDI e SILVA, 2004; GUERRA e REIS, 2004; GURIDI e ARRIASECQ, 2004; MARTINS, 2004; SILVA e MARTINS, 2003; ARRIASECQ e GRE-CA, 2002; DIAS, 2001).

Diversos artigos justificam a utilização da História da Ciência, argumentando que auxiliaria o desenvolvimento da cidadania, possibilitando a tomada de decisões mais críticas sobre temas científicos e tecnológicos (DUARTE, 2004; GUERRA e REIS, 2004; GURIDI e ARRIASECQ, 2004).

Alguns dos autores defendem a utilização de originais de cientistas em sala de aula, como é o caso de Almeida (2004b) e Guridi e Arriasecq (2004).

Também notamos que os conteúdos tratados nessas publicações são bastante variados, incluindo alguns pertinentes à física clássica: mecânica, ótica, eletromagnetismo, física térmica; e outros à física moderna e contemporânea.

Com base nessa revisão, notamos que são poucos os trabalhos em História da Ciência desenvolvidos na formação do professor. Mesmo dentre aqueles que se preocupam com a formação docente, não são levadas em consideração as posições dos professores, ou futuros professores, sobre o conteúdo de ensino, o recurso didático no qual esse conteúdo é veiculado, ou a respeito dos estudantes. Posições estas que consideramos fator condicionante das mediações de ensino possíveis em sala de aula. Assim, admitimos que os futuros professores devam tomar consciência de aspectos de seu imaginário, e para tal, os formadores de professores devem trabalhá-los em suas disciplinas.

Para pensar o imaginário

Para procurarmos compreender posições de licenciandos a respeito da utilização da História da Ciência no Ensino de Física em nível médio, nos apoiamos na noção de imaginário. Para introduzir a noção de imaginário e seu funcionamento em sala de aula, apresentamos, a seguir, alguns aspectos do referencial teórico utilizado.

Ao considerarmos o papel do imaginário na mediação em sala de aula, utilizamos a Análise de Discurso (AD), tal como iniciada na França por Michel Pêcheux, com base, sobretudo, em textos de Eni Orlandi publicados no Brasil. A AD pressupõe a não transparência da linguagem e podemos afirmar que essa não transparência ''se manifesta pela consideração do equívoco, como constitutivo da linguagem. Ou seja, a ambigüidade, a não unicidade do sentido, a possibilidade de interpretação são inerentes à linguagem'' (ALMEIDA, 2004a, p. 36).

Na AD, o discurso pode ser considerado como efeito de sentidos entre locutores, as palavras enunciadas num discurso não têm sentido predeterminado. Na produção dos discursos como processos de mediação social, são produzidos sentidos, esses processos são influenciados pelas condições dessa produção. O discurso é palavra em movimento, prática de linguagem. Assim, para a AD, a língua não é apenas um sistema de signos ou sistema de regras formais prontas, mas também produção sócio-histórica, ideológica.

Dentro dessa perspectiva, assumimos que são produzidos sentidos pelos licenciandos ao enunciarem seus discursos sobre a abordagem histórica, seu significado e sua utilização. Sentidos relacionados às condições de produção imediatas e sócio-históricas e que procuramos compreender a partir dessas condições.

Tomando a AD como apoio teórico, importa-nos compreender não apenas o que o discurso significa, mas como ele se constitui. Quais são suas condições de produção e como elas interferem na constituição dos sentidos. Os dizeres dos licenciandos permitem diferentes sentidos e, para compreender a sua produção, procuramos relacionar tais dizeres à sua exterioridade, compreendendo a situação em que são enunciados, ou seja, o contexto imediato, e o contexto mais amplo, sócio-histórico, ideológico.

Neste trabalho, para compreendermos a constituição dos discursos dos licenciandos, foi necessário delimitar as condições de sua produção. Consideramos, como uma condição relevante para análise, a maneira como a História da Ciência vem sendo utilizada no Ensino Médio gerando concepções sobre essa abordagem no imaginário dos licenciandos, desde quando estudavam nesse nível de ensino, ou mesmo antes e em outras disciplinas no Ensino Superior. Por outro lado, ao cursarem a disciplina Prática de Ensino de Física e Estágio Supervisionado, os licenciandos deparam-se com discursos diferentes daqueles produzidos na escola sobre a História da Ciência, sobretudo por meio de artigos de pesquisa em ensino; sendo assim, tomamos também como condições de produção os acontecimentos da disciplina e, ainda, outras pesquisas que vêm sendo desenvolvidas na área e as quais eles podem ter acessado.

Sentidos pré-construídos sócio-historicamente são incorporados pelo interdiscurso nas palavras ditas pelos licenciandos. O interdiscurso é a memória discursiva, que torna possível a retomada de um dizer anterior, que, por sua vez, sustenta as palavras tomadas no momento de enunciação atual. Assim, com o acionamento da memória, o imaginário dos licenciandos materializa-se em seus dizeres. Através da memória eles trazem, para seus dizeres, os já ditos esquecidos e que carregam em si sentidos pré-constituídos antes das enunciações. Nessa perspectiva, observamos que, sob determinadas condições, como nesse trabalho, em que os licenciandos entraram em contato com diferentes discursos sobre a abordagem, podemos observar contradições e deslocamentos, já que, em seu mecanismo imaginário, estão agindo condições de produção por vezes divergentes. Ou seja, a memória discursiva e as condições de produção marcam contradições nos discursos dos licenciandos.

Para compreender a tomada de um sentido, e não outro, no momento da enunciação, é preciso compreender as noções de imaginário e ideologia.

