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Os impactos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no trabalho de professores de Ciências dos anos finais do Ensino Fundamental

The impacts of the National Common Curricular Base (BNCC) on the work of Science teachers in the final years of Elementary School

Resumo

Este artigo versa sobre a chegada da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e seus impactos no trabalho de professores de ciências. A Teoria Fundamentada foi utilizada como metodologia da pesquisa, que consiste em uma forma de pesquisa qualitativa maleável e, ao mesmo tempo, rigorosa, e objetiva responder problemas complexos, propondo teorias explicativas sobre a realidade estudada. Por meio de entrevistas semiestruturadas com professores de ciências de uma cidade brasileira, foi angariado um conjunto de dados, os quais, por meio de consecutivas codificações, serviram de base para a seguinte teoria substantiva: a BNCC traz mudanças de alto espectro à educação básica e, diante disso, os professores de ciências identificam uma ampliação dos conteúdos a serem trabalhados, trazendo novas exigências para os alunos, levando a modificações no trabalho dos professores, movimento que contrasta com a formação atual destes, gerando lacunas de formação.

Palavras-chave
Base nacional comum curricular; Ensino fundamental; Ensino de ciências; Formação de professores

Abstract

This article deals with the arrival of the National Common Curricular Base (BNCC) and its impacts on the work of science teachers. The methodology was the Grounded Theory, which consists of a form of malleable and, at the same time, rigorous qualitative research to answer complex problems by proposing explanatory theories about the studied reality. Through semi-structured interviews with science teachers from a Brazilian city, a set of data was gathered which, through consecutive codifications, served as the basis for the following substantive theory: the BNCC brings high-end changes to basic education. As a result, science teachers find an increased amount of content to be covered, which in turn brings new demands to the students. This leads to changes in the work of teachers, a movement that contrasts with their current training and generates training gaps.

Keywords
National common curricular base; Elementary school; Science teaching; Teacher training

Introdução

O documento final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é resultado de anos de tentativas de definição de um currículo nacional para a educação básica. Esses caminhos foram se construindo formalmente a partir da Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 210 (BRASIL, 1988BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://tinyurl.com/ycd8rksd. Acesso em: 13 out. 2020.
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, p. 114), afirma que “[...] serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Além disso, o artigo 214 determina que a lei estabelecerá o plano nacional de educação com duração decenal, objetivando a articulação do sistema nacional de educação.

Os debates se intensificaram nos anos de 1990, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996 (LDB 9.394/96), a respeito do que deveria ser contemplado em uma base nacional comum. Destaca-se o artigo 26, que afirma:

Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (BRASIL, 1996BRASIL.Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 23 dez. 1996. Disponível em: https://tinyurl.com/yby6dwnk. Acesso em: 10 jun. 2018.
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, p. 9).

Essas legislações serviram de base para a publicação de vários documentos nos anos seguintes, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1997 (BRASIL, 1977), as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (BRASIL, 2010BRASIL. Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010. Define diretrizes curriculares nacionais gerais para a educação básica. Disponível em: https://tinyurl.com/43p7svku. Acesso em: 12 set. 2019.
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) e os Planos Nacionais de Educação (PNE, 2001-2010 e 2014-2024). Tanto a nova LDB, quanto os PCN representam uma década na qual se concretiza a entrada das empresas privadas na educação pública por meio, principalmente, do estabelecimento de um currículo nacional comum que vincula formação de professores, compra de material didático e avaliação nacional. Como afirmam Venco e Carneiro (2018, p. 9)VENCO, S. B.; CARNEIRO, R. F. “Para quem vai trabalhar na feira... essa educação está boa demais”: a política educacional na sustentação da divisão de classes. Horizontes, Itatiba, v. 36, n. 1, p. 7-15, jan./abr. 2018. Doi: https://doi.org/j26r.
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:

A tão aguardada reformulação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) contemplou em 1996 certas conquistas, mas os defensores do gerencialismo foram os grandes vencedores. [...] A matriz teórica presente na LDB elege o currículo baseado nas habilidades e competências em profícuo diálogo com o mundo empresarial.

A respeito dos PCN, Stankevecz e Castillo (2018)STANKEVECZ, P. F.; CASTILLO, N. I. A construção da base nacional comum curricular na mídia: que atores e posições foram veiculados pelo jornal Folha de São Paulo? Horizontes, Itatiba, v. 36, n. 1, p. 31-48. jan./abr. 2018. Doi: https://doi.org/j26q.
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lembram que, mesmo sem serem uma política obrigatória, surgiram vários currículos que tentaram implantar abordagens interdisciplinares dentro de seus eixos, princípios e núcleos.

Configurou-se, então, um projeto de formação baseado nos PCN e um processo de avaliação que deveria elevar os indicadores de qualidade do processo de ensino-aprendizagem, tendo os exames nacionais como forma de controle do Estado sobre o que estava sendo ensinado. (STANKEVECZ; CASTILLO, 2018STANKEVECZ, P. F.; CASTILLO, N. I. A construção da base nacional comum curricular na mídia: que atores e posições foram veiculados pelo jornal Folha de São Paulo? Horizontes, Itatiba, v. 36, n. 1, p. 31-48. jan./abr. 2018. Doi: https://doi.org/j26q.
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, p. 33-34).

Um próximo passo dado na trilha de criação de um currículo nacional foi a construção dos Planos Nacionais de Educação (PNE, 2001-2010 e 2014-2024). O primeiro, embora não aborde uma base nacional comum curricular, estabelece metas e objetivos para diversos níveis e modalidades de ensino, além de prever a contribuição de setores como empresas e organizações da sociedade civil para seu cumprimento. Já o documento de 2014 estabelece 20 metas para a educação e as estratégias definidas para alcançá-las objetivam tanto o Ensino Fundamental quanto o Ensino Médio (BRASIL, 2014BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o plano nacional de educação - PNE e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2014. Disponível em: https://tinyurl.com/bddvsnap. Acesso em: 10 jun. 2018.
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, p. 51, 53): “[...] pactuar entre

União, estados, Distrito Federal e municípios, no âmbito da instância permanente de que trata o § 5º do art. 7º desta lei, a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular [...]".

Embora com movimentos de resistência de associações científicas e também de membros do Conselho Nacional de Educação (CNE) (GONÇALVES; PEIXOTO, 2017GONÇALVES, R. M.; PEIXOTO, L. F. Em defesa dos currículos prática dos pensados nos cotidianos escolares. Educação: teoria e prática, Rio Claro, v. 27, n. 55, p. 213-226, 2017. Doi: https://doi.org/j26n.
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; VENCO, CARNEIRO, 2018VENCO, S. B.; CARNEIRO, R. F. “Para quem vai trabalhar na feira... essa educação está boa demais”: a política educacional na sustentação da divisão de classes. Horizontes, Itatiba, v. 36, n. 1, p. 7-15, jan./abr. 2018. Doi: https://doi.org/j26r.
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), o governo deu prosseguimento à elaboração da BNCC. A primeira versão foi publicada em setembro de 2015; a segunda, em abril de 2016 e, no ano seguinte, foram publicadas duas versões: uma em abril, outra em dezembro, sendo essa última o documento final homologado para as etapas da educação infantil e do ensino fundamental. Em 2018, homologou-se a versão final do documento, incluindo a etapa do ensino médio. A BNCC se apresenta como “[...] um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica [...].” (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/. Acesso em: 10 jun. 2018.
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, p. 7).

