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Mobilização de Experiências Narrativas como Processo de Reflexão e Transformação da Prática Pedagógica de um Professor de Matemática do Ensino Superior

Mobilizing Narrative Experiences as a Process of Reflection about and Change of the Pedagogical Practices of a Higher Education Mathematics Professor

Resumo:

Oriundo de uma tese que investigou experiências de formadores de professores de matemática em processos autoformativos, este artigo buscou mostrar possíveis compreensões das experiências de um formador de professores, na relação com processos autoformativos e reflexões transformadoras da prática. Adotou-se a pesquisa narrativa para a compreensão das experiências a partir de registros em vídeo, diário de campo e áudios de diálogos. Recorreu-se, ainda, à técnica da Análise Textual Discursiva (ATD), construindo-se as categorias de experiências como licenciando em Análise, experiências como formador e visão da formação continuada. Evidenciou-se que o formador passou a refletir sobre as experiências, ao revelar lacunas da formação e da prática desenvolvida, e passou a realizar novas estratégias avaliativas, com base em reflexões e interações vivenciadas. Concluiu-se que a participação do formador na pesquisa provocou mobilização de experiências e permitiu-lhe vivenciar movimentos de reflexão e de transformação da prática, caminho para se pensar novos modelos formativos.

Palavras-chave:
Ensino de matemática; Autoformação; Formação de professores; Ensino superior

Abstract:

This text originated from a doctoral dissertation on the experiences of Mathematics Teacher Educators in self-formative processes. The work aimed to disclose possible perceptions of a Teacher Educator regarding his relations with self-education processes and transformative thoughts during his practices. His classes were recorded on video and audio and then analyzed by means of Textual Discourse Analysis (ATD) to create what we called Experiential Groups: Experiences as a Learner of Analysis; Experiences as a Teacher Educator; and Opinion about Continuing Education. It was found that the Teacher Educator started to think about his experiences after gaps were identified in his own training and practices. Therefore, he proposed and carried out new assessment strategies based on thoughts and interaction. It was concluded that the Teacher Educator's participation in this research has engendered a mobilization of experiences and has allowed him to come across movements of thought, besides a change in practices - a path onto thinking about new formative practices.

Keywords:
Mathematics teaching; Self-education; Teacher educator; Higher education

Introdução: Apresentando o Contexto Investigativo

A docência no ensino superior é um dos focos de investigação de autores (BELO, 2012BELO, E. S. V. Professores formadores de professores de matemática. 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/3269. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, 2018BELO, E. S. V. Cartografias experienciais de formadores de professores de matemática: consciência de si e autoformação. 2018. 179 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.; GONÇALVES, 2006GONÇALVES, T. O. A constituição dos formadores de professores de matemática: a prática formadora. Belém: CEJUP, 2006.; MANFREDO, 2013MANFREDO, E. C. G. Saberes de professores formadores e a prática de formação para a docência em matemática nos anos iniciais de escolaridade. 2013. 234 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2013. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8504. Acesso em: 10 fev. 2021.
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) que evidenciam o papel importante do professor nesse nível da educação brasileira, particularmente, em termos da formação de professores que ensinam matemática. O estudo de Gonçalves (2006)GONÇALVES, T. O. A constituição dos formadores de professores de matemática: a prática formadora. Belém: CEJUP, 2006., um dos pioneiros nessa área, investigou a formação e o desenvolvimento profissional de professores formadores de matemática, no contexto de uma universidade pública, e pôs em destaque a experiência como formadora, sendo gestada nas práticas desenvolvidas pelos sujeitos participantes da pesquisa.

Por sua vez, Manfredo (2013)MANFREDO, E. C. G. Saberes de professores formadores e a prática de formação para a docência em matemática nos anos iniciais de escolaridade. 2013. 234 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2013. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8504. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, ainda sobre o tema formador de professores e o ensino de matemática, investigou as trajetórias e as histórias de vida de formadores, que se dedicavam a formar outros professores para ensinar matemática nos anos iniciais da educação básica. Sua ênfase incidiu na relação desses caminhos percorridos pelos docentes, com os saberes forjados nos processos e as repercussões em suas práticas formadoras. A preocupação com o professor que forma outro professor também foi objeto de Belo (2012BELO, E. S. V. Professores formadores de professores de matemática. 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/3269. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, 2018)BELO, E. S. V. Cartografias experienciais de formadores de professores de matemática: consciência de si e autoformação. 2018. 179 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018., em estudos distintos com formadores de professores de matemática. Em um deles (BELO, 2012BELO, E. S. V. Professores formadores de professores de matemática. 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/3269. Acesso em: 10 fev. 2021.
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), a autora destaca o papel da formação matemática, da formação pedagógica e da formação como pesquisador nas trajetórias e nas experiências dos participantes. Da mesma forma, em Belo (2018)BELO, E. S. V. Cartografias experienciais de formadores de professores de matemática: consciência de si e autoformação. 2018. 179 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018., o destaque recai sobre as reflexões mobilizadas durante o estudo como vetor para processos autoformativos e transformadores da prática dos formadores participantes. Em ambos os estudos, a perspectiva ateve-se à problemática da prática em cursos de licenciatura em matemática.

A pesquisa de Belo (2018)BELO, E. S. V. Cartografias experienciais de formadores de professores de matemática: consciência de si e autoformação. 2018. 179 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018. vai além da perspectiva assinalada, na medida em que reflete o intuito de contemplar a dimensão pessoal dos formadores de professores de matemática e, nesse aspecto, sua identidade profissional. A formação matemática é um importante fator na identidade profissional desses docentes, contudo, podem ser tratados outros aspectos também importantes e imbricados em sua constituição profissional e, para isso, faz-se necessário ouvi-los em contextos profissionais. Goodson (2000)GOODSON, I. F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, A. (org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 2000. p. 63-78. pontua a necessidade de pesquisas nas quais o falar de si torna-se central ao professor haja vista a explicitação do seu trabalho pela própria voz. Diante disso, indaga-se que relações da vida e da trajetória desses formadores, imbricadas ao aspecto matemático, são importantes e como se apresentam nas práticas pedagógicas formadoras, consubstanciando-as e sendo vetores de constantes transformações quando reveladas para si.

Tais indagações permitiram à referida pesquisa definir a seguinte questão principal: em que termos formadores de professores de matemática, ao refletirem sobre suas experiências, poderiam desenvolver processos de consciência de si e de autoformação docente? Diante dessa questão, a tese de Belo (2018)BELO, E. S. V. Cartografias experienciais de formadores de professores de matemática: consciência de si e autoformação. 2018. 179 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018. investigou experiências de formadores de professores de matemática em processos autoformativos. Como recorte desse estudo, optou-se em enfatizar a análise da experiência como processo de reflexão de si e da prática formadora em transformação de um dos docentes formadores participantes do estudo. Assim, foi proposto, para este artigo, o objetivo de mostrar possíveis compreensões das experiências de um formador de professores, na relação com processos autoformativos e reflexões transformadoras da prática.