A ideologia, na análise de discurso, está na produção da evidência do sentido (só pode ser 'este') e na impressão do sujeito ser a origem dos sentidos que produz, quando na verdade ele retoma sentidos pré-existentes. Daí a necessidade de se pensar o gesto de interpretação como lugar da contradição: é o que permite o dizer do sujeito pela repetição (efeito do já-dito) e pelo deslocamento (historicização). A interpretação se faz assim entre a memória institucional (arquivo) e os efeitos da memória (interdiscurso). No domínio do arquivo a repetição congela, estabiliza, no domínio do interdiscurso a repetição é a possibilidade do sentido vir a ser outro, no movimento contraditório entre o mesmo e o diferente. (ORLANDI, 1998, p. 16)

Quando o sujeito fala, fala a partir de um lugar, que pode ser do professor, do aluno, do pesquisador etc. Nessa tomada de posição há a interferência das relações de forças que se sustentam pela autoridade dos diferentes lugares ocupados. Os lugares subentendem um poder. As relações de forças repousam no que, na AD, é chamado de formações imaginárias.

Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas - os lugares dos sujeitos - para as posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição.

Em toda língua há regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória (o saber discursivo, o já dito) (ORLANDI, 2005, p. 40).

Dessa forma ao se posicionar discursivamente como um aluno do Ensino Básico, um licenciando pode atribuir sentidos para a História da Ciência diferentes daqueles que atribui ao se posicionar discursivamente como um pesquisador da abordagem, ou como um professor do Ensino Médio. Mesmo não ocupando tais lugares empíricos de fato, ao enunciar seus discursos, o licenciando pode discursivamente posicionar-se como tal.

As projeções são possíveis a partir do mecanismo imaginário, é ele que produz imagens do sujeito e do objeto do discurso, dentro de um contexto sócio-histórico. Através do mecanismo imaginário, o locutor se posiciona, posiciona seu interlocutor e o objeto do discurso. Esse imaginário ''assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder'' (ORLANDI, 2005, p. 42). Essa perspectiva faz parte do funcionamento da linguagem, condicionando os sujeitos na produção de discursos, incluindo aqueles que se inserem nas mediações em sala de aula.

Por fim, ressaltamos que, nessa perspectiva, as condições de produção têm papel bastante relevante para o funcionamento do mecanismo imaginário, ou seja, para quais dizeres e quais sentidos serão disponibilizados por esse mecanismo na produção dos discursos.

Assim, para compreender aspectos do imaginário dos licenciandos, relacionados ao tema 'Questão nuclear', tratado com a abordagem histórica, é preciso levar em consideração as condições de produção em que se desenvolveu a disciplina ''Prática de Ensino de Física e Estágio Supervisionado'', na qual coletamos os discursos aqui analisados.

Condições de produção da disciplina e aspectos do imaginário dos licenciandos

Como dissemos anteriormente, os discursos aqui analisados foram obtidos durante a realização da disciplina ''Prática de Ensino de Física e Estágio Supervisionado'', desenvolvida na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas no primeiro semestre de 2005. O tema da disciplina foi escolhido entre a professora e os licenciandos como sendo a questão nuclear. Os licenciandos foram divididos em duplas e cada uma ficou responsável pelo planejamento e apresentação de um seminário, relacionado ao tema e a um tipo de abordagem, dentre as quais História da Ciência. O seminário previa a explicação da abordagem e a apresentação de um episódio de ensino com o referido tema. Neste trabalho, analisamos as contribuições dos licenciandos Alan e Daniel4 4 Os nomes são fictícios. , que foram responsáveis pela apresentação do seminário com abordagem histórica.

Apresentamos abaixo os elementos contemplados no plano de curso da disciplina de forma a situar algumas das características presentes nas discussões e nas atividades da disciplina, já que não podemos explicitá-las detalhadamente. A disciplina procurou contribuir para que o licenciando: conheça e reflita sobre aspectos da cotidianidade do ensino médio, com foco no ensino de Física, a partir de observações em escolas, pesquisas publicadas, recursos didáticos destinados a esse ensino e documentos oficiais como os parâmetros curriculares; discuta e se posicione quanto a concepções de ciência e de ensino veiculadas em recursos didáticos, pensando o seu funcionamento em estratégias específicas de ensino; compreenda elementos da pesquisa educacional sobre educação em ciências e procure relacioná-los com a prática pedagógica em aulas de Física do ensino médio e reflita sobre elementos do planejamento escolar do Ensino Médio.

A seguir, selecionamos algumas das atividades, ocorridas durante a disciplina, que possibilitaram evidenciar alguns aspectos do imaginário dos licenciandos. Dividimos a análise em três momentos, de forma a considerar as condições de produção que admitimos como determinantes para o foco deste artigo.

O primeiro momento refere-se à análise de um questionário respondido pelos licenciandos na primeira aula da disciplina. Nesse momento encontramos elementos presentes nos discursos dos licenciandos bastante relacionados à sua memória discursiva, sem a interferência das condições de produção que fizeram parte das ocorrências durante a disciplina, já que se tratava do primeiro dia de aula.

No segundo momento analisamos os discursos referentes aos planejamentos do seminário e episódio de ensino em que podemos notar indícios das condições imediatas da disciplina nos discursos dos licenciandos. Nesse segundo momento os licenciandos leram, utilizaram e discutiram publicações da área de ensino de ciências5 5 Dentre elas ressaltamos: Almeida (2004, p.71-93; 95-114); Lopes (1996) e Mortimer, (1995, p. 56-74). .

