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A importância da reflexão compartilhada no processo de evolução conceitual de professores de ciências sobre seu papel na mediação do conhecimento no contexto escolar

The importance of shared reflection on the process of conceptual evolution of science teachers about their role in the mediation of knowledge in the school context

Resumos

O trabalho enfoca um processo de reflexão compartilhada entre pesquisadores e professores de ciências. Investiga como, em tal processo, ocorre uma evolução conceitual sobre o papel do professor de ciências na mediação do conhecimento científico no contexto escolar. Para tal, foram observadas, registradas e transcritas as discussões entre os sujeitos, anotadas em caderno de campo e gravadas em áudio. Os dados são construídos e interpretados segundo procedimentos teórico-metodológicos pautados em uma perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, adotando-se a análise microgenética para investigar o processo de reflexão compartilhada. Os resultados revelam aspectos que caracterizam certa evolução conceitual dos professores participantes, especialmente, no que se refere ao seu papel para despertar o interesse do aluno para a aprendizagem dos conteúdos e para construção de significado dos conteúdos nos alunos.

Ensino de ciências; Formação de professores; Interação social; Ensino-aprendizagem


This study focuses on a process of shared reflection between researchers and science teachers. We investigated how in this process, conceptual change about the role of the science teacher in the mediation of scientific knowledge in school context occurred. For this, the discussions between subjects were observed, audio recorded and transcribed. The data were interpreted according to a theory and methodology based on the historical-cultural development of human beings, adopting the microgenetic analysis to investigate the process of this shared reflection. The results show that certain aspects characterize the conceptual development of teachers, especially as regards their role in arousing the interest of the students in learning the content and in the construction of meaningful content for students.

Science Teaching; Teacher training; Social interaction; Teaching-learning


A importância da reflexão compartilhada no processo de evolução conceitual de professores de ciências sobre seu papel na mediação do conhecimento no contexto escolar* * Apoio financeiro: FUNDECT-MS.

The importance of shared reflection on the process of conceptual evolution of science teachers about their role in the mediation of knowledge in the school context

Lenice Heloísa de Arruda SilvaI; Fernando Cesar FerreiraII

IFaculdade de Ciências Biológicas e Ambientais, Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Rodovia Dourados/Itahum, km 12, Unidade II, Caixa Postal 533, Dourados, MS, CEP 79804-970, Brasil. <leniceheloisa@gmail.com>

IIFaculdade de Ciências Exatas e Tecnologia, Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, MS, Brasil

RESUMO

O trabalho enfoca um processo de reflexão compartilhada entre pesquisadores e professores de ciências. Investiga como, em tal processo, ocorre uma evolução conceitual sobre o papel do professor de ciências na mediação do conhecimento científico no contexto escolar. Para tal, foram observadas, registradas e transcritas as discussões entre os sujeitos, anotadas em caderno de campo e gravadas em áudio. Os dados são construídos e interpretados segundo procedimentos teórico-metodológicos pautados em uma perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, adotando-se a análise microgenética para investigar o processo de reflexão compartilhada. Os resultados revelam aspectos que caracterizam certa evolução conceitual dos professores participantes, especialmente, no que se refere ao seu papel para despertar o interesse do aluno para a aprendizagem dos conteúdos e para construção de significado dos conteúdos nos alunos.

Palavras-chave: Ensino de ciências. Formação de professores. Interação social. Ensino-aprendizagem.

ABSTRACT

This study focuses on a process of shared reflection between researchers and science teachers. We investigated how in this process, conceptual change about the role of the science teacher in the mediation of scientific knowledge in school context occurred. For this, the discussions between subjects were observed, audio recorded and transcribed. The data were interpreted according to a theory and methodology based on the historical-cultural development of human beings, adopting the microgenetic analysis to investigate the process of this shared reflection. The results show that certain aspects characterize the conceptual development of teachers, especially as regards their role in arousing the interest of the students in learning the content and in the construction of meaningful content for students.

Keywords: Science Teaching. Teacher training. Social interaction. Teaching-learning.

Introdução

A chamada globalização da economia, acompanhada pelas ondas de inovações tecnológicas, da automação dos processos industriais, exigem do professor e do seu processo de ensino muito mais que o domínio dos saberes básicos. Na escola, esse processo deve possibilitar a inserção do aluno no mundo, não para repeti-lo passivamente, mas para que possa intervir de forma crítica, orientando-se por princípios éticos e de cidadania (KUENZER, 2003)1 1 Palestra 'Ensino por competência' proferida na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), em agosto de 2003. .

Nesse contexto conflitivo e inédito pelas características que apresenta, é fundamental pensar na formação continuada dos docentes de todos os níveis e áreas de ensino. Isso porque um processo de ensino que se orienta: i) pelo modelo da 'transmissão-recepção', no qual cabe ao professor transmitir os conteúdos previamente elaborados aos alunos, os quais assumem um papel passivo de meros receptores; ii) por uma perspectiva positivista de ciência, que privilegia o conhecimento dito científico como único e verdadeiro e que parece deixar de resolver problemas cotidianos e de ampliar os horizontes cognitivos (SANTOS, 2001); não atende à complexa e dinâmica realidade escolar, seja na perspectiva dos que detêm o poder político-econômico ou dos que são submetidos a ele. Numa visão reprodutivista de ensino, não se privilegia o desenvolvimento de atividades que favoreçam aos alunos elaborarem outros/novos conhecimentos, pois são considerados tabula rasa, que reproduzem integralmente aqueles conteúdos transmitidos pelo professor.