No texto, primeiramente, são apresentadas discussões com apontamentos teóricos sobre identidade, experiência e autoformação do professor formador, com propósito de oferecer um panorama contextual da pesquisa; em seguida, os aspectos metodológicos que permitiram situar a abordagem, reunir e analisar os dados produzidos. Por fim, são evidenciadas análises concentradas na mobilização da experiência do formador como mecanismo de reflexão de si e da prática formadora.

Apontamentos sobre Identidade, Experiência e Autoformação

A identidade pessoal é fator importante ao processo formativo, definindo-o e interferindo nele. Nóvoa (1992)NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, A. (coord.). Os professores e sua formação. Porto: Porto Editora, 1992. p. 11-30. assinala que a formação seria uma (re) construção permanente dessa identidade pessoal; Goodson (2000)GOODSON, I. F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, A. (org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 2000. p. 63-78. pondera que os professores se embasam nas próprias vidas, em suas experiências, para questionar assuntos como currículo, disciplinas, gestão escolar etc. O autor enfatiza que assim fazem por considerá-los de maior relevância. Diante disso, assinala o papel relevante que tem o falar do professor acerca de seu trabalho e das questões que o envolvem. Entende-se, portanto, que tudo isso o constitui.

Por sua vez, Dubar (1998)DUBAR, C. Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos conceituais e metodológicos. Educação & Sociedade, Campinas, n. 62, p. 13-31, 1998. São Paulo. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73301998000100002.
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destaca que a identidade pessoal precisa ser considerada quando se analisa a constituição identitária de um grupo social, sendo denominadas "trajetórias subjetivas" o percurso pessoal dentro dele. É necessário frisar que conceder ênfase ao formador como indivíduo não supõe romper com o contexto social, no qual sua identidade profissional também é constituída. Compreende-se com Dubar (1998)DUBAR, C. Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos conceituais e metodológicos. Educação & Sociedade, Campinas, n. 62, p. 13-31, 1998. São Paulo. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73301998000100002.
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e Delory-Momberger (2008) que há um processo relacional entre o social e o pessoal, no qual todos estão inseridos e se constituem como indivíduos, constituindo sua subjetividade.

Almeida (2012)ALMEIDA, M. I. Formação do professor do ensino superior: desafios e políticas institucionais. São Paulo: Cortez, 2012. discute que o docente do ensino superior tem sido chamado a lidar com demandas cada vez mais diversas, como social, institucional e pessoal. A autora reflete ainda que:

Do ponto de vista pessoal, tem sido chamado a, de modo mais intenso, tomar decisões sobre seu próprio percurso formativo e profissional, romper paulatinamente com a cultura de isolamento profissional mediante a ampliação da convivência com colegas em projetos integrados, grupos de pesquisa e instâncias acadêmicas, em momentos de discussões coletivas nos quais se debatem e reivindicam as condições que permitam viabilizar a essência do próprio trabalho (ALMEIDA, 2012ALMEIDA, M. I. Formação do professor do ensino superior: desafios e políticas institucionais. São Paulo: Cortez, 2012., p. 78).

Esses desafios, novos paradigmas, em relação ao formador de professores de matemática levam ao pensamento de que é necessário investir em outros processos de autoformação, que possibilitem ao docente compreender as dimensões constituintes de sua profissão, sejam os conhecimentos ou técnicas, sejam suas "trajetórias subjetivas" e as relações entre essas perspectivas, tendo em vista sua prática pedagógica. Para Gonçalves (2006)GONÇALVES, T. O. A constituição dos formadores de professores de matemática: a prática formadora. Belém: CEJUP, 2006., caberia à universidade mobilizar os diversos segmentos para pensar um novo processo de formação, com uma mudança cultural que englobe reflexão, pesquisas, projetos, grupos de pesquisa, "[...] buscando aprimorar a formação tanto do professor do Ensino Fundamental e Médio - EFM - quanto do formador de professores". (GONÇALVES, 2006GONÇALVES, T. O. A constituição dos formadores de professores de matemática: a prática formadora. Belém: CEJUP, 2006., p. 22).

O autor, constantemente, relaciona esses fatores com o formador de professores de matemática e com a formação desse profissional. Ele faz uma discussão, refletindo a respeito da responsabilidade dos formadores de professores e sobre atitudes tomadas frente a esses diversos contextos e variáveis, por vezes ignorados por eles. Entretanto, o autor também pondera que o próprio processo de formação pelo qual os professores passam como professores universitários dificulta o rompimento com uma cultura da racionalidade técnica apontada, criticada por Schön (2000)SCHON, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.. Para Gonçalves (2006, p. 56)GONÇALVES, T. O. A constituição dos formadores de professores de matemática: a prática formadora. Belém: CEJUP, 2006., "[...] o desenvolvimento profissional do docente universitário, ou não, se dá de forma progressiva e constante, tendo como mola propulsora a pesquisa". Ao pesquisar sobre o ensino de matemática, o formador de professores poderá produzir outros saberes rompendo com isolamento profissional e integrando-se a processos de constituição profissional docente.

Josso (2004)JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004., ao tratar sobre a formação do ponto de vista do 'aprendente', indaga sobre o significado desse processo para o sujeito ao longo de sua vida, de forma particular na formação do adulto. Para a autora, "[...] formar-se é integrar numa prática o saber fazer e os conhecimentos, na pluralidade de registros (psicológico, psicossociológico, sociológico, político, cultural e econômico)" (JOSSO, 2004JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004., p. 39). Essa abordagem de formação 'biográfica ou experiencial', denotada pela autora, vem ao encontro da visão de formação adotada neste texto. Isso significa considerar que a formação docente, particularmente, a formação de formadores de professores de matemática, precisa considerar esses sujeitos como seres psicossomáticos, numa dinâmica reflexiva experiencial e de transformação, num movimento autoformativo constante.