Por fim, no terceiro momento, apresentamos os discursos relacionados ao seminário e episódio de ensino apresentados, em que analisamos o resultado final do trabalho dos licenciados e o que mais se aproximaria de uma situação de ensino da questão nuclear com abordagem histórica pelos licenciandos. Para a elaboração dos episódios de ensino, os licenciandos não se restringiram à bibliografia presente no plano de curso; a professora fez sugestões de periódicos de pesquisa em ensino de ciências e levou, para a sala de aula, livros e textos como sugestão para a preparação dos seminários, além de outros recursos, como notícias de jornal6 6 Os licenciandos também utilizaram bibliografia adquirida independentemente da disciplina e apresentada em um relatório entregue no final do curso: Kuhn (1977); Pessoa Jr. (1996) e Gibert (1982). .

Questionário inicial

No início do semestre, os licenciandos responderam um questionário inicial, cujo objetivo foi investigar suas expectativas sobre a disciplina e seu imaginário sobre o ensino de ciências. A física nuclear e a abordagem História da Ciência não foram citadas nas questões.

A partir desse questionário, tivemos maior conhecimento de quem eram os alunos da disciplina. Nesse questionário, Alan afirmou que o bom professor de Física seria aquele que:''[...] institui práticas que façam aguçar o interesse do aluno pelo assunto estudado, seja através de História da Ciência, práticas experimentais, exemplos do cotidiano, etc, mas nunca perde o rigor de ensinar através de conceitos, fórmulas etc.''.

Já Daniel, quando questionado sobre como planejava suas aulas, afirmou: ''Através do tema, eu planejaria um conteúdo que envolvesse sua história, prática e seus conceitos.''

Notamos que já fazia parte do imaginário desses licenciandos considerar a utilização da História da Ciência no ensino de Física, mesmo antes de a utilização da abordagem ser sugerida na disciplina, indicando o conhecimento da abordagem pelos licenciandos, adquirido possivelmente através de disciplinas anteriores. Indicando, também, uma inclinação pela abordagem, como foi citado em momentos posteriores pelos licenciandos.

Talvez por gostar da abordagem, o licenciando Alan a tenha associado, em seu depoimento, com o interesse dos alunos, justificando sua utilização. Já Daniel, em seu depoimento, não justificou a possível utilização da abordagem.

Também observamos que, em diversos momentos da disciplina, os licenciandos levantaram a questão da falta de interesse dos estudantes do Ensino Médio com relação à Física. Esse aspecto também é bastante discutido pela pesquisa em ensino de Física e, também, é ponto recorrente nas escolas (conforme pudemos observar nos relatórios de estágio desses mesmos licenciandos). Provavelmente preocupado com essa questão, e considerando a História da Ciência motivadora, o licenciando incluiu-a em seu depoimento sobre o bom professor.

Podemos considerar que os discursos dos licenciandos nesse momento não se aproximavam dos discursos presentes na pesquisa em ensino de ciências, já que esta apresenta outras justificativas para a utilização da História da Ciência, além do aumento de interesse e motivação dos alunos. Conforme apresentamos na revisão bibliográfica, a pesquisa aponta que a utilização da História da Ciência permite, dentre outras coisas, a compreensão do processo de construção da Física e, sendo assim, seria uma forma de ensinar a própria Física. Já, para os licenciandos, a História da Ciência aparece mais como um instrumento motivador, do que como uma forma de ensino da Física, sobretudo se observarmos o final do depoimento de Alan, quando esse declara que o bom professor ''[...] nunca perde o rigor de ensinar através de conceitos, fórmulas'', indicando que talvez, em seu imaginário, utilizar a História da Ciência não implicaria em ensinar conceitos e fórmulas. O depoimento de Daniel pareceu indicar o mesmo, já que ele separa história e conceitos.

Provavelmente o significado da História da Ciência, presente em seus imaginários, estivesse mais relacionado a uma história próxima daquela divulgada em muitos dos livros didáticos, alguns textos de divulgação científica, na mídia ou na escola. Uma História que, como é apontado pelas pesquisas em ensino, muitas vezes consiste na apresentação de um conjunto de fatos curiosos em datas determinadas, descobertos por supergênios, acompanhados de uma curta biografia dos mesmos, e não uma abordagem que procure situar os estudantes com relação ao desenvolvimento da ciência, reflexões sobre sua natureza e relações com contextos sociais, culturais, políticos etc.

Conforme observaremos a seguir, esses sentidos atribuídos para a História da Ciência pelos licenciandos sofreram deslocamentos ao longo da disciplina.

Planejamentos dos seminários e episódios de ensino

Depois de combinado com os licenciandos que o tema da disciplina seria a questão nuclear, foram escolhidas as duplas e as abordagens que cada par trabalharia. A seguir, analisamos os depoimentos dos licenciandos em atividades relacionadas ao planejamento de seminários e episódios de ensino.

Observamos, a partir desse momento, que os discursos dos licenciandos aparecem marcados por contradições, ora parecem sofrer influência maior de sua memória discursiva do Ensino Básico e Superior, ora das condições de produção da disciplina.

Na primeira aula em que realizaram o planejamento, a professora pediu que cada aluno redigisse e entregasse um levantamento das primeiras ideias sobre a física nuclear. Alan escreveu:

''Algumas abordagens relevantes em minha opinião são:

História - surgimento da Física Nuclear (principais descobertas, problemas e soluções).

Física - Explicação de processos nucleares simples (utilizando o paradigma)

Energia Nuclear - usinas nucleares, bomba, etc. radioterapia, raios - x, projetos.