Todo o conjunto de situações que buscam preparar o professor para o ensino de Ciências, como a didática, o estágio supervisionado e, em especial, as ações de formação continuada, tem mostrado limitações e desafios para superar o modelo de ensino mencionado. De uma maneira geral, ainda não foram criadas condições para mudanças significativas na concepção dos professores sobre o que é o fazer docente em ciências nesse novo contexto.

As políticas de quem executa as ações de formação continuada de professores ainda necessitam de discussões no que se refere às metodologias, aos conteúdos veiculados, aos vínculos dessas ações com o desenvolvimento profissional dos docentes, com o projeto da escola, com uma perspectiva social mais abrangente. Nos cursos/palestras oferecidos na continuidade da formação docente, como instrumentalizar o docente para que ele construa uma postura permanentemente crítica e investigativa diante da área que atua, da própria sociedade, da sua função social e da sua conduta em sala de aula? Tais questões nem sempre são cogitadas e, muitas vezes, apesar de o propósito de muitos programas formativos ser o de contribuir para a prática docente nas escolas, muitos deles não surtem efeitos na melhoria do ensino de ciências. A razão disso se prende ao fato de que muitos desses programas, geralmente, estão pautados em uma concepção epistemológica da racionalidade técnica, derivada do paradigma positivista que tem orientado o modelo de formação e socialização profissional na maioria das universidades. Com base nessa concepção, segundo Schön (1983), os currículos formativos tendem a separar o mundo acadêmico do mundo da prática e, assim, manter o monopólio da pesquisa. Tais currículos, normativos e segmentados, estabelecem como regra proporcionar, aos estudantes: primeiro, sólidos conhecimento dos princípios científicos relevantes, isto é, conhecimentos relativos às ciências básicas pertinentes à sua área de especialização; em seguida, trabalham conhecimentos referentes às ciências aplicadas ou às técnicas, para, ao final, nos estágios, empregarem tais conhecimentos na prática profissional. Em relação aos cursos de formação docente em Ciências (Biologia, Física, Química) e outras áreas, essa separação se concretiza na dicotomia teoria-prática e se manifesta no distanciamento entre conhecimentos científicos e conhecimentos profissionais docentes e entre conhecimento acadêmico e realidade escolar. Tal problemática gera dificuldades para os profissionais docentes saberem elaborar os conhecimentos adquiridos nos cursos de licenciatura ou programas de formação continuada, para o ensino nas escolas, pois, na concepção epistemológica da racionalidade técnica, não se considera a complexidade da prática pedagógica, bem como o processo de elaboração de conhecimentos no âmbito escolar. Nesses termos, tal perspectiva compromete a construção de um conhecimento que é peculiar do professor, que Shulman (1986) denomina conhecimento pedagógico do conteúdo. Segundo esse autor, esse conhecimento é que diferencia o professor dos especialistas das diversas áreas do saber, pois o profissional docente precisa (re)elaborar o conhecimento científico/acadêmico, tornando-o acessível para ser apropriado e (re)elaborado pelos alunos, de acordo com os seus níveis de escolaridade. Assim, tal conhecimento vai além do conhecimento da disciplina em si, situando-se na dimensão da disciplina a ensinar, já que, nele, estão incluídos: a maioria dos tópicos regularmente ensinados na disciplina, as formas mais úteis de representação das ideias, as analogias, ilustrações, exemplos, explicações e demonstrações. Isso envolve conhecimentos pedagógicos ou de teorias educacionais, conhecimento dos alunos, assim como a história pessoal e a experiência profissional do professor. Além disso, o conhecimento pedagógico do conteúdo inclui uma compreensão do que faz a aprendizagem fácil ou difícil. Isso implica que o professor conheça as pré-concepções que os alunos, de diferentes idades e experiências, trazem consigo sobre determinados conceitos frequentemente ensinados. Considerando que tais pré-concepções são, geralmente, equivocadas, o professor precisa conhecer um maior número de estratégias apropriadas para que seu ensino propicie a reorganização e a compreensão dos alunos sobre os conceitos científicos, "porque esses alunos certamente não são como lousas de espaço em branco" (SHULMAN, 1986, p. 10).

Nesse sentido, a problemática acima apontada implica o que diz Maldaner (2000, p. 45), que

[...] o professor não saberá mediar adequadamente a significação dos conceitos, com prejuízos sérios para a aprendizagem de seus alunos. A compreensão de seu papel está no nível da formação 'ambiental', dentro do 'senso comum' da profissão docente e da tarefa de ensinar e educar.