Apesar de reconhecer como essencial a dimensão subjetiva, Borralho (2001, p. 56)BORRALHO, A. M. Didáctica de matemática e formação inicial: um estudo com três futuros professores. 2001. 653 f. Tese (Doutorado em Ciências da Educação) - Universidade de Évora, Évora, 2001. Disponível em: https://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/11314. Acesso em: 10 fev. 2021.
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avalia que essa "[...] componente pessoal da formação não deve conduzir à ideia de que esta se realiza de forma autônoma". A formação é composta de três forças: a heteroformação (ação dos outros), a ecoformação (ação do meio ambiente) e a autoformação. A autoformação é a apropriação por si do próprio poder de formação (PINEAU, 2012PINEAU, G. A autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a ecoformação. In: NÓVOA, A.; FINGER. M. (org.). O método (auto) biográfico e a formação. 2. ed. Natal: EDUFRN, 2012. p. 91-110., p. 91) ou, ainda, "[...] a autoformação é a formação na qual a pessoa participa de forma independente e é responsável pelo controle dos objetivos, dos processos, dos instrumentos e dos resultados da própria formação" (BORRALHO, 2001BORRALHO, A. M. Didáctica de matemática e formação inicial: um estudo com três futuros professores. 2001. 653 f. Tese (Doutorado em Ciências da Educação) - Universidade de Évora, Évora, 2001. Disponível em: https://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/11314. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, p. 56). Assim, compreende-se que a autoformação consiste na tomada de consciência do que ocorre em termos (de) formativos; é fazer escolhas e conduzir o processo de formação, buscando tornar-se melhor como pessoa e profissional.

Na acepção de autoformação apresentada, reitera-se a 'experiência' como fundamental ao processo autoformativo. A experiência evidenciada pelo arcabouço narrativo torna-se o centro teórico do estudo. Bruner (2008, p. 77)BRUNER, J. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. afirma que "[...] nós organizamos nossa experiência e nossa memória de acontecimentos humanos, principalmente, na forma de narrativas: história, desculpas, mitos, razões para fazer e para não fazer e, assim, em diante". Em outra passagem, ele completa, "[...] a narrativa é a forma típica de esquematizar a experiência". Connelly e Clanidinin (1995)CONNELLY, F. M; CLANDININ, D. J. Relatos de experiência e investigação narrativa. In: LARROSA, J. (org.). Déjame que te cuente: ensayos sobre narrativa y educación. Barcelona: Laertes, 1995. p. 11-59., e Clandinin e Connelly (2011)CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011. também comungam dessa ideia, ao afirmarem que a pesquisa narrativa tem como aporte fundamental a compreensão das experiências.

Clandinin e Connelly (2011)CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011. assumem que têm como principal influência o pensamento de John Dewey e compreendem, assim como ele, que a experiência é pessoal, mas é também social. "As pessoas são indivíduos e precisam ser entendidas como tal, mas eles não podem ser entendidos somente como indivíduos. Eles estão sempre em interação, sempre em um contexto social" (CLANDININ; CONNELLY, 2011CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011., p. 30).

Recorreu-se à base teórica dos referidos autores e a outros estudos para depreender o conceito de experiência e perceber que não se trata uma definição simples de fazer, objetivamente. Cavaco (2009)CAVACO, C. Experiência e formação experiencial: a especificidade dos adquiridos experienciais. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 13, n. 3, p. 220-227, 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/4949. Acesso em: 1 mar. 2017.
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, Gonçalves (2006)GONÇALVES, T. O. A constituição dos formadores de professores de matemática: a prática formadora. Belém: CEJUP, 2006., Larrosa (2015)LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. e Macedo (2015)MACEDO, R S. Pesquisar a experiência: compreender/mediar saberes experienciais. Curitiba: CRV, 2015. realizaram investigações acerca da definição de experiência. Nota-se nesses estudos não haver um sentido único do termo, embora as considerações dos teóricos se complementem. No tocante à imprecisão do conceito de experiência, e tendo isso como fundamental para entender a amplitude dos elementos que lhe são inerentes, Cavaco (2009)CAVACO, C. Experiência e formação experiencial: a especificidade dos adquiridos experienciais. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 13, n. 3, p. 220-227, 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/4949. Acesso em: 1 mar. 2017.
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alerta sobre a familiarização com o termo, tornando-o trivial, tendo em vista estar imerso em contextos naturais da natureza humana.

Observa-se a presença dessa conotação em documentos das políticas de formação, nas propostas de ensino e aprendizagem e em vários trabalhos acadêmicos, havendo a orientação para a valorização dos saberes da experiência. Para a autora, essa 'naturalização' do termo diminui a capacidade de análise crítica, quando no domínio dos estudos da experiência. Ela menciona que os investigadores enfrentam uma gama de dificuldades, ao tomar a experiência como objeto de estudo, por conta de suas peculiaridades (CAVACO, 2009CAVACO, C. Experiência e formação experiencial: a especificidade dos adquiridos experienciais. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 13, n. 3, p. 220-227, 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/4949. Acesso em: 1 mar. 2017.
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).

Nota-se, nos vários estudos sobre a conceituação da experiência, aspectos complementares acerca de sua ocorrência, como os tratados por John Dewey e Jorge Larrosa. Para Dewey (2010, p. 203, tradução nossa)DEWEY, J. Cómo pensamos: la relación entre pensamento reflexivo y processo educativo. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2010.:

O termo 'experiência' pode, portanto, ser interpretado com respeito à atitude empírica ou a atitude experimental da mente. Experiência não é algo rígido e acabado, mas algo vital, e, portanto, em desenvolvimento. Quando é dominado pelo passado, por hábito ou rotina, se opõe ao racional, ao reflexivo. Mas a experiência também inclui a reflexão que nos liberta da influência limitadora do sentido, do desejo e da tradição.

Requer destacar alguns aspectos acerca da experiência explicitados na citação de Dewey, que implicam diretamente nesta pesquisa: a experiência é vital, deve haver uma estreita relação entre experiência e reflexão; quando realizado um trabalho reflexivo sobre a experiência, esta tem poder libertador. Jorge Larrosa (2015)LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. situa a palavra 'experiência' nos seguintes termos:

[...] que a 'experiência' é, em espanhol, 'o que nos passa'. Em português se diria que a experiência é 'o que nos acontece'; em francês a experiência seria 'ce que nous arrive'; em italiano, 'quelo che nos sucede' ou 'quello che nos accade'; em inglês, 'that what is happening to us'; em alemão, 'was mir passiert'. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca (LARROSA, 2015LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015., p.18, grifos do autor).

De modo similar, observa-se também nas considerações de Larrosa a questão reflexiva e transformadora da experiência, pois, se nada acontece ao sujeito, logo, ele não pode modificar-se. Foi interessante encontrar em Larrosa (2015)LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. seis precauções com relação ao uso da palavra experiência, a quarta delas chama a atenção e diz respeito 'a fazer da experiência um conceito'. O autor discursa sobre a necessidade da busca de conceitos e sobre o fato de que a pergunta 'o que é ?' nem sempre é o mais importante.