Política x decisões em tempos de guerra, o que a Energia nuclear mudou na política internacional atual, debates, opiniões, etc.''

Nesse depoimento, Alan separa História e Física em itens diferentes. Poderíamos supor que esse seria um indício de que Alan consideraria que ensinar História e ensinar Físicaseriam práticas diferentes. É claro que não podemos afirmar que o sentido atribuído pelo licenciando para tais práticas é exatamente este, já que, conforme explicitado neste artigo, estamos refletindo dentro de uma perspectiva de não-transparência da linguagem, na qual a ambiguidade, a não unicidade de sentidos, são pré-supostos. Podemos ainda nos questionar por que o licenciando não escreveu um único item História da Física, considerando que abordar a História seria abordar também a Física.

A questão ''política x decisões'' também não foi considerada dentro do tópico História. Devido à divisão de tópicos apresentada pelo licenciando, poderíamos considerar que em seu imaginário, nesse momento, o tratamento histórico não implicaria o tratamento dos processos nucleares nem envolveria o contexto político, que foram inseridos no tópico dois e quatro, respectivamente, e não no tópico um, reservado à História. O seja, o tratamento histórico implicaria o surgimento da Física Nuclear e as principais descobertas. Uma História que parece, novamente, se assemelhar com aquela mais divulgada por livros didáticos e ensino tradicional.

No entanto, ele também considerou o tratamento dos problemas da ciência e a existência de paradigmas, ou seja, uma ciência que se desenvolveria a partir da solução de problemas e que não seria acumulativa. Aspectos que, por sua vez, distanciam o significado da História da Ciência, presente no imaginário desse licenciando, da História mais presente em livros ou ensino tradicional, e o aproximam de significados presentes na pesquisa em ensino de ciências.

Na continuidade do planejamento, em outra aula, a professora entregou para as duplas um questionário. Esse questionário teve como objetivo, auxiliar o planejamento dos episódios. Em resposta à questão ''Qual a estratégia de ensino para o seminário?'', por Alan e Daniel, observamos que, mais uma vez, os aspectos históricos e físicos foram separados: ''Apresentação através de transparências, com possível uso de quadro negro, abordando aspectos históricos e físicos da formação da Física nuclear''.

Sobre as concepções de ciência que a dupla pretendia ajudar os estudantes a construírem, eles afirmaram: ''Ciência como processo investigativo e de criatividade, formando um cidadão de opinião, senso crítico, e ao mesmo tempo maravilhando-se com o processo de formação da ciência''.

Notamos, a partir dessa resposta, que os licenciandos consideraram a Ciência como um processo investigativo e criativo. Notamos, ainda, que vincularam a abordagem histórica ao processo de formação da ciência, ou seja, eles pretendiam tratar os processos de formação, e não apenas os resultados da ciência. Nos depoimentos, também foi apresentada uma justificativa para utilização da abordagem, presente nas pesquisas em ensino de ciências: o desenvolvimento do cidadão de opinião e senso crítico. Esse depoimento parece sofrer deslocamentos com relação a depoimentos anteriores: a História da Ciência passa a ser não apenas um instrumento motivador, mas também uma forma de auxiliar os alunos a compreenderem o processo de produção da ciência e, também, a se desenvolverem enquanto cidadãos.

Em resposta à questão ''Dada a estratégia escolhida pelo grupo, que itens sobre questões nucleares devem ser trabalhados com os estudantes de ensino médio?'', a dupla respondeu:

''Descoberta fissão nuclear e fusão, como funciona ou qual o modelo aceito atualmente para o processo de fissão-fusão. Energias envolvidas (equações simples dos fenômenos). Utilização - reatores nucleares - água pesada, moderadores de nêutrons - combustível estelar - nosso sol. Utilização - armas nucleares, bomba físsil, bomba H, acidente de Chernobyl. Evolução do entendimento a respeito do átomo: 1897 - descoberta do elétron 1909 - descoberta do núcleo 1919 - próton - previsão do nêutron por Rutherford 1932 - descoberta do nêutron 1938 - fissão do urânio, 235 U 1949? - fusão do 1 H Movimento pacifista, projeto Manhattam Principais problemas no funcionamento de um reator nuclear.''

Notamos que os licenciandos consideraram a existência de diferentes modelos na física nuclear. Quando falaram da evolução do entendimento a respeito do átomo, citaram datas e descobertas que consideraram importantes para o trabalho com o ensino de física nuclear, o que se assemelharia à História da Ciência normalmente presente em livros didáticos e aulas de Física. Notamos também que os licenciandos pretendiam considerar aspectos do contexto social e político, relacionados à questão nuclear, e aspectos específicos relacionados aos fenômenos de fissão e fusão, assim como sua aplicação tecnológica em usinas e armas nucleares.

Durante os planejamentos - que incluíam: discussões, leitura de textos, pesquisa bibliográfica, dentre outras atividades -, em alguns momentos, apareceram indícios de que tratar de História da Ciência não incluiria ensinar Física; em outros momentos, como no último depoimento dos licenciandos, os indícios dessa fragmentação não apareceram.

No caso específico de Alan, o mesmo ocorreu para aspectos como o contexto político, que, em alguns momentos, foi considerado em tópico separado da História da Física, e, no último depoimento, não houve indício algum nesse sentido.

Um aspecto constante nas falas de Alan foi a consideração de diferentes modelos, ou ainda, de paradigmas e a consideração de problemas nos processos de construção da ciência.