Em outras palavras, o professor acaba assumindo o que Carvalho e Gil-Pérez (1993) chamam de uma visão simplista de ensino, a de que, para ensinar, basta conhecer o conteúdo e utilizar atividades práticas e/ou técnicas pedagógicas para transmitir o conteúdo aos alunos, aos quais cabe reproduzi-lo. Segundo tais autores, a influência desta formação incidental é muito forte porque responde a experiências reiteradas e se adquire de forma implícita, não reflexiva, como algo natural, escapando à crítica e tornando-se um verdadeiro obstáculo para práticas pedagógicas inovadoras. Por isso, segundo Maldaner (1999), as concepções e vivências/experiências sobre a docência de professores e futuros professores têm sua importância, uma vez que orientam e/ou constituem posturas profissionais docentes, e, se forem problematizadas à luz de avanços teóricos, poderão assumir importante papel na formação tanto inicial quanto continuada de professores. É por elas que os avanços teóricos adquirem significados e concretude, permitindo novos níveis de pensamento pedagógico. No entanto, segundo o autor, "nos cursos de formação profissional específicos de professor isso não está acontecendo em nível compatível e, assim, o processo de formação ambiental continua intacto e se reproduz em círculo vicioso" (MALDANER, 1999, p. 289).

Desse modo, parece-nos claro que o docente é muito pouco preparado no sentido de pensar sobre sua experiência cotidiana, e, na falta de referenciais teóricos mais ricos, tende para os estereótipos. Isto é agravado pelo fato de que, em muitos programas de formação continuada, sequer os professores são ouvidos sobre os tópicos que eles necessitam na sua atuação profissional.

Nesse contexto, tem-se justificado a proposição de ações e programas de formação continuada que se voltam para o desenvolvimento de uma cultura profissional, na qual os professores são concebidos como agentes potenciais de mudanças individual e coletiva, e saibam o que fazer, como fazer e o porquê de fazê-lo de modo distinto, além de terem consciência de que as situações de ensino não são generalizáveis, e que a função docente não enfrenta meros problemas instrumentais, mas, sim, situações problemáticas contextualizadas (IMBERNÓN, 1994).

A partir disso, surgem propostas de parcerias colaborativas entre professores e pesquisadores ou formadores de professores de Ciências. Nessas parcerias, estão presentes conceitos como: partilha entre pares, autonomia profissional e prática reflexiva de ensino; e, assim, todos esses sujeitos estão presentes em todas as fases do processo formativo e investigativo, com o objetivo de intervirem sobre as situações de ensino/aprendizagem consideradas problemáticas ou insatisfatórias, merecedoras de estudos e de investigação, para, juntos, buscarem soluções e mudanças.

Nessa perspectiva, é privilegiada a reflexão das práticas pedagógicas dos professores envolvidos, considerando o contexto onde elas acontecem, e tendo a "pesquisa como princípio formador e como prática tornando-se constitutiva da própria atividade do professor, por ser a forma mais coerente de construção/reconstrução do conhecimento e da cultura" (MALDANER; SCHNETZLER, 1998, p. 209).

Com base nessas ideias, justificamos o presente trabalho, que tem como objetivo investigar como, em um processo de reflexão compartilhada sobre a prática pedagógica em Ciências, ocorre a evolução conceitual de professores de ciências sobre o seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar.

Metodologia

O desenvolvimento deste trabalho implicou a investigação do processo de reflexão compartilhada entre pesquisadores/professores universitários e três professoras que ministram a disciplina de Ciências para o segundo ciclo do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano), em uma escola pública de um município do Estado de Mato Grosso do Sul. A reflexão compartilhada visava a evolução conceitual das professoras sobre o seu fazer docente, especialmente, sobre o seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar, tomando como referência suas concepções e práticas pedagógicas. Esse processo foi desenvolvido nas dependências de uma escola pública, onde as professoras trabalhavam, em 17 encontros, a intervalos quinzenais e/ou mensais, de duas horas cada um, no período de setembro de 2007 a dezembro de 2008.

As professoras participantes, denominadas aqui com nomes fictícios de Diana, Ceres e Atenas, são licenciadas em Ciências Biológicas, com tempo de três, sete e vinte e dois anos de serviço no magistério. Diana e Atenas atuam em duas escolas públicas e Ceres atua em quatro escolas públicas. O número de alunos atendidos por essas professoras perfaz um total que varia entre duzentos e quarenta e quinhentos e quarenta alunos. Já os professores universitários dessa investigação são licenciados em Ciências Biológicas e Física, todos com doutorado em Educação e atuando no ensino universitário de graduação e na pós-graduação.

A escola, lócus da investigação, situa-se num bairro da periferia do município, considerado outrora bastante violento, por conta da criminalidade causada pelos grupos usuários ou não de entorpecentes. Mas, isso vem diminuindo com o decorrer do tempo. Atualmente, algumas obras foram realizadas e alguns serviços como creches e postos de saúde são oferecidos, mas a situação do bairro continua sendo bastante crítica. A escola atende, aproximadamente, seiscentos alunos do Ensino Fundamental do sexto ao nono ano e, também, da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período noturno, provenientes do próprio bairro e de regiões circunvizinhas a ele.

A opção metodológica para o desenvolvimento deste trabalho se pauta no pensamento de Vygotski (2000) que, considerando a crença no papel fundante da dinâmica interativa das relações sociais para o desenvolvimento do indivíduo humano, concebe o estudo do homem como um ser que se constitui, se apropria e elabora conhecimentos em processos sempre mediados pelo outro, pelas práticas sociais e pela/na linguagem, nas condições sociais reais de produção das interações. Como a característica desses processos é a transformação, Vygotski (2000) apresenta alguns princípios metodológicos para sua análise, sugerindo o estudo da história de sua constituição. Segundo ele, "numa pesquisa, abranger o processo de desenvolvimento de uma determinada coisa [...] significa, fundamentalmente, descobrir sua natureza, sua essência" (VYGOTSKI, 2000, p. 86). Nesse aspecto, ele defende um estudo de processos, e não de produtos ou objetos, "uma vez que é somente em movimento que um corpo mostra o que é" (VYGOTSKI, 2000, p. 86). Defende, também, que numa análise objetiva dos fenômenos, mais do que a enumeração de características externas de um processo, deve-se procurar revelar as relações dinâmico-causais reais. Ou seja, no estudo de um processo, privilegiar uma análise explicativa, e não, descritiva (VIGOTSKI, 2000, p. 86).