De acordo com a Resolução CNE/CP n.º 2 de 2017, os currículos das escolas deveriam se adequar à BNCC - Ensino Fundamental -, no máximo, até o início do ano letivo de 2020. Esse processo certamente impactou, de alguma forma, o trabalho dos professores. Decorrente desses procedimentos, buscou-se, com a presente pesquisa, compreender os impactos da chegada da BNCC no trabalho dos professores de ciências que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental.

Trabalho dos professores

O trabalho dos professores é complexo e difícil de ser caracterizado em poucas palavras. Para Saviani (2013)SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Campinas: Autores Associados, 2013., se configura como não material, por desenvolver ideias, subjetividades e habilidades, entre outros aspectos, que não são concretos. Assim, outra característica se coaduna, o trabalho do professor não se separa de sua realização. Ou seja, o trabalho se realiza na aula, no mesmo momento em que professores e alunos entram em relação (SAVIANI, 2013SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Campinas: Autores Associados, 2013.). Nesse sentido, é possível caracterizar o trabalho dos professores no setor de serviços (FERREIRA, 2018FERREIRA, L. S. Trabalho pedagógico na escola: do que se fala? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 2, p. 591-608, 2018. Doi: https://doi.org/10.1590/2175-623664319.
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), pois ele se realiza no mesmo momento em que é consumido.

Compreende-se, então, que o trabalho dos professores pode ser analisado como trabalho pedagógico, pois estabelece um conjunto de relações com a realidade na qual está inserido. Assim sendo, impreterivelmente “[...] não é um trabalho neutro, está eivado de influências ideológicas e denota relações intensas de poderes.” (FERREIRA, 2010FERREIRA, L. S. Trabalho pedagógico. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M. C.; VIEIRA, L. M. F. Dicionário: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 1-3. 1 CD-ROM., p. 2).

O objetivo central do trabalho pedagógico é produzir conhecimento sistematizado com os estudantes, processo que ocorre por meio da linguagem (FERREIRA, 2018FERREIRA, L. S. Trabalho pedagógico na escola: do que se fala? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 2, p. 591-608, 2018. Doi: https://doi.org/10.1590/2175-623664319.
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). Por se tratar de um trabalho desenvolvido em conjunto com uma instituição e diversos coprodutores - colegas, direção, coordenação pedagógica, trabalhadores da limpeza, estudantes, entre outros que compõem o espaço escolar -, é um trabalho amplo e deve ser compreendido em sua totalidade, não individualizado.

[...] um movimento dialético entre o individual e o coletivo: entre o que os professores concebem como seu projeto pedagógico individual e o que a escola, comunidade articulada, estabeleceu em seu projeto pedagógico institucional em consonância com o contexto histórico, social, político, econômico. (FERREIRA, 2018FERREIRA, L. S. Trabalho pedagógico na escola: do que se fala? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 2, p. 591-608, 2018. Doi: https://doi.org/10.1590/2175-623664319.
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, p. 594).

Dentro do espaço escolar, algumas áreas de conhecimento formam componentes curriculares, como Ciências, que faz parte das propostas curriculares do Ensino Fundamental.

Os professores de ciências dessa etapa apresentam formação nas ciências naturais como Ciências Biológicas, Química e Física.

O ensino de ciências no Brasil passou por diversas mudanças e adaptações de acordo com o cenário global e regional. Krasilchik (2000)KRASILCHIK, M. Reformas e realidade: o caso do ensino das ciências. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 14 n. 1, p. 85-93, 2000. Doi: https://doi.org/fqwr6d.
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apresenta que o objetivo central do ensino de ciências passou de formar uma elite, em 1950, para a formação do cidadão, em 1960. Já em 1970, passou à formação de trabalhadores, chegando até o avanço do movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), nos anos 2000.

Apenas com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (BRASIL, 1996BRASIL.Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 23 dez. 1996. Disponível em: https://tinyurl.com/yby6dwnk. Acesso em: 10 jun. 2018.
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), os conhecimentos do mundo natural e físico se tornaram obrigatórios no Ensino Fundamental. No ano seguinte, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Ciências Naturais, surge o objetivo de mostrar o conhecimento científico como “[...] compreensão do mundo e suas transformações, para reconhecer o homem como parte do universo e como indivíduo." (BRASIL, 1997BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: 1ª a 4ª séries: ciências naturais. Brasília: MEC/SEF, 1997. v. 4. Disponível em: https://tinyurl.com/532caw6w. Acesso em: 7 abr. 2019.
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, p. 21).

No texto da BNCC (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/. Acesso em: 10 jun. 2018.
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), percebe-se o componente de Ciências com um incisivo fomento à investigação e à resolução de problemas, porém, reitera-se a pergunta feita por Guimarães e Castro (2020, p. 10)GUIMARÃES, L. P.; CASTRO, D. L. Visão dos professores de ciências da rede municipal de Barra Mansa, diante dos desafios da base nacional comum curricular (BNCC). Horizontes: revista de educação, Dourados, MS, v. 8, n. 15, p. 6-19, 2020. Doi: https://doi.org/j254.
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: “A competência proposta encontra infraestrutura nas escolas públicas?”. A importância e a relevância da investigação no ensino de Ciências não é novidade, como demonstram Cachapuz et al. (2005)CACHAPUZ, A.; GIL-PEREZ, D.; CARVALHO, A. M. P.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino de ciências. São Paulo: Cortez, 2005., Chalmers (2000)CHALMERS, A. F. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 2000. e Pozo e Crespo (2009)POZO, J. I.; CRESPO, M. A. G. A aprendizagem e o ensino de ciências: do conhecimento cotidiano ao conhecimento científico. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.. A questão está em entender por que o ensino desse componente ainda não recebe a importância devida. Quais as condições materiais e subjetivas que emperram esse processo?

Para Franco e Munford (2018)FRANCO, L. G.; MUNFORD, D. Reflexões sobre a base nacional comum curricular: um olhar da área de ciências da natureza. Horizontes, Itatiba, SP, v. 36, n. 1, p. 158-171, 2018. Doi: https://doi.org/j256.
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, a contextualização histórica e social, as práticas investigativas e a linguagem da ciência perderam espaço na BNCC, possibilitando um comprometimento do ensino de ciências. Para os autores, a última versão da BNCC ainda não consegue articular os diferentes elementos que constituem o processo científico. Ao mesmo tempo, os conteúdos das ciências da natureza sistematizados perdem espaço para o desenvolvimento de competências e habilidades, processo relacionado a um vago aprender a aprender, o objetivo central se torna a formação de sujeitos adaptáveis e produtivos (BRANCO; ZANATTA, 2021BRANCO, E. P.; ZANATTA, S. C. BNCC e reforma do ensino médio: implicações no ensino de ciências e na formação do professor. RIS: revista insignare scientia, Cerro Largo, RS, v. 4, n. 3, p. 58-77, 2021. Doi: https://doi.org/j257.
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).