Notamos ainda que, em alguns momentos, os licenciandos falaram que tratariam dos processos de formação da ciência, incluindo nesse processo aspectos como a criatividade. Em outros momentos, a História da Física pareceu estar ligada a surgimentos e descobertas principais em datas específicas, concepção que se assemelharia a ideia de alguns livros didáticos para o tratamento histórico.

Notamos também que, nos planejamentos, as justificativas para a utilização da abordagem histórica foram ampliadas. A abordagem não seria apenas utilizada para motivar o estudante, mas também seria utilizada com o objetivo de auxiliar no desenvolvimento de sua cidadania.

Provavelmente, esses deslocamentos e conflitos, no imaginário dos licenciandos, ocorreram pelo contato com publicações em ensino de Ciências durante as aulas da disciplina, ou mesmo em suas pesquisas para preparação do seminário e episódio de ensino, ou ainda devido a discussões e atividades da própria disciplina, que contrastavam com a História dos livros didáticos e ensino tradicional.

Seminário

Neste terceiro momento, apresentamos algumas análises de trechos do seminário apresentado pelos licenciandos. Observamos que há bastante influência do discurso da pesquisa em suas falas. Por outro lado, a apresentação do seminário constitui-se de elementos mais próximos de uma História 'tradicional', marcando novamente contradições entre sua memória discursiva e as condições de produção imediatas.

O seminário da dupla responsável pela abordagem histórica foi dividido em duas partes: uma apresentada por Daniel, tratando da abordagem, e outra apresentada por Alan, tratando do episódio de ensino.

Daniel, apresentando a primeira parte do seminário, iniciou-o falando sobre o que pensava com relação ao ensino de Física no nível médio, criticando que este fosse voltado para o vestibular, e que consistiria da resolução de equações.

Para Daniel, quando a abordagem histórica era utilizada no ensino, seria externalista, o que, segundo ele, implicaria a consideração do contexto da época e suas necessidades tecnológicas. Até o momento os licenciandos não haviam citado História internalista ou externalista, o que indica um evidente contato com pesquisas em ensino de ciências e reflexões sobre a utilização da História da Ciência.

A seguir, Daniel falou sobre como, quando e por que poderia ser utilizada a História da Ciência no ensino de Física:

''Então, como? Quando? Por quê? Basicamente a gente vai estudar a abordagem histórica para ajudar no Ensino de Ciências [...] vários pontos que a gente pode estar ajudando com a abordagem histórica [...] e pontos que a gente não estaria fazendo efeito nenhum com a abordagem histórica, porque a concepção de ensino é diferente e essa concepção de ensino tem que estar bem clara para o professor, qual o objetivo [...] no cursinho onde é saber resolver equação, saber alguns conceitos para passar no vestibular, não vai ajudar muito uma abordagem histórica [...] você pode ter uma outra abordagem [...]''.

Nesse depoimento, a justificativa para a possibilidade de utilização, ou não, da História da Ciência, veio acompanhada do objetivo e das concepções de ensino do professor, o que indicaria novamente um grande deslocamento com relação à consideração de que a História da Ciência serviria apenas para motivar os alunos. Nesse momento a forma de ensino se relaciona com o que seria ensinado. Podemos considerar também que esse é um indício de que, para os licenciandos, utilizar a História da Ciência seria também ensinar Física.

Novamente Daniel recorreu à questão do vestibular. Para esse licenciando, um ensino voltado para o vestibular excluiria a possibilidade do trabalho com História da Ciência.

O licenciando continuou a discussão sobre a utilização da História da Ciência, tratando dos alunos a quem se destinaria esse ensino:

''[...] História da Ciência para quem? E quando a ênfase é para ser dada, quando é utilizada a abordagem histórica? Então, quando o aluno é do segundo grau [...] não é para ser dada muita ênfase, é para ser dada, mas não muita. Qual o nível do aluno? Quantas vezes já viu essa matéria? Todas essas questões são levadas em consideração [...]. E no caso da Física Nuclear, que não é um tópico abordado no Ensino Médio [...] a gente resolveu dar a abordagem que a gente vai dar, que é uma abordagem externalista e que fala [...] como era a sociedade na época quais as necessidade tecnológicas [...]''.

Notamos que, ao questionar-se 'História para quem?', o licenciando fala sobre a falta de afinidade que, em sua opinião, os alunos do Ensino Médio teriam com a física nuclear, e, dessa forma, seria melhor a utilização de uma abordagem histórica externalista. Provavelmente por julgar que os alunos do Ensino Médio não teriam conhecimento sobre física nuclear, Alan e Daniel optaram por abordar o contexto da época, provavelmente partindo do pressuposto de que os estudantes não compreenderiam aspectos internos à física nuclear.

No trecho seguinte, Daniel novamente fez pressuposições sobre os conhecimentos dos possíveis alunos e do nível de dificuldade que teriam aprendendo a Física Nuclear, excluindo a possibilidade de utilização de originais de cientistas no ensino dessa física:

''[...] não caberia muito aqui [...] leitura de originais. A Física Nuclear pelo menos a meu ver ela já usa uma linguagem um pouco mais complicada para estar passando para o ensino médio. Têm experimentos chave da História que seriam interessantes fazer e também Física Nuclear, fazer isso no ensino médio não é muito legal''.

No imaginário desse licenciando, a física nuclear seria complicada para os estudantes do Ensino Médio, restringindo determinadas formas, atividades ou os materiais utilizados na abordagem histórica. Essa restrição ficou mais evidente quando retornamos a uma das aulas, no início da disciplina gravada em vídeo, na qual os licenciandos discutiram a utilização de originais de cientistas. O licenciando Daniel se posicionou a favor de sua utilização, dizendo que possibilitaria a aproximação dos alunos com a ciência e o cientista, e a aquisição do hábito de leitura, porém, no último depoimento, tratando-se de física nuclear, ele se posicionou contra sua utilização.