De acordo com Fontana (2003), ao sugerir esses princípios, Vygotski (2000) explicita os limites da observação na apreensão da dinâmica dos processos, e alerta que, para apreender o movimento, é necessário não só pesquisar dentro dele como também interferir nele. Nesse sentido, considera a intervenção experimental um caminho para tal. Essa intervenção

[...] entendida como uma atuação sobre as relações em curso no contexto em estudo, jogando com as condições sociais de produção, pode provocar, criar artificialmente um processo de desenvolvimento psicológico, fornecendo-nos indicadores da emergência e da apropriação de modos de ação e de elaboração nos sujeitos envolvidos na pesquisa. Esses indicadores aparecem nos percursos, recursos e estratégias compartilhados por nós com eles e entre eles, no decorrer das atividades em que nos encontramos envolvidos. (VYGOTSKY, 1984 apud FONTANA, 2003, p. 107)

Pesquisadores que trabalham dentro dos pressupostos de Vygotski (2000), tentando sistematizar seus princípios metodológicos, os definiram como análise microgenética, que implica a busca de

[...] um caminho para documentar empiricamente a presença (ou não) e o grau de transição do funcionamento inter-psicológico para o funcionamento intra-psicológico, durante a solução conjunta de situações problema entre adulto e criança, nos moldes que Vigotski (2000) denominava 'zona de desenvolvimento proximal'. (HICKMANN; WERTSCH, 1978 apud FONTANA, 1996, p. 32)

Nesse sentido, a análise microgenética prioriza a análise de processos, e pode ser caracterizada como uma forma de conhecer que é orientada para minúcias e ocorrências residuais, como indícios, pistas, signos de aspectos relevantes de um processo em curso; que elege episódios típicos e atípicos, os quais permitem interpretar o fenômeno de interesse; que é centrada na intersubjetividade e no funcionamento enunciativo-discursivo dos sujeitos; e que se guia por uma visão indicial e interpretativo-conjetural. Em síntese, uma "perspectiva de investigação da constituição de sujeito no âmbito dos processos intersubjetivos e das práticas sociais" (GÓES, 2000, p. 21).

Com base nessa abordagem da análise microgenética, procuramos evidenciar, nas discussões realizadas durante os encontros entre pesquisadores e as professoras de ciências, como, em um processo de reflexão compartilhada sobre a prática pedagógica em Ciências, ocorre a evolução conceitual de professores de ciências sobre o seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar. Para dar visibilidade a esse processo, buscamos pistas, indícios nos enunciados, falas e entonações dos sujeitos. Desse modo, para a análise do processo, registramos as interações verbais entre pesquisadores e professoras no contexto imediato de sua ocorrência, isto é, na escola onde a investigação foi realizada.

Com a permissão tanto dos pesquisadores quanto das professoras, foram observadas e registradas, em caderno de campo e em áudio, as discussões realizadas entre os mesmos. Os registros considerados para este trabalho foram retirados de dois encontros. Nas transcrições destes encontros e por meio da análise microgenética, foram recortados episódios que evidenciam aspectos das discussões em que há enunciações, falas e entonações que indicam concepções e elaborações sobre a docência, assim como questões colocadas para o desenvolvimento de elaborações sobre o fazer docente em ciências, que apontam para uma evolução conceitual sobre o papel do professor na mediação do conhecimento científico no contexto escolar. A partir disso, organizamos os episódios da seguinte maneira:

Episódio 1 – Concepções iniciais sobre o fazer docente em Ciências.

Episódio 2 – O processo de elaboração e evolução conceitual docente em ciências.

Resultados e discussão

Naquele contexto escolar, os encontros aconteciam na sala de professores, onde havia: um quadro-negro, mural para recado, uma mesa grande oval, circundada por dez cadeiras, um ar condicionado, um ventilador, uma geladeira, uma mesa pequena com trabalhos de alunos, um banco de cimento, janela com cortinas e um mimeógrafo. Ao final da sala, havia uma divisória formando dois espaços, onde se encontravam armários para os professores. Foi nesse cenário que ocorreram os episódios dos encontros analisados.

Episódio 1 - Concepções iniciais sobre o fazer docente em Ciências

A partir da análise dos registros das observações, das falas e enunciados de professores de ciências e pesquisadores, procuramos focalizar como, em um processo de reflexão compartilhada, ocorre a evolução conceitual de professores de ciências sobre o seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar. Essa análise indica alguns aspectos importantes para a compreensão dessa temática. Para explicitação desses aspectos, iniciamos apresentando, de forma sucinta, o que as professoras expuseram, no primeiro encontro, sobre os seus ensinos de ciências. Disseram que não percebiam problemas com os mesmos. Segundo elas, os alunos é que possuíam muitas dificuldades, porque muitos deles eram desinteressados ou tinham preguiça. Quando questionadas como resolviam tais dificuldades, responderam que utilizavam as aulas práticas como motivação para os alunos aprenderem os conceitos, buscando, de forma autônoma, os conhecimentos para compreenderem os conteúdos. Assim, observando que seus alunos se interessavam pela aula quando esta envolvia atividades práticas, as professoras falaram que usavam certa "chantagem". Desse modo, quando percebiam o desinteresse dos alunos nas aulas, diziam a eles que não teriam mais atividades práticas.