Cavaco (2009)CAVACO, C. Experiência e formação experiencial: a especificidade dos adquiridos experienciais. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 13, n. 3, p. 220-227, 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/4949. Acesso em: 1 mar. 2017.
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também destaca o fato de a experiência fazer parte do próprio ser humano, embora reconheça que nem sempre o processo reflexivo esteja presente. Ela afirma que "[...] a experiência, à semelhança da vida, vive-se, sem que ocorra, quotidianamente, um processo de análise e reflexão consciente do vivido. Refletir e falar sobre a experiência exige certo distanciamento, o suficiente para que lhe atribua um sentido" (CAVACO, 2009CAVACO, C. Experiência e formação experiencial: a especificidade dos adquiridos experienciais. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 13, n. 3, p. 220-227, 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/educacao/article/view/4949. Acesso em: 1 mar. 2017.
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, p. 221).

É importante ainda para o debate do conceito de experiência, os estudos de Josso (2004)JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004., para quem a experiência é como uma vivência particular. Sobre essa ideia de experiência assinala que "[...] vivemos uma infinidade de transações, de vivências; estas vivências atingem o status de experiências a partir do momento que fazemos um certo trabalho reflexivo sobre o que passou e sobre o que foi observado, percebido e sentido" (JOSSO, 2004JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004., p.48). Observa-se congruência conceitual de 'experiência' em relação aos demais teóricos que em seus termos comungam da mesma perspectiva, já que para essa autora, o termo experiência já deixa subentendido que foi realizado um trabalho reflexivo.

Com os autores apresentados, nota-se que experiência é o próprio viver e que a reflexão sobre as próprias experiências leva o sujeito a um processo de aprendizagem. Dewey (1979, p. 13-14)DEWEY, J. Experiência e educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1979. assume que há "uma conexão orgânica entre educação e experiência pessoal", entretanto, isso não quer dizer que "toda educação genuína se consuma através da experiência", ou seja, nem toda experiência é educativa. Em termos de formação sob o ângulo de experiência e aprendizagem, Josso (2004, p. 48)JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004. constrói a definição de experiência formadora, compreendendo que a experiência é formadora quando "[...] simboliza atitudes, comportamentos, pensamentos, saber-fazer, sentimentos que caracterizam uma subjetividade e identidades".

Após analisar as considerações teóricas a respeito da experiência, toma-se como fundamental a relação entre experiência e autoformação docente, uma vez que a investigação versou sobre experiências de formadores de professores de matemática, especialmente, sobre a compreensão de processos autoformativos produzidos pelos formadores a partir da reflexão sobre suas experiências.

Assim como em Clandinin e Connelly (2011)CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011., na teoria da experiência de Dewey entende-se que o processo autoformativo docente se dá por meio das experiências. A formação é experiencial ou, então, não será formação (JOSSO, 2004JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.). Essa vertente experiencial profissional adotada por Josso (2004)JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004. tem a perspectiva de trabalhar a formação embasada nas experiências consideradas pelos aprendentes como 'significativas' para si; desse modo, as experiências das histórias de vida dos sujeitos são consideradas partes integrantes do processo formativo e colocam-no no centro dele, possibilitando-lhes perceber o sentido singular-plural da formação.

Processo Metodológico da Investigação

A investigação assenta-se numa perspectiva interpretativa de Bogdan e Biklen (1994)BOGDAN, R.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994., segundo a qual os autores exibem cinco características de abordagem de pesquisa qualitativa: a fonte de dados do pesquisador é o ambiente natural onde o fenômeno ocorre; a descrição dos dados é imprescindível para a pesquisa; o processo é mais importante do que o resultado; a indução é empregada ao invés de procurar confirmar hipóteses; e a busca de compreender os diferentes significados atribuídos por aqueles que participam da pesquisa.

Metodologicamente, adota-se a pesquisa narrativa. Para elucidar nuances entre experiência, fenômeno narrativo e método narrativo, recorre-se a Clandinin e Connelly (2011)CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011., a fim de compreender a pesquisa narrativa como método. Eles afirmam que:

Para nós, a narrativa é o melhor modo de representar e entender a experiência. Experiência é o que estudamos, e estudamos a experiência de forma narrativa porque o pensamento narrativo é uma forma-chave de experiência e um modo chave de escrever e pensar sobre ela. Cabe dizer que o método narrativo é uma parte ou aspecto do fenômeno narrativo. Assim, dizemos que o método narrativo é o fenômeno e também o método das ciências sociais. (CLANDININ; CONNELLY, 2011CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011., p. 48).

As colocações dos autores esclarecem que, metodologicamente, a pesquisa narrativa é fundamentada em estudar as experiências vividas pessoalmente e socialmente por meio de seus relatos ou narrativas. As histórias dos sujeitos estão entrelaçadas por sua subjetividade, que é construída na relação com o meio no qual se encontram e que só podem ser acessadas pelos próprios relatos, pelas próprias histórias, pelo narrar. Gonçalves (2011, p. 61)GONÇALVES, T. V. O. A pesquisa narrativa e a formação de professores: reflexos sobre uma prática formadora. In: CHAVES, S. N; BRITO, M. R. (org.). Formação e docência: perspectiva da pesquisa narrativa e autobiográfica. Belém: CEJUP, 2011. p. 53-76. afirma que "[...] a pesquisa narrativa é, pois, uma abordagem metodológica que proporciona reconstituir histórias vividas por seus personagens".

Connelly e Clandinin (1995)CONNELLY, F. M; CLANDININ, D. J. Relatos de experiência e investigação narrativa. In: LARROSA, J. (org.). Déjame que te cuente: ensayos sobre narrativa y educación. Barcelona: Laertes, 1995. p. 11-59. afirmam existir diversas fontes que são utilizadas por pesquisadores narrativos em suas investigações: notas de campo, notas de diários, entrevistas, contação de histórias, cartas, escritos autobiográficos, biográficos, entre outras.

Participaram da investigação de doutoramento, na qual este artigo tem origem, dois formadores de professores de matemática que atuavam em uma universidade pública federal brasileira e participaram como sujeitos da pesquisa de mestrado (BELO, 2012BELO, E. S. V. Professores formadores de professores de matemática. 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/3269. Acesso em: 10 fev. 2021.
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). A participação na pesquisa anterior, a familiaridade com a pesquisadora, assim como o fato de ambos ministrarem disciplinas do núcleo específico do curso de matemática (cálculo diferencial e integral, álgebra, entre outras) foram os critérios de escolha dos sujeitos. Neste artigo, optou-se em apresentar os dados concernentes às análises de um dos formadores, o qual recebeu o nome fictício de Getúlio.

Nos procedimentos metodológicos, foram adotadas quatro fases. Na primeira, houve a seleção dos professores que iriam participar do estudo. Após essa definição, eles foram informados sobre detalhes da pesquisa, tomando ciência dos objetivos e do planejamento inicial e sendo esclarecidos de que a investigação não seguiria um plano determinado e rígido.