No próximo trecho, Daniel considerou a importância da História da Ciência para a compreensão do processo de construção do conhecimento científico:

''[...] O que é esse conhecimento científico? Quando a pessoa sabe quando esse conhecimento é reificado, sobre o que ele está baseado e o inverso disso, a crença científica, conhecimento dos resultados científicos junto da aceitação como verdade, o que é basicamente passado no ensino médio, olha só a antítese dos dois, em um você sabe como é justificado, como foi construído, como foi todo esse processo de pesquisa, a dinâmica da coisa, como uma teoria foi sobrepondo-se à outra. Ao contrário do ensino médio a autoridade do professor ou do cientista, Newton fez isso aí, todo mundo já está ligado no nome do Newton, ou no nome de Ohm, ou outro cientista, se ele falou é verdade, mas não está nem um pouco por dentro de todo o processo da História da Ciência, da abordagem que a gente vai dar com a História, com a construção desse conhecimento científico, [...] para a construção do conhecimento científico é necessário estudar o contexto científico, bases experimentais, várias alternativas da época, processo dinâmico de descoberta, ou invenção, justificação e difusão de teorias. É justamente esta abordagem que a gente vai querer dar no nosso trabalho [...] Assim a grande conclusão que a gente chega [...] uma forma de adquirir conhecimento científico é ensinando História da Ciência [...]''.

O licenciando criticou as aulas de Física do Ensino Médio, dizendo que seriam baseadas na crença científica, e não no conhecimento científico. Daniel, nesse trecho, afirmou que, com o episódio elaborado pela dupla sobre História da Ciência, pretendiam que os alunos adquirissem conhecimento científico, e não crenças científicas. Segundo o licenciando, para isso, o episódio que seria apresentado deveria contemplar aspectos como: contexto científico, as bases experimentais, as várias alternativas da época, o processo dinâmico de descoberta etc. Novamente, há um grande deslocamento nessa fala específica do licenciando com relação a momentos anteriores, ou seja, aqui, novamente, ensinar História da Ciência seria também ensinar Física e, ainda, utilizar a História da Ciência seria uma forma de aquisição de conhecimentos, e não crenças.

Alan iniciou sua parte na apresentação do seminário dizendo o que pretendia tratar e reforçando que sua abordagem seria externalista. Afirmou ainda que pretendia apresentar o que se passava e como era feita a pesquisa em física nuclear no período de 1895 até, aproximadamente, 1945. Durante toda sua exposição Alan apresentou transparências, com fotos de cientistas, esquemas de experimentos e datas.

Alan iniciou a apresentação do episódio de ensino mostrando o esquema de um experimento realizado por Becquerel, Marie Curie e Pierre Curie, em que chapas fotográficas colocadas próximas de uma caixa de chumbo contendo Polônio seriam impressionadas por partículas. De acordo com Alan, essas partículas emitidas espontaneamente pelo Polônio seriam núcleos de Hélio, também chamadas partículas alfa. De acordo com o licenciando, esse experimento teria levado à descoberta da radioatividade.

Em seguida, o licenciando falou sobre a descoberta do elétron por Thompson. Explicou que, até então, a comunidade científica sabia que o átomo era composto de cargas positivas e negativas, porém não tinha conhecimento da localização dessas cargas no átomo. Alan explicou que, com a descoberta do elétron, surge o modelo do 'pudim de passas' e o expôs. Alan ainda apresentou o experimento realizado por Thompson para a descoberta do elétron.

Em seguida Alan falou da descoberta do núcleo por Rutherford, Geiger e Marsdenem 1911, apresentando e explicando o aparato experimental de espalhamento. É interessante notar que ele incluía constantemente comentários que denominou 'curiosidades', como no trecho reproduzido abaixo e em outros não transcritos:

''[...] Rutherford, ele e mais dois colaboradores, um chamado Geiger inventor do contador Geiger, e outro chamado Marsden, descobrem o núcleo atômico. Esse Marsden, só por curiosidade, era um estudante de 20 anos, não tinha nem terminado a graduação ainda. [...] Só como curiosidade epistemológica, não sei se é esse o termo correto, mas na época não se falava em grupo de pesquisa, não tinha esse conceito de grupo de pesquisa, não existia o grupo do Rutherford, não existia o grupo dos Curie. [...]''7 7 Grifos das autoras. .

Em seguida, Alan falou sobre as características da partícula alfa e explicou o processo de decaimento alfa. A apresentação do episódio foi finalizada com explicações relacionadas à bomba nuclear e acontecimentos sociopolíticos consequentes.

Notamos que o episódio de ensino baseou-se na apresentação de datas, cientistas e experimentos que, para os licenciandos, teriam sido fundamentais no desenvolvimento da física nuclear. Eles não utilizaram uma abordagem histórica externalista, como pretendiam, já que não trataram das relações entre a produção de conhecimento em física nuclear e o contexto social, cultural, econômico ou político em que se deu.