Por outro lado, Guimarães e Castro (2020)GUIMARÃES, L. P.; CASTRO, D. L. Visão dos professores de ciências da rede municipal de Barra Mansa, diante dos desafios da base nacional comum curricular (BNCC). Horizontes: revista de educação, Dourados, MS, v. 8, n. 15, p. 6-19, 2020. Doi: https://doi.org/j254.
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ressaltam que a principal alteração proposta pela BNCC para o ensino de ciências nos Anos Finais é relativa aos temas trabalhados por ano de escolaridade, mudanças que geram insegurança, preocupações e ansiedade em professores que terão seu trabalho afetado.

A chegada da BNCC nas escolas irá, de alguma maneira, afetar a práxis docente, pois existe uma conexão embrionária entre o currículo e o trabalho dos professores. Diante disso, é reafirmado o objetivo geral da presente pesquisa: compreender os impactos da chegada da BNCC no trabalho dos professores de Ciências dos Anos Finais do Ensino Fundamental.

Procedimentos metodológicos

Para a análise dos dados, este trabalho se pauta pela Teoria Fundamentada (TF), em seu nome original em inglês, Grounded Theory. A TF foi desenvolvida, nos anos 1960, por Barney Glaser e Anselm Strauss (GLASER; STRAUSS, 1965GLASER, B, G.; STRAUSS, A. L. Awareness of dying. Chicago: Aldine de Gruyter, 1965.). Tarozzi (2011)TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011. afirma que ela pode ser entendida fundamentalmente como uma metodologia que tem várias indicações de procedimentos, que variam de acordo com diferentes escolas e autores, mas é sempre fundamentada nos dados. Concordamos com Oliveira e Silva (2019)OLIVEIRA, A. R. H. R.; SILVA, C. C. Os espaços não formais amazônicos como potencializadores de aprendizagem para o ensino de ciências: uma perspectiva a partir da teoria fundamentada. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 24, n. 3, p. 59-73, 2019. quando afirmam

que qualquer que seja a linha epistemológica escolhida pelos pesquisadores, a Teoria Fundamentada transita entre essas vertentes, de tal forma que o pesquisador que utiliza essa ferramenta deve procurar dialogar com outras correntes. Nesse sentido, transitaremos em nossas análises pela linha epistemológica de Strauss e Corbin (2008)STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008. sem deixar de lado outras escolas clássicas (Glaseriana e Charmaziana) da Teoria Fundamentada.

Para a TF, o foco principal são os processos de análise e, a partir dos dados analisados sistematicamente, é extraída a teoria substantiva. O pesquisador interage com os dados, constrói códigos e categorias analíticas a partir deles, e não de hipóteses pré-concebidas, em um processo que busca chegar a categorias analíticas que, ligadas umas às outras, compõem a teoria substantiva que responde ao problema de pesquisa delimitado. Inicialmente, a TF foi descrita como: “um método geral de análise comparativa” (GLASER; STRAUSS, 1967GLASER, B, G.; STRAUSS, A. L. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York: Aldine de Gruyter, 1967., p. 1, tradução nossa), frisando a presença fundamental do método comparativo, que será apresentado mais à frente.

A TF se caracteriza naturalmente como uma pesquisa qualitativa, pois busca esmiuçar as informações sobre determinado fenômeno de maneira conceitual e, principalmente, interpretativa (STRAUSS; CORBIN, 2008STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008.). Como o problema da pesquisa, anunciado anteriormente, é intencionalmente aberto, a TF se constitui em uma alternativa metodológica excelente, pois permite aos pesquisadores maleabilidade na produção dos dados, ao mesmo tempo em que mantém uma rigorosidade ímpar.

Para este trabalho, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas como instrumento de coleta dos dados, recurso esse que é defendido por Tarozzi (2011)TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011.. O autor entende que cada instrumento escolhido para coleta é dotado de implicações específicas que terão efeitos sobre o tipo de dado que será produzido e defende a entrevista semiestruturada como o principal instrumento da TF “[...] em virtude da ênfase sobre a questão da atribuição de significados típica do interacionismo simbólico, mas também porque os instrumentos verbais consentem em focalizar a coleta de dados de acordo com o trabalho de codificação.” (TAROZZI, 2011TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 67).

Duas perguntas foram elaboradas, a priori, para as entrevistas: como você acha que a BNCC vai impactar no seu cotidiano em sala de aula? e Para os professores de Ciências, como a BNCC impacta a docência?

Os participantes desta pesquisa foram professores de Ciências dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Com o objetivo de conhecer o que pensam esses professores sobre os impactos da BNCC no trabalho deles, a pesquisa foi realizada com profissionais de escolas públicas e escolas privadas do município de Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul, local de residência e trabalho dos pesquisadores desta pesquisa. O número de entrevistas foi definido pela amostragem teórica defendida pela TF (TAROZZI, 2011TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011.), que não delimita numericamente a amostra anteriormente à pesquisa, mas, pelo aprofundamento dos dados e das informações serem suficientemente robustas para responder à pergunta de pesquisa. Encontramos nos resultados de quatro entrevistas, informações suficientes à nossa pergunta e o principal indicativo é a repetição dos resultados em todas as entrevistas, com ausência de novas informações ou dados que, como mostra Gasque (2007)GASQUE, K. C. G. D. Teoria fundamentada: nova perspectiva à pesquisa exploratória. In: MUELLER, S. P. M. (org.). Métodos para a pesquisa em ciência da informação. Brasília: Thesaurus, 2007. p. 83-118., é um dos argumentos da saturação teórica na TF.

Primeiramente, a pesquisa foi divulgada via e-mail para os professores, cujo texto apresentou o objetivo da pesquisa e, diante da concordância em participar do estudo, foi marcada hora e local para a realização da entrevista. As entrevistas ocorreram nas escolas onde esses professores trabalham ou em espaços públicos.

As entrevistas foram transcritas logo após a realização delas, para início da análise. Procuramos fazer a entrevista concomitantemente com a transcrição e a análise, de acordo com o que indica Tarozzi (2011)TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011.. Conforme o autor, uma das características da TF é que a coleta dos dados e a condução das entrevistas devem ocorrer de forma simultânea à codificação, “[...] não se deve esperar ter finalizado ou ter realizado grande parte das entrevistas antes de enfrentar o laborioso trabalho de transcrição e de análise.” (TAROZZI, 2011TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 70). Esse movimento paralelo auxilia na definição dos temas a serem tratados nas próximas entrevistas, nos direcionamentos, nas perguntas específicas, nos aprofundamentos, etc. Uma entrevista nunca é igual à outra. Nesse sentido, a segunda entrevista pode ser mais específica do que a primeira, pois a primeira já apresentou algumas informações gerais sobre o tema.