A segunda fase consistiu em assistir às aulas de cada formador, filmando-as. O objetivo nessa fase foi compreender as experiências que emergiriam nessas aulas. Que perguntas elaborar para compreender as bases experienciais das práticas pedagógicas do formador de professores de matemática? Após muito refletir, constatou-se que utilizar um questionário não contemplaria a emergência desejada das questões da experiência dos sujeitos. Haveria necessidade de algo mais. Macedo (2015)MACEDO, R S. Pesquisar a experiência: compreender/mediar saberes experienciais. Curitiba: CRV, 2015. assinala que a pesquisa da/com experiência subjaz à interação e deve ser percebida em/na ação. Por isso, optou-se em assistir às aulas e não produzir dados por meio de um questionário.

Em hipótese, participar das aulas permitiria elaborar indagações sobre as experiências dos participantes formadores.

A terceira fase versou sobre a análise dos registros de campo, áudios, filmagens. Com isso, pôde-se confirmar ou ampliar a percepção a respeito das experiências das aulas observadas/gravadas: experiências ligadas aos grupos pessoais e sociais de seus convívios. Com tal análise, foram construídas questões norteadoras que serviram de base para a quarta fase.

Na quarta fase foram realizadas sessões de diálogos com os formadores, baseadas nas questões norteadoras construídas na fase anterior. Nessa fase, intitulada Diálogos Experienciais, o foco era questionar o formador sobre aspectos experienciais de sua prática, como: onde você aprendeu a lidar com essa situação? por que agiu assim? por que escolheu esse recurso para auxiliá-lo na prática? Esse momento também foi gravado em áudio. Essa quarta fase ocorreu de forma concomitante à segunda e à terceira. A ideia era que esse momento de diálogo fosse realizado tendo como suporte as sessões de vídeo das aulas gravadas, em que as experiências estivessem explicitadas. Com Getúlio ocorreram 3 diálogos experienciais.

Foi intencional provocar o formador quanto à percepção da influência de suas diversas experiências em sua prática pedagógica, de modo a desencadear possibilidades de consciência de si frente à própria prática, desejando que a experiência da pesquisa possibilitasse um processo reflexivo e autoformativo. Sabe-se do quanto complexo é alcançar esse objetivo, mesmo porque, ao adentrar a sala de cada formador, não havia certeza do que ocorreria: se emergiriam experiências, ou, ainda, até onde a percepção da observadora poderia compreendê-las. Na impossibilidade de total compreensão, "[...] temos que nos satisfazer com a compreensão de zonas de revelação" (MACEDO, 2015MACEDO, R S. Pesquisar a experiência: compreender/mediar saberes experienciais. Curitiba: CRV, 2015., p. 52).

Acreditava-se que, nos diálogos experienciais, surgiriam outros aspectos da vida do formador, memórias de suas vivências como aluno, da escolha da profissão docente, dos modelos de docência que tem para si, dos planos vislumbrados para seu futuro, ou seja, as narrativas produziriam movimentos entre vários tempos de vida dele. Essa é uma característica dos escritos narrativos, "[...] cada momento biográfico, apesar de possuir existência própria, está ligado ao passado e ao futuro, dos quais retira sua forma e sua significação particulares" (DELORY-MOMBERGER, 2008DELORY-MOMBERGER, C. Biografia e educação: figuras do indivíduo projeto. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008., p. 58). É o que Clandinin e Connelly (2011)CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011. denominam na pesquisa narrativa de espaço tridimensional, "[...] o que queremos dizer com isso é que contamos histórias lembradas de nós mesmos, sobre épocas antigas, assim como histórias atuais".

As aulas de Getúlio aconteceram pela manhã, durante o mês de julho de 2015, de forma intensiva, com uma carga horária total de 60 horas. A disciplina denominava-se Introdução à Análise Real.

A técnica da Análise Textual Discursiva (ATD) auxiliou na compreensão do corpus da pesquisa, composto pelos registros do diário de campo, das aulas filmadas, das transcrições das narrativas obtidas nas sessões de áudio nos diálogos. ATD corresponde a uma forma de análise de dados e de informações de natureza qualitativa, com a finalidade de produzir novas compreensões sobre os fenômenos e discursos (MORAES; GALIAZZI, 2007MORAES, R.; GALIAZZI M. C. Análise textual discursiva. Injuí: Unijuí, 2007.). Buscou-se compreender no corpus da pesquisa as experiências marcantes para as práticas pedagógicas dos formadores e, com isso, produzir novos sentidos e considerações a respeito de propostas formativas baseadas nas experiências vivenciadas pelos sujeitos. A ATD baseia-se em três fases a desconstrução dos textos do corpus: a unitarização, o estabelecimento de relações entre os elementos unitários; a categorização; o captar emergente em que a nova compreensão é comunicada e validada (MORAES; GALIAZZI, 2007MORAES, R.; GALIAZZI M. C. Análise textual discursiva. Injuí: Unijuí, 2007.). Portanto, a análise contou com o suporte da ATD e, de posse do corpus, iniciou-se o processo de unitarização, buscando construir as unidades de significado.

O processo de unitarização pautou-se, inicialmente, no destacar das transcrições dos diálogos, dos vídeos das aulas gravadas, das compreensões das experiências dos formadores e de suas repercussões na prática pedagógica. Após o processo de unitarização, iniciou-se a categorização das unidades de significado, buscando a aproximação entre elas para estabelecer as categorias. Após destacar as unidades de significado, prosseguiu-se buscando agrupá-las por suas semelhanças para construir as categorias. Um critério utilizado para o processo de categorização foi a força das unidades de sentido experiencial. Desse modo, foram construídas categorias denominadas núcleos experienciais. Um Núcleo Experiencial representa uma experiência que é o centro de outras experiências, uma experiência nuclear, ou seja, uma experiência que gera continuidade (ou continuum experiencial) a outras experiências.

Mobilização da Experiência como Mecanismo de Reflexão de si e da Prática Formadora

Neste item procede-se à análise do processo de mobilização da experiência como mecanismo de reflexão de si e da prática formadora de Getúlio. Como já informado, havia certa familiaridade com o formador em razão de sua participação na pesquisa de mestrado. Havia assim uma relação estabelecida entre pesquisador e participante, um fator importante para se realizar uma pesquisa narrativa, haja vista a importância da confiança entre pesquisador e sujeito, incluindo-se ainda a familiaridade com o ambiente.

No primeiro dia de aula, antes de adentrar a sala, Getúlio foi questionado se havia problema em filmar as aulas, sendo avisado de que seria apresentado posteriormente o DVD contendo as gravações1 1 O formador assinou o termo de consentimento e autorização para uso das imagens, gravação etc., necessários para a realização da pesquisa. . Frisou-se que, para a pesquisa, o interesse estava noutros aspectos que poderiam surgir em suas aulas. Getúlio pareceu não se importar com a questão da filmagem e, assim, todas as aulas puderam ser integralmente gravadas.