A análise desses dados evidencia alguns aspectos das concepções das professoras sobre o seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar. Seus dizeres indicam que há, por parte delas, uma compreensão de que a dificuldade de aprendizagem está no próprio aluno. Em outros termos, culpam o aluno por suas dificuldades, explicitando uma ideia de que o problema do aluno é comportamental, ou seja, de desinteresse e preguiça. Evidenciam, também, que, em suas concepções, as dificuldades dos alunos podem ser sanadas, a partir da utilização de atividades práticas, com intuito de despertar o interesse deles e para que aprendam os conteúdos de forma autônoma.

Assim, a compreensão das professoras sobre o seu papel indicia estar no nível da formação 'ambiental', isto é, dentro de uma visão simplista da profissão docente e da tarefa de ensinar e educar. Desse modo, parece haver um entendimento, por parte das professoras, de que as suas elaborações pedagógicas, ao nível do conteúdo específico, são dispensáveis no curso do processo de ensino-aprendizagem do aluno (ARAGÃO, 2000), já que cabe a este, de forma contraditória, um papel tanto autônomo quanto passivo nesse processo.

A partir dessas ideias, trazemos outros aspectos importantes que os episódios dos encontros entre pesquisadores e professores de ciências apresentam à compreensão de um processo de reflexão compartilhada para a evolução conceitual de professores de ciências sobre o seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar.

Episódio 2 – O processo de elaboração e evolução conceitual docente em Ciências

Nos encontros subsequentes, foram discutidos vários assuntos e levantadas questões tanto pelas professoras quanto pelos pesquisadores. Dentre os assuntos, estavam a indisciplina em sala de aula e a autonomia do professor. Esses assuntos surgiram após uma discussão sobre problemas encontrados no livro didático, referentes a erros conceituais e à sequenciação dos conteúdos, apontados pelas professoras. Tal fato gerou o seguinte questionamento por parte de uma pesquisadora: quem escolhe o livro didático?

Também, no decorrer dos encontros, as professoras aproveitaram a oportunidade para falar sobre suas dificuldades com os conteúdos de física para o nono ano. Pediram, então, ao pesquisador da área do ensino de física, que as auxiliasse com os conceitos relativos a peso, massa, densidade, óptica e som. Para atender a essa necessidade formativa, em um dos encontros, esse pesquisador desenvolveu os referidos conceitos com as professoras e apresentou algumas atividades práticas, que possibilitariam a elas trabalhar tais conceitos de forma que auxiliasse seus alunos na compreensão dos mesmos.

Em outro encontro, para desenvolver a reflexão sobre a prática pedagógica em ciências e, em especial, o fazer docente, foram colocadas, por um dos pesquisadores, três questões: Quem sou eu? O que eu faço? Qual a importância do meu fazer? Para subsidiar essa reflexão foi disponibilizado, para leitura de todos os participantes, o texto 'O Joãozinho da Maré'2 2 Parte do livro: CANIATO, R. Com ciência na educação. Campinas: Papirus, 1997. . Nesse texto, o autor apresenta a prática pedagógica de uma professora de ciências, orientada por uma concepção do processo de ensino-aprendizagem pautada no modelo da transmissão-recepção e por uma perspectiva positivista de ciência, que privilegia o conhecimento científico, presente no livro didático, como único e verdadeiro, implicando, no contexto escolar, a transmissão de uma elevada quantidade de conteúdos ditos científicos, em detrimento das vivências socioculturais dos sujeitos que frequentam a escola.

O processo reflexivo desencadeado, a partir das questões, da leitura do texto e das discussões realizadas nos encontros, é apresentado no episódio abaixo transcrito, no qual há uma interação verbal entre uma pesquisadora e duas professoras de ciências. Para melhor compreensão da análise que será feita a seguir, enumeramos os turnos de falas no episódio.

1. Pesquisadora: Nós tivemos várias discussões no ano passado de assuntos que ficaram um pouco dispersos, no sentido de não estarem sistematizados, pois foram surgindo das angústias que acontecem no dia a dia, as situações difíceis que lidamos na sala de aula. Esses assuntos foram desde indisciplina até dificuldades na reelaboração dos conteúdos de ciências. Então, uma pergunta que fica depois de um processo reflexivo, o que significou as nossas discussões nas reuniões anteriores para você Diana, para você Ceres?

2. Professora Ceres: Eu gostei bastante das discussões, tanto é que estamos dispostas a continuar com elas, apesar das dificuldades que estão aparecendo. Tudo aquilo que eu puder aprender com as experiências de outras pessoas para mim é valido. Estou no terceiro ano de docência, a Diana tem mais tempo. Então, eu posso aprender com a Diana, com vocês.