O processo de análise na TF apresenta algumas variações conforme diferentes linhas e autores. A escolha desta pesquisa foi utilizar a codificação aberta, axial e seletiva segundo Strauss e Corbin (2008)STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008.. Durante esses processos, dois movimentos contínuos são elaborados: o método comparativo e a construção de memorandos. O método comparativo é central na TF (GLASER; STRAUSS, 1967GLASER, B, G.; STRAUSS, A. L. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York: Aldine de Gruyter, 1967.). Ou seja, a comparação entre os dados e as informações deve ser constante, pois, a partir deste movimento, novas ideias, intuições e questionamentos vão surgindo, inclusive a conexão entre códigos e categorias (TAROZZI, 2011TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011.). Enquanto os memorandos são registros escritos sobre as percepções dos pesquisadores, eles auxiliam nas interpretações e funcionam como retornos constantes para análise das entrevistas e das etapas de codificação.

O fluxograma a seguir sintetiza os processos de análise entre as transcrições até a construção da teoria substantiva. O fluxograma foi escolhido e construído tentando evitar fixismos e uma imagem linear de aplicação. Por isso, algumas setas apresentam sentido contrário, estabelecendo as possibilidades de retorno aos dados brutos e avanços lentos na elaboração das categorias. Apenas o fluxograma isolado não consegue apresentar a complexidade do processo, necessitando da explicação posterior.

Como observado na figura 1, nossas análises se iniciaram com a transcrição das entrevistas para, em seguida, utilizarmos a organização desse material pela codificação aberta chamada linha por linha. Segundo Silva e Kalhil (2017)SILVA, C. C.; KALHIL, J. B. A aprendizagem de genética à luz da teoria fundamentada: um ensaio preliminar. Ciência & Educação, Bauru, v. 23, n. 1, p. 125-140, 2017. Doi: https://doi.org/gg2shs.
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, a codificação linha por linha consiste em repassar o texto e nomear ou codificar cada linha do texto, mesmo que as linhas não fossem sentenças completas.

Figura 1
Fluxograma explicativo das principais etapas de análises desenvolvidas na pesquisa

A codificação aberta trata da primeira nomeação dos dados. Cassiani e Almeida (1999)CASSIANI, S. H. B.; ALMEIDA, A. M. Teoria fundamentada nos dados: coleta e análise de dados qualitativos. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 13-21,1999. Disponível em: https://tinyurl.com/y26wkzsa. Acesso em: 21 abr. 2021.
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entendem que a nomeação envolve a separação dos dados em unidades de análise e sua conceituação de modo que seja abarcado, nessa nomeação, o significado do fenômeno que ali está representado. Para Charmaz (2009CHARMAZ, K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009., p. 69), “[...] codificar significa nomear segmentos de dados com uma classificação que, simultaneamente, categoriza, resume e representa cada parte dos dados.” A autora entende a codificação como o primeiro passo para que se possa sair das falas reais em direção à elaboração de interpretações analíticas. Tarozzi (2011)TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011. segue a mesma linha de pensamento de Charmaz, ao entender a codificação como o primeiro nível de análise, vendo-o como um “[...] conjunto de técnicas e procedimentos utilizados para conceituar os dados” (TAROZZI, 2011TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 70). A autora considera a própria transcrição pertencente ao primeiro nível de análise.

Procurou-se, neste trabalho, seguir o que destaca Charmaz (2009)CHARMAZ, K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. em relação à orientação de tentar codificar os dados com palavras que reflitam a ação, colocando esses dados como ações. Para tal, buscou-se utilizar o gerúndio na criação dos códigos, o que é orientado por Glaser (1978)GLASER, B, G. Theoretical sensitivity: advances in the methodology of grounded theory. Mill Valley US: The Sociology Press, 1978. e corroborado pela autora, a qual afirma que o uso de gerúndios transmite uma sensação de ação e sequência e fala em três formas de se proceder nessa etapa de codificação: palavra por palavra, linha por linha ou incidente por incidente. Optou-se em fazer a codificação linha por linha, pois se entende que ela auxilia no processo de análise já iniciado na transcrição. A autora destaca que “[...] ela pode ser uma ferramenta consideravelmente vantajosa, pois, por meio dela, surgirão ideias que tenham escapado à sua atenção quando da leitura dos dados para uma análise temática geral.” (CHARMAZ, 2009CHARMAZ, K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009., p. 77).

Para Tarozzi (2011)TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011., a codificação linha por linha busca as estruturas mínimas de um texto que mantenha um sentido. Além da transcrição das palavras formando as frases do participante, é importante prestar atenção nos detalhes: “Também os silêncios e as lacunas devem ser objeto de codificação linha por linha, pois representam expressões que indicam algo, que sugerem significados dignos de serem interpretados e aprofundados.” (TAROZZI, 2011TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 128).

Após a criação dos códigos na codificação aberta, avança-se para uma segunda etapa, que, não necessariamente, apresenta uma ruptura drástica entre os momentos (STRAUSS; CORBIN, 2008STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008.), a chamada codificação axial. Na codificação axial objetiva-se realizar um movimento de aglutinação na formação de categorias. Realiza-se um reagrupamento dos dados, que se inicia em grupos mais gerais, com características semelhantes entre os códigos, e avança com a intenção de encontrar sentidos mais explicativos, criando verdadeiras categorias analíticas. Para que isso ocorra, a categoria deve ser densa e refletir a realidade dos dados. Um movimento recomendado por Strauss e Corbin (2008)STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008. é desenvolver as propriedades e dimensões das categorias. As propriedades são características da categoria, podendo ser gerais ou específicas, e as dimensões são as variações da propriedade em uma faixa ou segmento (STRAUSS; CORBIN, 2008STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008.). A identificação das propriedades e dimensões das categorias corrobora a chegada ao nível analítico, pois dá precisão à categoria, diferenciando-a das outras (SILVA; KALHIL, 2019SILVA, C. C.; KALHIL, J. D. B. Análise sistêmica do processo ensino aprendizagem de genética à luz da teoria fundamentada. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, Curitiba, v. 12, n. 1, p. 368-388, 2019. Doi: https://doi.org/j26p.
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).

Após obter as categorias, avaliando-as como analíticas, eleva-se à terceira etapa, chamada codificação seletiva. É a etapa de maior abstração, que dá origem à teoria substantiva, reconhecida como um processo de teorização que fica próximo à realidade dos eventos estudados (GLASER; STRAUSS, 1967GLASER, B, G.; STRAUSS, A. L. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York: Aldine de Gruyter, 1967.). Para essa elaboração final, a codificação seletiva trabalha com a escolha da categoria central - core category - (STRAUSS; CORBIN, 2008STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008.), que geralmente é mais frequente nos dados e está em interconexão com as outras.