Também afirmaram inicialmente que pretendiam tratar da construção do conhecimento em física nuclear, incluindo o contexto científico, as bases experimentais, várias alternativas da época, justificação e difusão de teorias etc. - o que, de fato, não foi realizado no seminário. Provavelmente isso ocorreu porque os licenciandos apresentavam, de forma geral, discursos coerentes com as pesquisas em ensino de ciências relativas à abordagem histórica, demonstrando a intenção de colocar em prática o que diziam esses estudos, mas provavelmente, nãohaviam compreendido de fato como executar essa abordagem. É interessante notar que os livros didáticos inserem notas de fatos ou curtas biografias de cientistas, intitulados curiosidades, e o licenciando Daniel utilizou a palavra curiosidade diversas vezes em sua apresentação.

Consideramos ainda que os licenciandos reproduziram trechos de pesquisas em ensino de Ciências, e demonstraram intenção de apresentar e considerar determinados elementos presentes na pesquisa no episódio de ensino, ou ainda criticaram e demonstraram a intenção de romper com o ensino tradicional; por outro lado, o que consideraram o nível dos supostos alunos, tratando-se de Física Nuclear, pareceu impedi-los de darem o enfoque que gostariam.

Outro elemento que pareceu impedir que os licenciandos realizassem uma abordagem histórica que se aproxima daquela proposta pela pesquisa em ensino são os sentidos atribuídos por eles ao que seria a abordagem histórica. Talvez eles tenham interpretado os artigos de pesquisa com base em sua história de vida e de formação no Ensino Médio ou, mesmo, no Superior. Ou seja, talvez eles tenham considerado que a apresentação da evolução de fatos históricos relacionados à física nuclear, tal como apresentaram no seminário, seria de fato uma abordagem histórica tal qual aquela proposta pela pesquisa em ensino de Ciências.

Provavelmente, o pouco tempo de pesquisa e trabalho com a abordagem, durante a disciplina, não foi suficiente para que ocorressem maiores deslocamentos com relação à prática de aspectos da abordagem que os licenciandos consideraram relevantes. Ou ainda, sob determinadas condições de produção, as memórias discursivas do Ensino Básico e Superior dos licenciandos tiveram peso preponderante na produção de seus discursos.

Também encontramos outros fatores que parecem ter influenciado o imaginário desses licenciandos, relacionados às condições de produção do Ensino Médio brasileiro. Como o vestibular, apontado por Daniel em sua apresentação, a dificuldade de estudantes de Ensino Médio com a Física e a Matemática e outros aspectos relacionados ao que é o ensino considerado 'adequado' no ambiente escolar, conforme observamos no desabafo abaixo do licenciando Alan, durante uma discussão ocorrida após o seminário:

''Aconteceu um fato bem interessante, uma vez eu estava dando uma aula teste em um cursinho para dar aulas lá, era sobre partículas carregadas em um campo, aí eu falei, no final eu dei um exemplo histórico, esse método isso é utilizado em espectrômetro de massa, foi usado na segunda guerra, na fabricação de Urânio, no final o rapaz que estava avaliando falou: 'gostei muito da sua aula, mas o final eu não gostei, não tem espaço para comentar estas coisas na sala de aula do cursinho' e eu não passei por causa disso.''

Considerações finais

Procuramos, neste trabalho, evidenciar aspectos do imaginário de licenciandos em Física, relacionados ao trabalho com a abordagem histórica da questão nuclear no Ensino Médio, e compreender suas relações com as condições de produção em que se constituem, assim como seus possíveis deslocamentos. Para isso, acompanhamos dois licenciandos e analisamos suas falas, durante a disciplina Prática de Ensino de Física e Estágio Supervisionado, enquanto preparavam um seminário e um episódio de ensino com tema Questão Nuclear e abordagem História da Ciência.

Observamos que esta abordagem se fez presente no imaginário dos licenciandos como sendo possível de ser utilizada no Ensino Médio, mesmo antes de seu tratamento na disciplina, provavelmente por ser uma abordagem divulgada em livros didáticos, na mídia, em divulgação científica, ou mesmo no ensino formal, ainda que, muitas vezes, não seja apresentada da maneira como recomendam as publicações de pesquisa em ensino de ciências.

Pudemos identificar indícios de deslocamentos no imaginário dos licenciandos no que diz respeito às suas justificativas para utilização da abordagem no Ensino Médio. Inicialmente, ela era tratada como algo que aumentaria o interesse dos alunos, provavelmente pelo gosto dos licenciandos pela abordagem. Nos momentos de planejamento, ela passou a ser também algo que ajudaria no desenvolvimento da cidadania. Por fim, no momento do seminário, a justificativa foi fundamentada por reflexões presentes em publicações em ensino de ciências, como, por exemplo: sua utilização dependeria dos objetivos e das concepções de ensino do professor. Provavelmente, esses deslocamentos ocorreram, pelo estudo, pesquisa bibliográfica e discussões realizados pelos licenciandos durante a disciplina.

Com relação ao processo de desenvolvimento da ciência visto pela História, durante a disciplina houve indícios de que, no imaginário dos licenciandos, esse processo implicaria a existência de diferentes modelos, paradigmas, ou seja, foram apresentados indícios de que, em seus imaginários, a História da Ciência não se desenvolveria de forma acumulativa ou linear. Também notamos que, no imaginário desses licenciandos, o processo de desenvolvimento da ciência implicaria aspectos como: problemas, investigação, descobrimento, criatividade. Esses indícios ocorreram, sobretudo, ligados à condição de produção de que os licenciandos falassem de forma genérica da abordagem. Por outro lado, em alguns momentos, especialmente vinculados à condição de produção de falarem sobre o trabalho efetivo com a abordagem no Ensino Médio com tema física nuclear, foram apresentados indícios de que, no imaginário dos licenciandos, a História da Ciência estaria relacionada às principais descobertas e ainda não incluiria o tratamento de contextos sociais e políticos.