Getúlio é mestre em Matemática pelo Programa de Pós-graduação em Matemática e Estatística em uma universidade pública federal brasileira e, no momento da pesquisa, cursava o doutorado no mesmo programa2 2 O formador abandonou o curso do doutorado, posteriormente. . Getúlio possuía cerca de 10 anos de experiência na educação básica e no ensino superior contabilizava 9 anos de docência, à época da pesquisa. A turma da disciplina era composta por licenciandos do curso de matemática, os quais haviam ficado reprovados na disciplina, anteriormente, alguns até mais de uma vez. Getúlio havia sido o professor, ou seja, já conhecia aqueles alunos.

Naquele momento surgiam alguns questionamentos: como teria sido o semestre para Getúlio, tendo que conciliar doutorado e sala de aula em cidades diferentes?

Isso porque residia e trabalhava a cerca de 3 horas da cidade onde cursava o doutorado. Outra questão: como estava se desenvolvendo no doutorado? como era ministrar a disciplina Análise? Umas das disciplinas, se não a mais complicada do curso, na qual as reprovações são recorrentes. Para responder a essa gama de questões e compreender a mobilização da experiência como mecanismo de reflexão de si e da prática formadora do professor Getúlio, caberia conhecer suas experiências.

Getúlio, no primeiro diálogo experiencial, narrava algumas frustações relativas ao desinteresse dos discentes e citou um episódio ocorrido na disciplina de Cálculo III, ministrada anteriormente, no qual ficou decepcionado com os discentes, por terem copiado as respostas a um trabalho avaliativo de um manual do livro disponível na internet. Nesse momento, foi questionado sobre a possibilidade de pensar em outras formas de avaliar, que em vez de uma prova escrita objetiva, poderia propor uma prova discursiva, na qual o aluno tivesse que expor a resolução da questão. Naquele momento, tal consideração não pareceu ter muita importância, uma vez que não estava ligada à disciplina de Análise.

A disciplina de Análise transcorreu ao longo da semana e, ao final, Getúlio propôs a primeira avaliação. O formador disse que ao invés dos discentes realizarem uma prova escrita, eles deveriam escrever um texto dissertativo sobre o que estavam estudando na disciplina. Os alunos não entenderam muito a proposta, ficaram se entreolhando. A semana havia passado dentro da didática expositiva, teoremas, demonstração, exemplos, sem questionamentos por parte dos alunos; o habitual com que estavam acostumados.

Com essa atitude, evidencia-se que a sugestão de Getúlio tinha a ver com o episódio ocorrido no primeiro diálogo com a pesquisadora, com a questão das maneiras de avaliar, em que buscou pelo diálogo dar uma ideia para o modelo de avaliação que o formador poderia propor. E essa intervenção se estendeu ao momento da aula, no qual a pesquisadora complementa para a turma: "imaginem que vocês estão escrevendo uma carta a alguém contando os assuntos que vocês estão estudando, comentem sobre os principais teoremas, resultados e outras coisas. Pode ser, por exemplo, para uma tia que mora distante". Nesse momento, alguns alunos rebateram: "mas ninguém iria entender sobre o que falaríamos nessa carta". Então, Getúlio interferiu: "pronto, então imaginem que a carta que vocês escreverão é para mim. Esta servirá como primeira avaliação".

Nesse episódio da avaliação dissertativa, analisa-se que se inicia a mobilização da experiência como mecanismo de reflexão de si e da prática formadora. Na análise do corpus da pesquisa, confrontando registros, foi possível observar o sentido dessa experiência e o que o impulsionou verdadeiramente para se ariscar a um novo tipo de avaliação, que ele continuou a utilizar, posteriormente, em suas aulas. Para compreender toda amplitude desse episódio teremos de conhecer as categorias de análise oriundas do corpus de pesquisa com Getúlio.

Utilizando a ATD, chega-se às categorias analíticas da pesquisa denominada de núcleo experiencial (NE). Três núcleos experienciais emergiram do corpus para Getúlio: as experiências como licenciando em Análise (NE1); as experiências como formador (NE2) e a visão da Formação Continuada (NE3). Olhando para aspectos dos NE cartografados com os registros do formador, observa-se como o processo da pesquisa provocou a mobilização de experiências nele e o levou a investir em outras estratégias de ensino, configurando um processo reflexivo e de transformação da própria prática formadora.

Na pesquisa de Belo (2012)BELO, E. S. V. Professores formadores de professores de matemática. 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/3269. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, os formadores participantes declararam que suas práticas formativas tinham como base principal os conhecimentos de sua área específica, porém, na pesquisa de Belo (2018)BELO, E. S. V. Cartografias experienciais de formadores de professores de matemática: consciência de si e autoformação. 2018. 179 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018. destacou-se que as experiências vivenciadas em outros contextos, família, conivência com grupos dentro e fora da universidade, experiências profissionais anteriores à docência no ensino superior, entre outras, integram-se a eles e passam a constituir suas práticas no curso de licenciatura em matemática.

No NE1 de Getúlio, foi possível evidenciar o quanto sua experiência como licenciando foi importante pela sua maneira de estudar/compreender os conhecimentos da disciplina Análise e como passam a repercutir no seu estilo pedagógico. Charlot (2000, p. 60)CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000. afirma que para além da 'razão' deve-se levar em consideração quem é o 'sujeito do saber' "[...] atrás do sujeito de saber, a análise traz à tona as outras dimensões do sujeito". O autor pondera, ainda, que não existe um saber sem uma relação do sujeito com o saber, assim, o sujeito deve ser considerado de forma ampla com todas suas relações: não há saber senão para um sujeito, não há saber senão organizado de acordo com relações internas, não há saber senão produzido em uma 'confrontação interpessoal' (CHARLOT, 2000CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.). Ou seja, ao analisar-se um professor de Análise, suas práticas docentes, seu domínio de conteúdo, devemos levar em consideração quem é esse sujeito em sentido amplo.

Getúlio afirmou, ainda, durante o segundo diálogo experiencial, que não havia sentido dificuldade em Análise quando fora aluno. Em suas palavras, ele conta como foi sua experiência com a disciplina e com o professor:

Getúlio: Nas três provas que ele passou eu tirei três dez, e eu já tinha um pouco de experiência, porque, na verdade, a partir de dois anos no curso, eu já tinha o hábito de estudar, sentava na biblioteca e estudava mesmo, ele, o professor, sempre falava que o segredo da Análise é estudar, entender as definições, os resultados, fazer as listas de exercícios, e foi o que eu fiz [...] [Diálogo experiencial 2, grifo nosso].

