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Abordagem dos conceitos em doenças parasitárias nos livros didáticos (PNLD 2018-2020)

Approaching concepts related to parasitic diseases in coursebooks (PNLD 2018-2020)

Resumo

O presente artigo desenvolve um estudo qualitativo sobre a temática das doenças parasitárias nos trinta livros das dez coleções didáticas preconizadas pelo triênio do Programa Nacional do Livro Didático 2018-2020 para o ensino médio regular. Para o processo metodológico foram utilizados os critérios avaliativos de Mohr em uma ficha adaptada. Os resultados apontam para a predominância do sanitarismo, como vertente orientadora na educação em saúde, informações errôneas e mantendo seu conteúdo unicamente em informações a respeito da descrição de agentes etiológicos, no ciclo das zoonoses e na sintomatologia das doenças, ignorando o desenvolvimento de conteúdos sobre os processos e fatores condicionantes envolvidos no contexto infecção-doença.

Palavras-chave
Educação para a saúde; Saúde e educação; Livro didático; Ensino médio; Doenças parasitárias

Abstract:

This study describes a qualitative study on the theme of parasitic diseases in the thirty books of the ten didactic series recommended by the triennial National Textbook Program 2018 - 2020 for ordinary high schools. In terms of methodology, an adapted form of Mohr's evaluative criteria used. The results point to the predominance of sanitarianism as a guiding principle in health education, erroneous information, and content being limited only to the description of etiological agents, the cycle of zoonoses, and the symptoms of diseases, thus neglecting the exploration of content about the processes and conditioning factors involved in the context of infection-disease.

Keywords
Education for health; Health and education; Textbook; High school; Parasitic diseases

Introdução

A educação em saúde e o livro didático: o espaço escolar em foco

A Educação em Saúde, historicamente, tem se dado por via da saúde, e não pela Educação, com a finalidade de aprovar o saber médico como orientador das práticas pedagógicas (LUCCA, 2016LUCCA, J. A. A saúde escolar na educação: um recorte histórico desta modalidade de políticas no Brasil e Portugal. 2016. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.).

No Brasil, na década de 1920, começaram grandes mudanças no sistema de saúde, com Carlos Chagas sucedendo Oswaldo Cruz, reestruturando o departamento nacional de saúde e introduzindo a propaganda e a educação sanitária como ação rotineira técnica, em reflexo à lei Federal nº 126 de 1904, que instituía a vacinação obrigatória antivaríola e reagindo, posteriormente, contra a revolta da vacina, sendo um dos principais marcos ao sanitarismo no Brasil.

Em 1925, a reforma Sanitarista impôs como objetivo a educação sanitária no ensino básico de todo país, visando, principalmente, às regiões mais pobres do país (LABRA, 1985LABRA, M. O movimento sanitarista nos anos 20: da conexão sanitária internacional à especialização em saúde pública no Brasil. 1985. Tese (Doutorado em Administração) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1985.). Desta forma, a Educação em Saúde começou a fazer parte do processo estruturante do ensino brasileiro, trazendo discussões acerca de conteúdo sanitário como doenças tropicais que acometiam grande parte da população (MARTINS, 2019MARTINS, I. Educação em ciências e educação em saúde: breves apontamentos sobre histórias, práticas e possibilidades de articulação. Ciência & Educação, Bauru, v. 25, n. 2, p. 269-275, 2019. Doi: https://doi.org/gnp6.
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; MOHR; SCHALL, 1992MOHR, A.; SCHALL, V. T. Rumos da educação em saúde no Brasil e sua relação com a educação ambiental. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 199-203, 1992. Doi: https://doi.org/d25v9m.
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).

Em 1935, com a criação do Ministério da Educação e Saúde, foi proporcionada uma oportunidade de criar um campo em educação em saúde de grandes proporções. Contudo, as ações educativas tiveram um fim político, com o foco voltado para a febre amarela e outras doenças infectocontagiosas, que, na época, dificultavam as construções ferroviárias no interior do país (SOUZA; JACOBINA, 2009SOUZA, I. P. M. A.; JACOBINA, R. R. Educação em saúde e suas versões na história brasileira. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 33, n. 4, p. 618-627, 2009. Doi: https://doi.org/j6gp.
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).

A partir da década de 1970, iniciou-se a perspectiva da Educação em Saúde no espaço escolar. A lei 5.692/71 prevê a disciplinarização dos conteúdos de saúde para a escola e a obrigação da inserção do tema nos currículos do ensino básico (BRASIL, 1971BRASIL. Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1o e 2o graus, e dá outras providências. Brasília: presidência da República, 1971. Disponível em: https://tinyurl.com/2p8nb9ab. Acesso em: 10 abr. 2023.
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). Portanto, é possível indicar que a partir de 1971 a Saúde tornou-se oficialmente um conteúdo escolar.