Buscou-se inspiração no modelo paradigmático de Strauss e Corbin (2008)STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008. trazido por Silva (2014)SILVA, C. C. Análise sistêmica do processo ensino aprendizagem de genética à luz da teoria fundamentada. 2014. 186 f. Tese (Doutorado em Educação em Ensino de Ciências e Matemática) - Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2014. e Silva e Kalhil (2019)SILVA, C. C.; KALHIL, J. D. B. Análise sistêmica do processo ensino aprendizagem de genética à luz da teoria fundamentada. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, Curitiba, v. 12, n. 1, p. 368-388, 2019. Doi: https://doi.org/j26p.
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em suas pesquisas para relacionar as categorias analíticas e a categoria central.

O paradigma é uma ferramenta analítica que ajuda os analistas a codificar em torno de uma categoria. Consiste em uma perspectiva ou um conjunto de perguntas que podem ser aplicadas aos dados para ajudar os analistas a classificar conceitos e estabelecer ligações. (STRAUS; CORBIN, 2008, p. 163, tradução nossa).

O modelo sustenta que determinada condição leva a um fenômeno presente em um contexto, que acarretam algumas ações que, por sua vez, levam a consequências (SILVA; KALHIL, 2017SILVA, C. C.; KALHIL, J. B. A aprendizagem de genética à luz da teoria fundamentada: um ensaio preliminar. Ciência & Educação, Bauru, v. 23, n. 1, p. 125-140, 2017. Doi: https://doi.org/gg2shs.
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). As categorias são trabalhadas com os seus sentidos e significados com relação à capacidade de resposta à pergunta de pesquisa, utilizando o método comparativo e constantes perguntas das categorias. Esse movimento leva à identificação de papéis das categorias referentes ao modelo apresentado anteriormente, com condições, fenômenos, contextos, ações e consequências.

A última etapa da codificação é a elaboração da teoria substantiva que, de forma resumida, consiste em um enunciado teórico que responde ao problema de pesquisa proposto. Somente é possível produzir esse enunciado após desenvolver os processos de codificação e análise anteriormente apresentados. Com auxílio do modelo paradigmático, a escrita da teoria substantiva pode ser modelada a partir do constructo da relação entre as categorias, principalmente, derivando-a da categoria central.

Análise dos dados

Após a transcrição das entrevistas e sua releitura, foi possível iniciar a codificação aberta. Foram analisadas 81 linhas advindas das entrevistas, criando, assim, 71 códigos. Algumas frases, por serem apenas de concordância ou repetição da anterior, reuniram-se com a seguinte na criação do código; isso explica a diferença numérica entre linhas e códigos. A codificação aberta objetivou desmembrar os dados, dando nomes, que na sequência foram organizados e analisados. Os códigos formaram as unidades de análise. Já, nessa codificação, alguns códigos tiveram maior destaque, e algumas categorias embrionárias já eram perceptíveis pela repetição e semelhança dos códigos.

A codificação axial fez o movimento contrário da codificação aberta, e buscamos reagrupar os códigos em categorias. Na análise desse processo, realizou-se a releitura das entrevistas e dos códigos, buscando comparar as categorias que foram surgindo. Foram criadas cinco categorias: BNCC trazendo novas exigências para os alunos (8 códigos); ampliando os conteúdos pela fragmentação e contextualização (19 códigos); mudanças de alto espectro (15 códigos); BNCC criando lacunas de formação (12 códigos) e alterando a atuação do professor (19 códigos). Essas categorias surgiram de um exaustivo processo de comparação entre semelhanças e diferenças, para o qual foram utilizadas folhas recortadas com os nomes dos códigos e a tentativa individual de conexão de sentidos entre os demais códigos.

Buscamos modelar as categorias em categorias analíticas mais profundas e robustas, que auxiliam de maneira mais potente na análise do estudo. Para melhor compreensão desse processo, será apresentada cada uma das categorias, de seu processo de criação até a elevação em categoria analítica, a partir das suas propriedades e dimensões.

A primeira categoria recebeu o nome de BNCC trazendo novas exigências para os alunos. Alguns códigos que alicerçaram essa categoria foram: centralizando a aula no aluno, prevendo dificuldades dos alunos, confundindo alunos, não entendimento dos alunos. Alguns códigos eram referentes à centralidade do aluno no processo de aprendizagem e outros direcionados às mudanças que alteram os próprios conteúdos apreendidos pelos alunos, o que gera confusão e dificuldades. Nesse sentido, a categoria apresenta dois polos centrais que, ao serem analisados mais intensamente, se agrupam no sentido de a BNCC exigir novos desafios para os alunos. Para confrontar as ideias e impressões sobre essa categoria em formação, foi utilizado o quadro 1, sobre suas propriedades e dimensões.

Quadro 1
Primeira categoria: BNCC trazendo novas exigências para os alunos

A primeira propriedade a ser destacada é a dificuldade que os alunos enfrentarão com a chegada da BNCC. Para uma das professoras entrevistadas, o principal impacto será a mudança nos conteúdos, pois os alunos que estão na metade dos anos finais do Ensino Fundamental só terão contato com os objetos de conhecimento da proposta curricular elaborada à luz da BNCC a partir desse momento. A segunda propriedade tem relação direta com a primeira; os alunos apresentam uma expectativa com a sequência de séries e o que irão estudar. Segundo outra professora participante, a mudança da BNCC impacta significativamente os conteúdos do componente de Ciências, uma vez que eles serão alterados ao longo do processo, provocando confusão para os alunos e não levando em conta as necessidades de uma aprendizagem mais concreta e processual. Assim, cria-se a terceira propriedade da categoria. Para Franco e Munford (2018)FRANCO, L. G.; MUNFORD, D. Reflexões sobre a base nacional comum curricular: um olhar da área de ciências da natureza. Horizontes, Itatiba, SP, v. 36, n. 1, p. 158-171, 2018. Doi: https://doi.org/j256.
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, a BNCC ainda apresenta poucas questões sociais das Ciências que poderiam fazer uma interlocução com o cotidiano dos estudantes. Para os autores, a última versão da Base perdeu aspectos mais objetivos da relação entre ciência e sociedade, acarretando em um distanciamento dos conteúdos com o cotidiano dos alunos. Nesse sentido, Sipavicius e Sessa (2019)SIPAVICIUS, B. K. A.; SESSA, P. S. A base nacional comum curricular e a área de ciências da natureza: tecendo relações e críticas. Atas de Ciências da Saúde, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 3-16, 2019. Disponível em: https://tinyurl.com/yckw7bs2. Acesso em: 19 nov. 2022.
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demarcam que as concepções de Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA) são desenvolvidas de forma reducionista pela Base.

Já a quarta propriedade é referente ao papel do aluno em sala de aula, que visa torná-lo protagonista da sua aprendizagem, o que, aparentemente, é um desafio a ser avaliado após algum tempo de aplicação da BNCC. Com relação às dimensões das propriedades mencionadas, percebe-se a flexibilidade que cada uma propõe, ou seja, na realidade teremos menores e maiores dificuldades, expectativas, necessidades e mudanças trazidas pela BNCC. O trecho a seguir ajuda a compreender a formação dessa categoria, principalmente em relação à terceira propriedade.