Com o dizer de Getúlio, evoca-se Josso (2004, p. 38)JOSSO, M. f-C. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.: "[...] é por que nos identificamos com nossas experiências que nos fixamos nelas". De alguma forma, Getúlio havia estabelecido relações com o saber da Análise que a maioria dos alunos não estabelece e se fixou nelas. Ao relatar a explicação do porquê, afirmou que desenvolvia suas aulas de forma organizada, com as demonstrações feitas passo a passo, que ia escrevendo minuciosamente cada raciocínio. Foi percebido que seu estilo pedagógico tinha a ver com suas experiências com a disciplina de Análise. Ele dizia não conseguir gravar muitos conceitos somente lendo, que precisava escrever: "o habitual é eu escrever e eu acredito que isso possa ajudar os alunos a entenderem [pausa, aparentemente, pensando no que dissera], mas a experiência mostra que não... talvez ajude, talvez não... não sei" [diálogo experiencial 2, grifos nossos].

Pode-se notar que havia uma relação entre a sua maneira de estudar, quando licenciando, e sua forma de ensinar, baseando-se naquilo que dava certo para si. Entretanto, ao ser confrontado, ele reflete e pondera que esse modelo não está surtindo efeito nos licenciandos, aquela turma era um exemplo disso, com discentes repetentes. Conclui-se assim que, pelo fato de Getúlio não ter tido outras experiências para aprender-ensinar a disciplina Análise, ele segue na relação particular que estabeleceu com o saber.

Em sua prática pedagógica, o professor precisa estar atento ao processo educativo, independentemente de qualquer saber, de modo que tal processo seja uma experiência de qualidade para seus educandos. Precisa pensar que "[...] as formas educativas em todas as suas formas de organização e implementação estão indelevelmente acompanhadas nas suas configurações de formas de subjetivação, ou seja, experienciam sentido e políticas de sentido, [...]" (MACEDO, 2015MACEDO, R S. Pesquisar a experiência: compreender/mediar saberes experienciais. Curitiba: CRV, 2015., p. 35). Larrosa (2015, p. 32)LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. considera que "[...] duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência para cada qual é sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida".

Getúlio, desde a graduação, teve afinidade com Análise, cursou seu mestrado na mesma área e permanece no doutorado, entretanto, também demonstra que realizar as conexões entre os conteúdos, ter uma visão geral da matemática, não é fácil. Sobre a questão histórica da Análise, no segundo diálogo a respeito da trajetória histórica dela, ele responde, ao ser indagado, sobre em qual contexto histórico da Matemática a Análise teria surgido. Ele assim discorre:

Getúlio: Eu penso que a Análise é uma forma de você formalizar as ideias do cálculo. Então, na verdade, ela é uma justificativa das propriedades que você utiliza, que você faz nos cálculos, porque você faz os cálculos mas, você não se pergunta porque você faz daquele jeito, por exemplo quando fizemos na aula aquelas propriedade dos sinais, ela, a Análise, justifica as propriedades dos sinais [...] Então, eu vejo que a Análise vem para formalizar isso, é formalismo mesmo, são as justificações da própria teoria, então eu vejo a dificuldade de contextualizar isso, porque a contextualização deve ser dentro da própria matemática. [...] Deve ser para explicar essas coisas, eu não sei. [Dialogo experiencial 2].

Enquanto era licenciando, Getúlio desenvolveu a dimensão do conhecimento do conteúdo matemático, mas lhe faltaram outras dimensões. Sem essas dimensões, torna-se difícil construir outros sentidos na prática. Talvez, por isso, ele, como formador, tenha tido dificuldades em utilizar de suas experiências, inclusive como professor na educação básica, na realização de conexões entre a Análise e os fundamentos dos conteúdos ministrados nesse nível da educação. No sentido de Dewey, não houve continuidade e nem interação de suas experiências como licenciando, a não ser no sentido do saber matemático da Análise.

A experiência com a Análise, desde a licenciatura, foi focada apenas em uma dimensão do conhecimento, esqueceu-se de construir relações outras. Como diria Freire (2011, p. 80)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011., ensina-se "[...] quatro vezes quatro, dezesseis; Pará, capital Belém [...] sem perceber o que realmente significa quatro vezes quatro. O que verdadeiramente significa capital [...] Belém para o Pará e Pará para o Brasil". Isso enfatiza a importância de os formadores de professores de matemática proporcionarem, aos licenciandos, a visão ampla dos conceitos nas relações das áreas da matemática, principalmente, quando é comum que licenciados se tornem formadores de professores. Mas, o que fazer se a formação dos formadores de professores se consolida de maneira fragmentada?

Na categorização do NE2 - as experiências como formador -, nota-se que este núcleo possuía um forte vínculo com o NE1. O NE2 foi algo de difícil compreensão. O que se entendia, inicialmente, como uma ausência de experiência, provocou um momento tenso na pesquisa. Ao assistir às aulas não foi possível, de imediato, apreender nada além dos conteúdos de Análise que se repetiam de forma mecânica dia após dia. Demorou-se para ver, além desse lugar, um lugar de clausura de Getúlio, preso em suas práticas.

Saindo disso, pôde-se ver que isso representava uma experiência, algo que fazia parte de sua vida como formador. Passeggi (2011, p. 149)PASSEGGI, M. C. Experiência em formação. Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 147-156, 2011. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/8697. Acesso em: 10 fev. 2021.
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faz o questionamento "por que há experiências que nos enclausuram e outras que nos empurram para novas aventuras?". Após muitas leituras e recorrências ao corpus da pesquisa, foi possível reconhecer aquilo que Getúlio (não) vivenciou como formador de professores ao longo dos anos no curso de licenciatura em matemática e que repercutiam ali nos momentos de suas práticas pedagógicas. Aquilo que ali fazia era fruto de sua experiência.

Retomando a pesquisa de Belo (2012)BELO, E. S. V. Professores formadores de professores de matemática. 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/3269. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, da qual Getúlio foi sujeito, pôde-se compreender, nas experiências dele, como formador, suas queixas a respeito da necessidade em desenvolver 'outras formas' de ensinar, haja vista que o curso de mestrado do qual participou trouxe mais contribuições acerca do conhecimento matemático do que acerca da prática pedagógica. A formação no mestrado acaba por 'enclausurá-lo' ainda mais na sua relação com o saber matemático. Com isso, cabe pensar no que Dewey afirma a respeito do sentido (des) educativo das experiências. "É deseducativa toda experiência que produza o efeito de parar ou distorcer o crescimento para novas experiências posteriores" (DEWEY, 1979DEWEY, J. Experiência e educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1979., p. 14). O autor segue mencionando que as experiências podem produzir vários efeitos, positivos e negativos: dureza, insensibilidade, interesse, prazer, etc. Mas, se as experiências não proporcionarem ao sujeito novas/outras experiências, tornando-se desconectadas, elas não poderão contribuir para futuras experiências.