3. Pesquisadora: Das coisas que discutimos o que foi significativo para você? O que desencadeou em você?

4. Professora Ceres: No ano passado você passou aquele texto Joãozinho da Maré. Ele mexeu muito comigo, porque eu me vi no papel daquela professora. Muitas vezes o aluno vem com uma pergunta e para não fugir daquilo que tinha planejado, você diz: vamos estudar isso daqui duas semanas. A gente acaba, sem querer, cortando o processo que o aluno está interessado. Eu comecei a me policiar muito mais em relação a isso. Dou mais importância ao que o aluno fala, ao que ele pensa. Com isso os problemas de indisciplina têm diminuído muito. Acho que os alunos estão sendo cativados de alguma maneira para a aula. Eu estou sempre procurando levar alguma coisa de diferente, de material que seja acessível. Eu acho que foram muito válidas as discussões que nós tivemos com relação à postura de professor... você pode contribuir de alguma maneira para que as coisas melhorem, que as condições melhorem, que as propostas sejam mais eficientes.

5. Professora Diana: A Ceres falou que eu tenho mais tempo, mas eu me sinto engatinhando ainda na docência. Agora em maio vai para oito anos de trabalho e a cada dia vou aprendendo cada vez mais. No começo a gente tem certo receio quando vem o pessoal da universidade conversar, tem aquela insegurança, porque é avaliado, vai ser avaliado e a gente tem medo desse processo. Mas, vocês vieram com um projeto que vem ao encontro das angústias do professor, do que ele passa em sala de aula, a questão da indisciplina do aluno, o seu desinteresse pela matéria. Então, a gente começa fazer uma análise do nosso próprio trabalho. Por que o aluno não está interessado? Alguma coisa está acontecendo com as minhas aulas. Quando a Ceres falou da questão do texto é porque a gente fica muito preocupada, porque tem que cumprir uma ementa e essa ementa tem um calendário, tem o bimestre para encerrar tal dia. Então, a gente fica muito bitolada nessa questão e esquece, muitas vezes, também, de escutar o aluno, tirar suas duvidas. Então, quando eu estou trabalhando um conteúdo e o aluno pergunta e, muitas vezes, é um assunto que nem diz respeito a aula, mas que para ele é uma dúvida, eu já tento esclarecer, responder. Nesse sentido, eu já também me policiei bastante, já tenho melhorado um pouco.

6. Professora Ceres: E o que a gente discutiu bastante é: até onde vai a autonomia do professor? É uma situação muito complicada, porque tanto no município quanto no estado querendo ou não, você é cobrado pelos resultados que apresenta. Tem gente que vai chegar no final do ano e vai te perguntar: até que capitulo você foi deste livro? Por que não avançou? Então, até que ponto você tem autonomia? Tudo isso são questões muito complicadas de administrar. Você fica meio que amarrado a certas coisas, que não tem como fugir. Você tem uma ementa para cumprir, mesmo que você ache que aquele conteúdo talvez fosse mais interessante em outro momento.

7. Pesquisadora: Essa questão da autonomia do professor é realmente uma questão extremamente complicada. Eu me lembro do relato de uma professora que estava fazendo mestrado na área de educação em ciências e ela veio com ideias de mudança: eu vou fazer diferente, vou levar em consideração o que o meu aluno pensa, nem que as minhas aulas demorem mais. Eu vou fazer com que ele realmente construa um conhecimento. Aí ela começou todo esse trabalho. Mas, o que aconteceu? Os alunos começaram a comparar o conteúdo que estavam tendo com os dos colegas. Então, ela começa a ter angustias, pois os seus alunos comentam: nossos colegas dizem: a gente avisou, vocês não viram tal conteúdo, vocês não vão passar no vestibular! Então, como é que a gente faz?

8. Professora Diana: Eu acredito que nós não podemos: é uma coisa ou outra, a gente tem que fazer uma dosagem, porque querendo ou não nós temos um vestibular aí pela frente. Na escola esses dias nós fizemos leituras de alguns textos e ficou essa questão de discussão, principalmente, em relação aos terceiros anos: Por que só trabalhar a questão do vestibular? Porque a nossa sociedade cobra isso daí, porque os alunos querendo ou não, vão prestar vestibular. Então, trabalhar não só conceitos relacionados a conteúdos em si, mas trabalhar outras questões em termos social e econômico e assim por diante. Então, eu acredito que seria dosar isso, você não adotar uma postura da professora que você contou a história, porque os alunos estão preocupados com a questão do vestibular.

9. Professora Ceres: É muito angustiante assim porque você tem uma sala com trinta crianças. Você como profissional percebe nitidamente aqueles alunos que estão te acompanhando e aqueles alunos que ainda precisariam de mais algum tempo naquele conteúdo. O que você faz, com trinta crianças dentro de uma sala? Como é que você vai voltar o conteúdo? Se você voltar o conteúdo aqueles que já aprenderam não vão te dar a mínima e ainda vão te atrapalhar. Se você avança no conteúdo os outros te acompanham e aqueles que não estão te acompanhando?!

10. Professora Diana: É aí também é complicada essa situação.

11. Professora Ceres: Como que você resolve essa situação: às vezes você passa alguns exercícios, tem gente que em 10 minutos terminou tudo e têm outros que precisam de 50 minutos pra fazer os exercícios?