Mas para um aluno de ensino fundamental que ainda precisa ter um..., um aprendizado muito concreto, para ele é muito complicado, uma hora ele estar aprendendo..., é..., seres vivos como animais e plantas, de repente ele tá estudando a rotação da Terra e depois ele aborda sistema nervoso. [Professora entrevistada 4].

A segunda categoria recebeu o nome de Ampliando os conteúdos pela fragmentação e contextualização, e tem relação direta com os conteúdos do componente de ciências e suas modificações. Primeiramente cabe ressaltar a percepção dos professores de que ocorreu uma ampliação nos conteúdos normalmente trabalhados por eles. Compreender as percepções dos professores sobre as questões desta pesquisa se relaciona diretamente com a metodologia escolhida, que “[...] visa compreender a realidade a partir da percepção ou significado que certo contexto ou objeto tem para a pessoa” (SILVA, 2014SILVA, C. C. Análise sistêmica do processo ensino aprendizagem de genética à luz da teoria fundamentada. 2014. 186 f. Tese (Doutorado em Educação em Ensino de Ciências e Matemática) - Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2014., p. 89). Devido a isso, o termo percepção aparecerá novamente na análise, mantendo o significado de tomar consciência de algo. A ampliação citada anteriormente remete, principalmente, ao aumento de conteúdos relacionados à Física e à Química na disciplina que, anteriormente, era mais centralizada em temas próximos à formação dos biólogos, como zoologia, anatomia, botânica, ecologia, entre outros. Por outro lado, percebe-se um entrelaçamento de diferentes conteúdos em um mesmo ano letivo, por exemplo, fragmentando uma unidade de coerência no ensino e aprendizagem. O exemplo trazido por uma participante é o estudo do corpo humano, cuja carga horária foi reduzida, pois, na proposta curricular do oitavo ano, a que a temática corpo humano pertence, foram acrescentados outros conteúdos não relacionados a ela. Isso, segundo os professores participantes, é um ponto negativo da BNCC. Por meio das propriedades e dimensões apresentadas a seguir, as características desta categoria ficarão mais evidentes (quadro 2).

Quadro 2
Segunda categoria: ampliando os conteúdos pela fragmentação e contextualização

A primeira propriedade se refere à expansão dos conteúdos e, como já mencionado anteriormente, é o momento em que ocorre a adição de conteúdos que normalmente não eram trabalhados nos anos finais do Ensino Fundamental. A segunda propriedade relaciona a fragmentação desses conteúdos relativos a cada ano escolar, enquanto a terceira traz um foco maior na contextualização dos conteúdos que, segundo apresentado pelos participantes, a BNCC traz isso com significativa relevância. A quarta propriedade da categoria demarca o grau de mudança dos conteúdos, ou seja, relaciona-se fortemente com as outras três propriedades, como uma síntese. O trecho a seguir, extraído de uma das entrevistas, auxilia na compreensão da quarta propriedade da categoria:

Bom, no meu caso, que sou professora de Ciências e que o currículo foi todo remodelado, ele tá bem Física, Química e Ciências da Natureza, assim, num contexto mais voltado para a Biologia, um pouco pra Geografia e tudo mais. Ela vai impactar nos conteúdos da própria disciplina, né, que mudou completamente. [Professora entrevistada 3].

Ao mesmo tempo em que ocorre uma expansão em alguns conteúdos das ciências, ocorre uma injustificável fragmentação de outros, como evidenciam em sua pesquisa Rodrigues, Pereira e Mohr (2021RODRIGUES, L. Z.; PEREIRA, B.; MOHR, A. Recentes imposições à formação de professores e seus falsos pretextos: as BNC formação inicial e continuada para controle e padronização da docência. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 21, p. 1-39, 2021. Doi: https://doi.org/j26k.
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, p. 3).

Mesmo que tenha ocorrido uma tentativa de inclusão de objetos de conhecimentos ligados à Geociências, Física e Química desde os Anos Iniciais, a fragmentação de conteúdos ainda persiste e foi aprofundada. Por exemplo, conhecimentos voltados para a Botânica e a Zoologia foram praticamente apagados do documento, assim como o ensino de conteúdos ligados ao estudo do Corpo Humano foi proposto de maneira ainda mais fragmentada. Além disto, a ênfase no desenvolvimento de competências ligadas à resolução de problemas do cotidiano limita o aprendizado de questões ligadas a aspectos históricos, filosóficos e sociológicos da Ciência, assim como impede que o conhecimento seja objeto de experiências e reflexões críticas.

Percebe-se já uma grande relação entre a primeira categoria e a segunda, porém, mais à frente, essas relações serão todas apresentadas na codificação seletiva e nas conclusões deste artigo. A terceira categoria recebeu o nome de mudanças de alto espectro e agrupa a reincidência das impressões dos participantes sobre a mudança geral na dinâmica da escola, já que a BNCC impacta o trabalho do professor, pois atinge todas as esferas das instituições. Seguem-se alguns dos códigos pertencentes à categoria: propondo mudanças mais amplas, impactando a totalidade da escola, mudando a metodologia do PPP, mudando a organização, mudanças trazendo consequências e intensidade do impacto. A seguir, terceira categoria é apresentada (quadro 3).

Quadro 3
Terceira categoria: Mudanças de alto espectro

A primeira propriedade contribui com a amplitude das mudanças, altas ou baixas, dependendo do analisável, sejam professores, alunos, disciplinas, ensino ou aprendizagem. O objetivo da segunda propriedade foi realçar a diferença entre as disciplinas e suas mudanças para alguns participantes, uma vez que outros componentes curriculares não modificaram tanto quanto o de Ciências: “e eu vejo que Ciências foi uma das que mais mudou em relação ao conteúdo” (professora entrevistada 1). A terceira propriedade se refere ao tempo de adaptação para significativas mudanças. O que se evidencia nas entrevistas é o descontentamento com o pouco tempo destinado às devidas adaptações. Já a quarta propriedade se dedica a demarcar o grau de intensidade do impacto causado pela BNCC, o que, para os professores participantes, fica claro: “acho que isso vai impactar..., vai impactar bastante no ensino e, consequentemente, provavelmente, na aprendizagem dos alunos” (professora entrevistada 1).

Dentro das mudanças significativas que a Base pode induzir, Branco e Zanatta (2021BRANCO, E. P.; ZANATTA, S. C. BNCC e reforma do ensino médio: implicações no ensino de ciências e na formação do professor. RIS: revista insignare scientia, Cerro Largo, RS, v. 4, n. 3, p. 58-77, 2021. Doi: https://doi.org/j257.
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, p. 74) especificam: “[...] a preocupação maior é que haja secundarização dos conteúdos e do papel do professor, implicando em esvaziamento de conteúdos e precarização do ensino”.