Notamos que a condição de produção de que o tema dos seminários e episódios de ensino fosse a questão nuclear para alunos do Ensino Médio, pareceu impossibilitar, no imaginário dos licenciandos, o tratamento de uma abordagem histórica internalista e a utilização de originais de cientistas. Os licenciandos argumentaram que os alunos do Ensino Médio não conheceriam a linguagem ou, mesmo, os conteúdos da física nuclear, e isso impediria algumas formas de abordagem.

Já no que diz respeito à utilização efetiva da História da Ciência no ensino de Física, pudemos identificar conflitos nos imaginários dos estudantes. Por exemplo, nos momentos iniciais da disciplina, houve indícios de que ensinar História da Ciência não seria também um meio de ensinar Física, e esse aspecto tornou-se conflituoso no decorrer da disciplina, existindo momentos em que apareceram indícios de que, em seus imaginários, ensinar História da Ciência seria um meio para que os estudantes aprendessem Física. Notamos que esses aspectos pareceram se relacionar com a condição de produção de tratarem genericamente da abordagem ou do trabalho efetivo no Ensino Médio. Ou seja, quando falavam genericamente da abordagem, possivelmente recorrendo às publicações em ensino que revisaram, a História da Ciência seria meio para ensinar Física; já durante a apresentação do episódio de ensino, a Física não foi abordada através da História da Ciência.

Notamos ainda que, no imaginário dos licenciandos, o significado das diferentes abordagens históricas (externalista e internalista), ou mesmo o significado da própria abordagem histórica, não convergiria com aquele delineado pela pesquisa em ensino. Esse aspecto ficou mais evidente no seminário, pois, durante a apresentação da abordagem, os licenciandos demonstraram a intenção de pôr em prática, em seu episódio de ensino, diversas recomendações retiradas de publicações sobre a abordagem, mas de fato não as realizaram na apresentação do episódio. Por exemplo, afirmaram que dariam um tratamento histórico externalista ao episódio de ensino, o que de fato não foi feito. Os licenciandos pareceram assimilar e reproduziram o que diziam os estudos pesquisados sobre História da Ciência, mas talvez não tenham compreendido como colocar em prática essas recomendações.

Também devemos considerar que, provavelmente, o imaginário desses licenciandos estivesse mais vinculado a uma História da Ciência relacionada a datas, fatos e cientistas importantes, devido às suas vivências pessoais como alunos do Ensino Médio, e até Superior, nos quais tiveram contato com livros didáticos, divulgação da mídia etc. Talvez por isso, o episódio de ensino apresentado tenha, predominantemente, consistido de informações de datas, experimentos e cientistas que os licenciandos consideraram fundamentais para o surgimento da física nuclear. Ou seja, ao serem levados a se posicionarem como professores, seu imaginário disponibilizou elementos de sua memória discursiva mais ligados à prática que conhecem da sala de aula a partir de suas próprias experiências pessoais na escola.

Parece que algumas das condições de produção do ensino brasileiro contribuíram com aspectos apontados nos parágrafos anteriores, dentre elas e como já dito anteriormente, a consideração feita pelos licenciandos, mesmo sem testá-la, de que os estudantes do Ensino Médio não teriam conhecimento necessário sobre física nuclear. Outra condição de produção influenciando nesse aspecto seria o vestibular, quem no imaginário dos licenciandos, apresentou-se como impedimento para que no Ensino Médio fossem tratados certos conteúdos e formas de abordagem.

Por fim, levantamos a seguinte questão: se o pouco tempo de realização da disciplina não foi suficiente para discussões, reflexões e realização de outras atividades com a abordagem histórica da questão nuclear, de forma a provocar maiores deslocamentos no imaginário desses licenciandos; e se a memória discursiva dos licenciandos, enquanto ainda eram estudantes do Ensino Básico, tem considerável influência em suas produções, poderíamos supor que esses licenciandos, depois de formados e atuando em sala de aula, sujeitos às condições de produção do ensino brasileiro (que são as mesmas em que se originou tal memória discursiva, como observamos no último depoimento de Alan), teriam oportunidade, tempo e condições de modificar o ensino por eles mesmos, criticado em seus seminários?

Talvez uma via frutífera para possíveis respostas seja a consideração de que a formação desses licenciandos deva possibilitar que eles compreendam, ainda que parcialmente, a constituição de seus próprios imaginários, ao mesmo tempo em que enxerguem, de forma crítica, as condições de produção do ensino brasileiro.

Artigo recebido em outubro de 2009 e aceito em dezembro de 2009.

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  • *
    Apoio FAPESP e CNPq.
  • 1
    Rua Ruberlei Boareto da Silva, nº 36 Cidade Universitária, Barão Geraldo Campinas, SP 13.083-705
  • 2
    A dissertação de Sorpreso (2008) pautou-se nessas gravações.
  • 3
    Os termos externalista e internalista serão retomados ao longo do artigo com os mesmos sentidos conferidos por Lílian Martins (2005).
  • 4
    Os nomes são fictícios.
  • 5
    Dentre elas ressaltamos: Almeida (2004, p.71-93; 95-114); Lopes (1996) e Mortimer, (1995, p. 56-74).
  • 6
    Os licenciandos também utilizaram bibliografia adquirida independentemente da disciplina e apresentada em um relatório entregue no final do curso: Kuhn (1977); Pessoa Jr. (1996) e Gibert (1982).
  • 7
    Grifos das autoras.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2009
    • Recebido
      Out 2009
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