As considerações de Dewey permitiram ver que Getúlio teve experiências em suas práticas como formador, porém, suas experiências não contribuíram para o desenvolvimento pedagógico de suas práticas, portanto, "[...] o problema não é a falta de experiências, mas o caráter dessas experiências" (DEWEY, 1979DEWEY, J. Experiência e educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1979., p.16). E sem a possibilidade de vivenciar outras experiências, ele segue. Talvez, por isso, ele, ao visualizar uma nova forma de avaliar, lança-se à experiência, consciente de que aqueles alunos por repetidas vezes já haviam sido reprovados, e ele precisava tentar algo diferente.

Há, claramente, a necessidade, o anseio dele por experiências que o ajudassem a desenvolver sua prática pedagógica, também é clara sua percepção de que dificilmente essas experiências viriam da universidade. Recorre-se novamente a Freire (2011)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. para pensar as finalidades da educação e, de forma particular, a formação dos formadores de professores. Infelizmente, nesse sentido, os conceitos de educação bancária ainda são bem atuais: a sonoridade da palavra e não sua ação transformadora, educandos como recipientes a serem enchidos, professores como depositantes, memorização mecânica e a ausência da dialogicidade. Sem esquecer que muitos docentes praticam uma 'educação bancária', sem ao menos se dar conta disso, já que são fruto desse tipo de educação reprodutora e alienante.

As experiências de Getúlio como licenciando se propagam no núcleo experiencial como formador, servem de base: é a experiência enquanto discente em Análise que serve de parâmetro para suas práticas pedagógicas, como mencionado, daquilo que deu certo para ele, dentro de um certo prisma. Em Manfredo (2013)MANFREDO, E. C. G. Saberes de professores formadores e a prática de formação para a docência em matemática nos anos iniciais de escolaridade. 2013. 234 f. Tese (Doutorado em Educação em Ciências e em Matemática) - Instituto de Educação Matemática e Científica, Universidade Federal do Pará, Belém, 2013. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8504. Acesso em: 10 fev. 2021.
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, essa influência das experiências vividas e os saberes constituídos ao longo das trajetórias dos formadores ficaram bastante evidentes e se mostraram repercutindo nas ações, pensamentos e atitudes das práticas pedagógicas dos formadores participantes.

Pensar a educação e a formação em termos dialógicos e experienciais parece central para resgatar ou compreender a repercussão das experiências na vida profissional do professor. Isso pode ser alcançado através do diálogo consigo, com os diversos saberes, com o mundo, diálogo com nossas experiências e, assim, avançar em processos autoformativos, conscientes de nossa incompletude. A educação crítica se faz necessária e urgente.

Após um ano do estudo de campo, Getúlio foi contatado novamente. A necessidade de reencontrar os sujeitos da investigação é algo fomentado pela pesquisa narrativa, pois, como expõem Clandinin e Connelly (2011, p. 196)CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Uberlândia: EDUFU. 2011., ao retornar para os participantes com o texto de pesquisa provisório, intenciona-se saber: "este é você? você se vê aqui?". Assim, Getúlio foi questionado se havia continuado aquele tipo de avaliação, ao que ele responde afirmativamente, inclusive cedendo alguns trabalhos das turmas atuais.

Analisando os materiais, observa-se que os discentes construíram relatórios dissertativos a cada aula, explicitando os conteúdos ministrados. Os discentes, ao escreverem sobre o que estavam aprendendo em Análise, forneceram a Getúlio instrumentos valiosos para uma autoavaliação do processo de ensino e aprendizagem. Em um dos relatórios de um dos discentes de Getúlio, há a seguinte observação: "a aula foi ótima, a explicação nas demonstrações está sendo de forma clara. Gostaria de resolver mais exercícios em sala". Ou seja, Getúlio, além do feedback, também estabeleceu um canal de aprimoramento para sua prática docente.

Experiências como essas sinalizam a importância de possibilitar aos formadores, experiências fora de suas áreas de conforto, pois os saberes emergentes - ou em construção - provenientes delas, poderão contribuir para a autoformação dos docentes formadores, transformando suas práticas pedagógicas. Entretanto, observa-se que essas experiências, ocorreram de forma ocasional, não foram planejadas de forma intencional. Para que essas ou outras experiências pudessem ocorrer, haveria necessidade de um projeto de formação que estivesse voltado para além das barreiras impostas naturalmente pelas áreas de formação.

Se a meta como cidadãos e docentes universitários é romper velhos paradigmas, enfrentar a complexidade da sociedade e lutar contra o contexto atual que oprime cada vez mais uma educação transformadora, deve-se ousar e buscar vivenciar outras experiências. Os desafios enfrentados para além desse lugar mostraram o quanto às experiências vivenciadas pelo formador em questão foram importantes para sua autoformação e para construção de saberes que embasam sua prática pedagógica em constante transformação.

Considerações Finais

Este texto partiu de um estudo de tese que se debruçou sobre experiências de formadores de professores de matemática. Para este recorte, buscou-se mostrar possíveis compreensões das experiências de um formador de professores, na relação com processos autoformativos e reflexões transformadoras da prática formadora. As experiências vividas que se apresentaram nas práticas pedagógicas do formador de professores em questão, na medida em que ele pôde refletir sobre elas, juntaram-se, formando uma revisitação dessas práticas, tendo potencial de repercussão como núcleos experienciais.

O formador Getúlio, limitado em suas experiências enquanto licenciando e formador de professores de matemática, passou a refletir sobre as limitações de suas práticas pedagógicas e lançou-se a uma nova experiência: as avaliações dissertativas ou narrativas na disciplina de Introdução à Análise Real, continuando a experiência para além do momento da pesquisa. Sendo assim, os processos pelos quais passou durante a participação na pesquisa provocaram-lhe a mobilização de experiências diversificadas, que o fizeram investir em outras estratégias de ensino, configurando um processo reflexivo e de transformação da prática formadora.

Reafirma-se, portanto, com este estudo e seus resultados, a importância de se investigar para compreender as experiências e reconhecer o quanto elas, sejam educativas ou não, são transformadoras aos sujeitos que sucumbem à reflexão, mormente, em se tratando de formadores de professores de matemática. Para o alcance desse nível, há que se planejar ações de formação continuada que considerem essas experiências e que possam consolidar um processo autoformativo, investindo em rupturas com os paradigmas obsoletos de práticas formativas e avançando, para além da zona de conforto, buscando um devir constante melhor a cada prática desenvolvida, vivida, experienciada.

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    O formador assinou o termo de consentimento e autorização para uso das imagens, gravação etc., necessários para a realização da pesquisa.
  • 2
    O formador abandonou o curso do doutorado, posteriormente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2020
  • Aceito
    15 Nov 2020
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