A quarta categoria foi nomeada de BNCC criando lacunas de formação devido ao impacto das mudanças no trabalho dos professores, relacionando-se diretamente com a formação inicial que esses professores apresentam. Ou seja, como apresentado nas categorias anteriores relativas às mudanças de conteúdo, não se levaram em consideração a formação inicial dos professores, se eles estavam aptos a inseri-las em seus planos de aula, nas atividades elaboradas para os alunos, nas dinâmicas da escola. Alguns códigos mais relevantes dessa categoria foram: considerando o despreparo, destacando as lacunas de formação, destacando a inadequação da formação, se sentindo despreparado e falta de apoio institucional. A quarta categoria é apresentada no quadro 4.

Quadro 4
Quarta categoria: BNCC criando lacunas de formação

A primeira propriedade remete ao preparo dos professores que, como mencionado anteriormente, foi impactado com uma mudança drástica. Devido às alterações nos conteúdos, por exemplo, muitos professores não têm formação inicial para trabalhar conceitos da Física ou da Química ou, o contrário, professores que poderão ser contratados com formação inicial em Química, não dominam os conteúdos da Biologia. Esse movimento cria uma lacuna na formação dos professores que, impreterivelmente, impacta diretamente o trabalho pedagógico deles.

A segunda propriedade explora a questão da formação inicial nas licenciaturas que, em suas dimensões, podem ser adequadas ou inadequadas às novas exigências propostas por uma base curricular. O exemplo anterior se estende a essa propriedade. Para Branco e Zanatta (2021)BRANCO, E. P.; ZANATTA, S. C. BNCC e reforma do ensino médio: implicações no ensino de ciências e na formação do professor. RIS: revista insignare scientia, Cerro Largo, RS, v. 4, n. 3, p. 58-77, 2021. Doi: https://doi.org/j257.
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, a formação de professores pode se tornar um simplificado treinamento de aplicação da BNCC, e salientam que os professores de Ciências carecem de investimentos para formação. Já a terceira propriedade remete à formação continuada das instituições para o preparo e adequação à BNCC; o que se percebeu, pelos participantes, foi o descaso com essa questão. Um pequeno trecho de uma entrevista que remete à formação inicial de professores, evidencia a dimensão da inadequação: “Eu acho que nem as universidades estão formando efetivamente profissionais que estejam aptos a trabalhar dessa forma.

A quinta e última categoria formada na codificação axial foi nomeada alterando a atuação do professor, que, como o nome já apresenta, expressa o impacto da chegada da BNCC para os professores de Ciências, uma vez que traz consigo novas exigências e, consequentemente, alteração na rotina do trabalho. Códigos que justificam a criação da categoria: alterando a organização do professor, prevendo dificuldades, trabalho por projetos, desencontrando prática e base, prejudicando a docência, e alterando a percepção de professor. Na sequência, a quinta categoria (quadro 5).

Quadro 5
Quinta categoria: Alterando a atuação do professor

A quinta categoria apresenta três propriedades percebidas: a primeira remete à integração com outras disciplinas, algo supostamente mais interdisciplinar em relação aos conteúdos trabalhados dentro das ciências, mas também com outras disciplinas escolares em projetos e trabalhos. Podemos identificar indícios dessa propriedade no trecho: “O trabalho por projeto, ele vai ser, ao meu ver, o meio pelo qual vai se poder trabalhar com a base, por projeto, que eu digo, é assim..., interdisciplinar, geografia, por exemplo, entra muito no meu currículo” (professora entrevistada 3). Já, a segunda, pontua a dificuldade na atuação dos professores, devido às características apresentadas em outras categorias: despreparo, mudança brusca, desafios, entre outras. Enquanto a terceira propriedade finaliza com o grau de alteração da prática docente, que pode ser maior ou menor, dependendo de cada realidade, porém, certamente, a Base traz consigo uma intenção de modificação do trabalho docente. Discutiremos mais sobre isso em breve.

Dentro do processo de codificação, em alguns momentos de análise, os pesquisadores se voltaram à construção de memorandos, elaborados como notas escritas durante o processo e foram retomados inúmeras vezes. Os memorandos servem para o pesquisador e acabam sumindo da escrita de divulgação posterior (TAROZZI, 2011TAROZZI, M. O que é a grounded theory: metodologia de pesquisa e de teoria fundamentada nos dados. Petrópolis: Vozes, 2011.), porém, aqui serão demarcados alguns pontos escritos nos memorandos, que auxiliaram a lapidação das categorias. Um memorando foi escrito após a primeira entrevista, relacionando os impactos no trabalho dos professores que advêm do desencontro entre a formação inicial dos professores de Ciências e os conteúdos que a BNCC exige que sejam trabalhados em sala de aula.

Essa questão volta a aparecer nas outras entrevistas, evidenciando um ponto em comum e relevante. Outro memorando demarca a mudança de protagonismo dos alunos. Nesse sentido, o professor se torna mais um mediador, enquanto o aluno passa a ter um espaço maior na condução das aulas. Percebe-se a complexidade envolvida na chegada da BNCC, por ser um processo que envolve professores, alunos e instituições, demandando um longo processo de adaptação. Assim, um questionamento fundamental foi registrado no memorando: os professores tiveram tempo, formação, condições de trabalho, entre outras variáveis, suficientes para tal modificação? Apesar de ser um problema de pesquisa específico a ser investigado, as categorias criadas, e seus desdobramentos, já dão indícios de uma resposta negativa a esse questionamento.

As cinco categorias apresentadas anteriormente foram insistentemente comparadas e repensadas até serem cristalizadas com seus nomes, propriedades e dimensões. Ao serem avaliadas e prosseguirem para a próxima etapa - codificação seletiva -, encurtamos seus nomes, em alguns casos, e simplificamos sua escrita: BNCC criando lacunas de formação ficou, simplesmente, criando lacunas de formação.

Por fim, a codificação seletiva buscou efetivar três processos: consolidar a relação entre as categorias, selecionar a categoria central e elaborar a teoria substantiva. A figura 2 mostra algumas relações entre as categorias por meio do modelo paradigmático e a escolha da categoria central.

Figura 2
Codificação seletiva

A figura 2 auxilia na compreensão do movimento e das interações entre as categorias analíticas, pois, a compreensão da categoria central como a aglutinadora das demais somente faz sentido quando a relacionamos com a totalidade do fenômeno estudado. Seguindo o modelo paradigmático, a causa - categoria ampliando conteúdos - está relacionada a um contexto - categoria novas exigências para os alunos -, que impulsiona uma ação - categoria alterando a atuação docente - e apresenta uma consequência - categoria criando lacunas de formação. A categoria central dá formato e continuidade à análise, já que as mudanças proporcionadas pela BNCC são de alto espectro, impactando não somente os professores, mas alunos, direção, coordenação pedagógica, currículo, Projeto Político Pedagógico (PPP), Escolas e a própria educação.

Sobre as relações entre as categorias, alguns trechos dos professores reúnem aspectos importantes para a presente análise:

Outra coisa é estar preparado para ensinar química e física, né...? que a gente tem formação, tem habilitação para ciências né...?, mas não tem preparo para ensinar física e química. Acho que isso que vai impactar, vai impactar bastante no ensino e consequentemente, provavelmente, na aprendizagem dos alunos. [Professora entrevistada 1].