12. Pesquisadora: Então, você questiona qual é o papel da escola, qual é o papel do professor? Como é que você como professor se vê na sua própria constituição docente? São questões que nós como professores amadurecemos para elevar aquele aluno que está num nível mais baixo para um nível mais elevado e aquele aluno que está num nível mais elevado permaneça se elevando e não retroceda numa sala de aula tão heterogênea.

13. Professora Diana: Esses encontros são bons também no sentido da gente refletir um pouco essa questão da nossa prática pedagógica e fazer uma avaliação sobre ela.

14. Professora Ceres: No ano passado a escola resolveu fazer uma turma só com alunos repetentes. Não queriam misturar os alunos porque tinham idades diferentes. Você entrava ali dentro e pedia para MORRER, para se esconder. Eles já eram tachados, tinha um rótulo escrito na porta "somos repetentes"! Para conseguir cativar aqueles alunos, para que eles tivessem interesse por alguma coisa, sabe como que eu consegui? Eu consegui um pouquinho falando sobre doença sexualmente transmissível. Foi o único assunto que a gente arranjou para que conseguisse despertar o interesse deles.

15. Professora Diana: Puxamos uma palestra aí, trabalhei com o oitavo, a Professora Ceres aproveitou e trabalhou em cima do que eles queriam e deixamos de dar conteúdo!

16. Professora Ceres: Deixou de dar conteúdo? Deixou! Eles vão ser cobrados talvez pelos conteúdos que eles não estudaram no ano passado? Mas, o que era mais importante naquela hora?

17. Pesquisadora: Mas, a grande questão é que naquele momento não era significativo para o aluno. Aí tem a questão: como o professor vai tornar os conteúdos significativos para o aluno?

18. Professora Diana: Por isso que você não pode ignorar, como eu falei da questão do aluno desinteressado. No meio de 30 alunos que estão participando se 1 ou 2 estiver ali com o caderno fechado, eu já me incomodo, porque incomoda realmente! Quando o aluno vem para a escola, ele tem que aprender alguma coisa, tem que tirar daquela aula ali. Podem até falar: deixa ele quieto! Ele está ali na dele não está incomodando, larga ele! Mas, e o nosso papel? A gente também para e pensa, você tem que atender as necessidades dos alunos.

19. Professora Ceres: Eu agora estou na origem da vida e do universo, inverti o conteúdo. O livro começava pelos seres vivos e o segundo conteúdo era fotossíntese. Como é que eu vou falar de fotossíntese se o meu aluno não tem noção de dia e noite? Não tem noção de componentes da atmosfera?! Eu preciso falar para ele que tem o oxigênio, que vai ser usado na fotossíntese. Aí eu puxei lá do final do livro para o começo.

20. Pesquisadora: É essa autonomia que o professor tem que ter mesmo. Você tem clareza do que é importante, como é que o aluno vai construir o conceito na cabeça dele.

21. Professora Ceres: Como é que eu vou falar de fotossíntese se o meu aluno não tem noção de oxigênio, gás carbônico?

22. Pesquisadora: Então, trabalhar no sentido do que é importante em um conteúdo. Por que eu quero que o meu aluno se aproprie do conceito de fotossíntese? Quais conceitos ele precisa para entender fotossíntese?... A partir dos conteúdos é que nós vamos discutir aspectos, como a Diana colocou, sociais, econômicos que permeiam esse conteúdo. Você vai mudando as suas reflexões. Que tipo de atividade vou propor para despertar o interesse do aluno? A manutenção do interesse do aluno, às vezes é difícil, porque leva tempo e o aprendizado às vezes pode ser demorado.

A análise desse episódio indicia certa evolução conceitual das professoras de ciências sobre o seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar, em relação às suas concepções iniciais apresentadas no primeiro encontro sobre seus ensinos. Inferiram que não viam problemas em suas práticas pedagógicas e que as dificuldades, quando apareciam, estavam relacionadas aos alunos, porque muitos destes eram desinteressados ou tinham preguiça.

Assim, a evolução conceitual pode ser evidenciada quando as professoras expõem suas dificuldades na elaboração de determinados conceitos científicos. Tal fato pode ser interpretado como uma preocupação delas com o seu ensino, no sentido de que este possa possibilitar, aos seus alunos, a aprendizagem desses conceitos, reconhecendo o seu papel, como aquele sujeito qualificado dentro do contexto escolar, para fazer a mediação entre a formação dos alunos na vida cotidiana – onde ele se apropria, de maneira assistemática e não deliberada, da linguagem, dos objetos, dos usos e dos costumes – e a sua formação nas esferas não cotidianas da vida social, possibilitando-lhes o acesso e a apropriação de conhecimentos científicos (BASSO, 1998).

Isso se confirma quando, no turno 4, a professora Ceres diz: "Muitas vezes o aluno vem com uma pergunta e você para não fugir daquilo que você tinha planejado, você diz: vamos estudar isso daí daqui duas semanas. A gente acaba, sem querer, cortando o processo que o aluno está interessado. Eu comecei a me policiar muito mais em relação a isso. Dou mais importância ao que o aluno fala, ao que ele pensa. Com isso os problemas de indisciplina têm diminuído muito. Acho que os alunos estão sendo cativados de alguma maneira para a aula. Eu estou sempre procurando levar alguma coisa de diferente, de material que seja acessível". Se confirma, também, quando no turno 5, a professora Diana diz: "a gente fica muito preocupada, porque tem que cumprir uma ementa e essa ementa tem um calendário... A gente fica muito bitolada nessa questão da ementa e esquece, muitas vezes, também, de escutar o aluno, tirar suas duvidas. Então, quando eu estou trabalhando um conteúdo e o aluno pergunta e, muitas vezes, é um assunto que nem diz respeito à aula, mas que para ele é uma dúvida, eu já tento esclarecer, responder. Nesse sentido eu já também me policiei bastante, já tenho melhorado um pouco".