O trecho citado reúne aspectos de todas as categorias analíticas, respectivamente, ampliando conteúdos, criando lacunas de formação, mudança de alto espectro, alterando atuação docente e novas exigências para os alunos. São as relações entre as categorias que dão qualidade explicativa sobre o que queremos compreender. Nesse sentido, outro trecho enriquece este momento:

E a base como um todo, né...?, trazendo os temas integradores, antes transversais, junto com aqueles é, com as competências, ela vai mexer no núcleo da escola, né...?, no sentido de que a gente agora, nem que a gente queira trabalhar assim, compartimentado, nas caixinhas, né...?, isso agora vai mudar, né...? O trabalho por projeto ele vai ser, ao meu ver, ele vai ser, o meio pelo qual vai se poder trabalhar com a base. Por projeto que eu digo é, assim, interdisciplinar porque eu percebo, assim, no currículo de Ciências, eu vou trabalhar muitos conteúdos de outras áreas, né...?, Geografia, por exemplo, entra muito no meu currículo, coisas que eu nunca precisei ministrar, que eu não tive enquanto formação de Biologia, que são da Geografia e agora cabe a mim, professora de Ciências, ministrar esses conteúdos. [Professora entrevistada 3].

Ou seja, podemos encontrar alguns fragmentos das categorias da presente pesquisa nas falas dos professores, realizando o movimento contrário da análise realizada para construção do estudo. Sobre a citação da professora, inicialmente, encontramos aspectos da categoria central mudança de alto espectro; em seguida, aparecem indicativos da categoria alterando a atuação docente; em sequência ampliando os conteúdos, e criando lacunas de formação.

Destarte, a teoria substantiva deriva das múltiplas relações entre as categorias analíticas proporcionando um enunciado reduzido, porém coeso e robusto. A teoria a que chegamos foi: A BNCC traz mudanças de alto espectro para a educação básica, dentro disto, os professores de Ciências identificam uma ampliação dos conteúdos a serem trabalhados, trazendo novas exigências para os alunos. Isso leva a modificações no trabalho dos professores, movimento que contrasta com a formação atual destes, gerando lacunas de formação.

Nota-se que a teoria substantiva foi elaborada a partir dos dados produzidos com os professores participantes, oriunda da análise das entrevistas e das percepções dos professores. Conforme discutido anteriormente, a BNCC é percebida como uma significativa mudança para o ensino de Ciências, mudanças essas que mobilizam não apenas o professor, mas todos os envolvidos no processo educacional. Conforme Guimarães e Castro (2020)GUIMARÃES, L. P.; CASTRO, D. L. Visão dos professores de ciências da rede municipal de Barra Mansa, diante dos desafios da base nacional comum curricular (BNCC). Horizontes: revista de educação, Dourados, MS, v. 8, n. 15, p. 6-19, 2020. Doi: https://doi.org/j254.
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, as alterações nos temas trabalhados por ano de escolaridade são uma das marcas da BNCC, característica observada de forma unânime pelos participantes da presente pesquisa. Essas mudanças vão além da interdisciplinaridade, pois envolvem um professor dominar diversos conhecimentos sobre as áreas das ciências da natureza e pedagógicas, o que contrasta com a formação inicial - licenciaturas em Ciências Biológicas, Física ou Química - desses professores.

Entretanto, os desafios colocados aos professores vão além, pois, muitas vezes, atuam sem estrutura e condições de trabalho adequadas. Por conta disso, apresentam dificuldades em desenvolver metodologias diversificadas e adequadas ao ensino de Ciências, assim como constatam Guimarães e Castro (2020)GUIMARÃES, L. P.; CASTRO, D. L. Visão dos professores de ciências da rede municipal de Barra Mansa, diante dos desafios da base nacional comum curricular (BNCC). Horizontes: revista de educação, Dourados, MS, v. 8, n. 15, p. 6-19, 2020. Doi: https://doi.org/j254.
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. Isso nos leva a outra problemática, não iniciada apenas com a BNCC, que envolve o trabalho pedagógico dos professores, em contraste com a formação deles, legislações, currículos e outras variáveis relevantes que envolvem a educação básica.

Considerações finais

Os caminhos da análise dos dados aqui expostos nos levaram a propor a teoria substantiva apresentada anteriormente, evidenciando-se a importância de avaliar as repercussões das políticas públicas educacionais, pois, os impactos de tais proposições são reverberados em toda a estrutura. A categoria central dinamiza essa questão, avançando na compreensão de que não somente o trabalho do professor mudará, mas as relações e atuações dos envolvidos no processo educativo como um todo.

A BNCC foi aprovada com diversas mudanças em seu texto, passando por significativas alterações. Em 2017, com a publicação da BNCC para o Ensino Fundamental (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/. Acesso em: 10 jun. 2018.
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), foi prevista a implementação para 2020. Em 2018 foi publicada a versão final do documento - incluindo a parte voltada ao Ensino Médio -, com prazo de aplicação em 2022. Autores como Guimarães e Castro (2020)GUIMARÃES, L. P.; CASTRO, D. L. Visão dos professores de ciências da rede municipal de Barra Mansa, diante dos desafios da base nacional comum curricular (BNCC). Horizontes: revista de educação, Dourados, MS, v. 8, n. 15, p. 6-19, 2020. Doi: https://doi.org/j254.
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já demarcavam a tendência de alteração dos conteúdos por ano escolar relativo ao componente curricular de Ciências como uma das principais diferenças trazidas pela BNCC no Ensino Fundamental - Anos Finais. Como observado nas conclusões desta pesquisa, os professores já percebem esse movimento.

Para Ferraz (2019)FERRAZ, R. D. A BNCC e os desafios aos profissionais da docência: debates necessários. Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, Salvador, v. 7, p. 95-111, 2019., o problema é mais amplo, a BNCC configura-se como adaptação às demandas globais do sistema capitalista, objetivando as avaliações internacionais e o desempenho do país. O enfoque no desenvolvimento das competências e habilidades da BNCC anda na direção de vincular educação e trabalho, na tentativa de submeter a educação aos ditames mercadológicos. Quanto a esses aspectos mais abrangentes, não houve reverberações dos professores participantes, porém, a percepção de uma mudança de alto espectro com a chegada da BNCC já indica a perspectiva de alteração ampla do sistema educacional, impactando professores, gestores e alunos.

Esta pesquisa não objetiva ser determinista com os resultados apresentados, ao contrário, tais resultados auxiliam na avaliação e comparação a outras realidades e a novos olhares. Uma das características distintas da TF é, justamente, ser modificável (GLASER, 1978GLASER, B, G. Theoretical sensitivity: advances in the methodology of grounded theory. Mill Valley US: The Sociology Press, 1978.), ou seja, ela não é uma determinação atemporal, altera-se com novas evidências e realidades que se apresentam. Assim, a teoria substantiva apresentada ao final deste trabalho é um convite a novas pesquisas e investigações para melhor compreendermos a realidade educacional brasileira.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2022
  • Aceito
    13 Dez 2022
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