Essas falas evidenciam, também, certa evolução das professoras em suas concepções de aluno – o qual anteriormente era tido como um sujeito tabula rasa e, muitas vezes, desinteressado e preguiçoso – para um sujeito que possui conhecimentos e dúvidas, que precisam ser considerados no desenvolvimento dos conteúdos, levando à busca de estratégias apropriadas para que seu ensino propiciasse a compreensão dos alunos sobre os conceitos científicos (SHULMAN, 1986), conforme sugere as falas nos turnos 4 e 5. Nesse sentido, percebe-se, também, uma preocupação com que os alunos construam um significado dos conteúdos ensinados. Esse fato é explicitado no turno 8, quando a professora Diana diz: "Não trabalhar só conceitos relacionados a conteúdos em si, mas trabalhar outras questões em termos social e econômico e assim por diante". Essa questão da construção do significado dos conteúdos aparece de forma expressiva, nos turnos 14, 15 e, especialmente, no turno 16, quando a professora Ceres diz: "Deixou de dar conteúdo? Deixou! Eles vão ser cobrados talvez pelos conteúdos que eles não estudaram no ano passado? Mas, o que era mais importante naquela hora?".

Tais depoimentos indiciam que, diante da necessidade de tornar os conteúdos significativos para os alunos, as professoras percebem que, para isso, a autonomia docente é um fator que tem um peso importante na decisão do que, como e por que ensinar determinados conteúdos. Isso é explicitado nos turnos 6, 8, 14, 15, 16, 19 e 21.

Essas análises nos remetem ao pensamento de Vigotski (2000), o qual considera que o desenvolvimento é a apropriação de formas cada vez mais elaboradas de atividade humana, e ressalta o papel da educação escolar como ambiente específico para promover o desenvolvimento do aluno. Ao professor, cabe provocar avanços na aprendizagem dos alunos que não ocorreriam espontaneamente. Isso porque, segundo o autor, o conhecimento, no contexto escolar, é construído através da interação dos sujeitos, isto é, entre professor e aluno, mediados pela linguagem. Nesta interação, o aluno vai se apropriar de/e elaborar conhecimentos sistematizados e constituir-se como sujeito. Nesses termos, o professor tem um papel central na observação de comportamentos, na busca de estratégias para resolução de problemas, na posição que o aluno assume diante de dúvidas, e observação em relação ao seu desenvolvimento cognitivo.

Conclusões

Os resultados observados neste trabalho nos levam a concluir que a reflexão compartilhada, mediada pelas leituras e teorias, as questões levantadas pelos participantes desta investigação e o atendimento das necessidades formativas apontadas pelas professoras, como indicado nas falas destas nos turnos 4, 5 e 6, possibilitou a essas professoras problematizarem suas práticas pedagógicas, levando-as a evoluírem suas concepções iniciais, orientadas por uma visão simplista da docência, assumindo seu papel na mediação do conhecimento científico no contexto escolar, conforme evidenciado nos turnos 18, quando a professora Diana diz: "Quando o aluno vem para a escola, ele tem que aprender alguma coisa, tem que tirar daquela aula ali. Podem até falar: deixa ele quieto! Ele está ali na dele não está incomodando, larga ele! Mas, e o nosso papel? A gente também para e pensa, você tem que atender as necessidades dos alunos". Evidenciado, também, no turno 19, na fala da professora Ceres: "Eu agora estou na origem da vida e do universo, inverti o conteúdo. O livro começava pelos seres vivos e o segundo conteúdo era fotossíntese. Como é que eu vou falar de fotossíntese se o meu aluno não tem noção de dia e noite? Não tem noção de componentes da atmosfera?! Eu preciso falar para ele que tem o oxigênio, que vai ser usado na fotossíntese. Aí eu puxei lá do final do livro para o começo".

Se, para Diana, a percepção do papel mediador do professor passa a ter maior peso em suas reflexões sobre as complexas tramas que a ligam a seus alunos, para Ceres, pensar a convergência entre questões metodológicas e científicas leva a novos questionamentos e reflexões sobre sua prática docente. Para este grupo de professoras, a estrada agora tem mais curvas e ficou mais longa, mas o objetivo talvez não seja mais apenas chegar ao destino, mas aproveitar a viagem. Em outros termos, o caminho pedagógico passa a ser mais difícil, pois o processo reflexivo torna a prática pedagógica mais complexa, porém mais significativa.

Artigo recebido em 05/06/12.

Aceito em 27/01/13.

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  • VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • *
    Apoio financeiro: FUNDECT-MS.
  • 1
    Palestra 'Ensino por competência' proferida na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), em agosto de 2003.
  • 2
    Parte do livro: CANIATO, R.
    Com ciência na educação. Campinas: Papirus, 1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Jun 2012
    • Aceito
      27 Jan 2013
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