Outro marco histórico para a Educação em Saúde foi a conferência internacional sobre cuidados primários da saúde, convocada no ano de 1978 pela Organização das Nações Unidas (ONU). A partir de então, as dimensões socioeconômicas, políticas, culturais e ambientais são consideradas condicionantes da saúde (CONTERNO; STELLE, 2021CONTERNO, S. F.; STELLE, C. A. C. Concepção de saúde incorporada pela base nacional comum curricular brasileira. Góndola: enseñanza y aprendizaje de las ciencias, Bogotá, v. 16, n. 2, p. 312-327, 2021. Doi: https://doi.org/j6f5.
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).

Em 1984, houve a implementação do Programa Nacional de Saúde Escolar (PNSE), com o objetivo de instituir a saúde pública na escola, focada na visão biologicista e curativa, enquanto que, partindo para a atualidade, em 2007, o PNSE foi renomeado para Programa da Saúde na Escola (PSE), com a articulação da iniciativa do Ministério da Educação (BRASIL, 2007BRASIL. Decreto n. 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o programa de saúde na escola - PSE, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2007. Disponível em: https://tinyurl.com/azhz4mk3. Acesso em: 10 abr. 2023.
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).

Sendo assim, a educação em saúde se tornou foco na escola, inclusive do livro didático, fazendo parte da cultura escolar, interpretando-o, sobretudo, como um material multifaces (BIZZO, 2002BIZZO, M. L. G. Difusão científica, comunicação e saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 1-18, 2002. Doi: https://doi.org/dxzmz9.
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). Além de um material com o poder técnico-científico, o mesmo também possui uma relação estritamente financeira dado o monopólio editorial e sua relação social enquanto recurso presente dentro de políticas estatais (MUNAKATA, 2012MUNAKATA, K. O livro didático como mercadoria. Pro-posições, Campinas, v. 23, n. 3, p. 51-66, 2012. Doi: https://doi.org/j6gc.
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).

O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é uma diretriz governamental para escolha e aprovação de livros didáticos para a educação básica. Uma vez aprovado o livro, ele poderá ser adotado pelas escolas do território brasileiro e usado em sala de aula (FREISLEBEN; KAERCHER, 2022FREISLEBEN, A. P.; KAERCHER, N. A. O PNLD e o mercado de livros didáticos no Brasil. Ciência Geográfica, Bauru, v. 26, n. 1, p. 391-404, 2022. Doi: https://doi.org/j6f8.
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). As pesquisas relacionadas aos livros didáticos são importantes, dado sua variedade e disponibilidade para o ensino básico nacional, uma vez que pode ser o único material técnico-científico a que o aluno terá acesso em todo seu percurso escolar (BIZZO, 2002BIZZO, M. L. G. Difusão científica, comunicação e saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 1-18, 2002. Doi: https://doi.org/dxzmz9.
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).

Sendo uma política de Estado, possui importância para o Ensino de Ciências, uma vez que seus critérios de avaliação e adoção para as escolas determinam a forma e contexto que o conteúdo científico será tratado pelas editoras de livros didáticos (ALBUQUERQUE; FERREIRA, 2019ALBUQUERQUE, E. B.; FERREIRA, A. T. B. Programa nacional de livro didático (PNLD): mudanças nos livros de alfabetização e os usos que os professores fazem desse recurso em sala de aula. Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação, Rio de Janeiro, v. 27, n. 103, p. 250-270, 2019. Doi: https://doi.org/j6f4.
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). Tonin e Uhmann (2020)TONIN, L. H.; UHMANN, R. I. M. educação ambiental em livros didáticos de ciências: um estudo de revisão. Revista Brasileira de Educação Ambiental, São Paulo, v. 15, n. 1, p. 245-260, 2020. destacam a produção acadêmica como um importante fator para o crescimento dos conteúdos científicos nos livros didáticos, influenciando diretamente o Ensino de Ciências, enquanto Megid Neto e Fracalanza (2003)MEGID NETO, J.; FRACALANZA, H. O livro didático de ciências: problemas e soluções. Ciência & Educação, Bauru, v. 9, n. 2, p. 147-157, 2003. Doi: https://doi.org/bmxj35.
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afirmam que o PNLD universalizou o livro didático brasileiro, tornando-o indispensável para o contexto escolar. A importância do PNLD se torna mais evidente quando se observa que ele é o segundo maior programa existente do mundo no quesito de avaliação, compra e distribuição gratuita para as escolas, fator que justifica o volume crescente de pesquisas acadêmicas sobre o PNLD no Brasil (ROSA; ARTUSO, 2019ROSA, M. D.; ARTUSO, A. R. O uso do livro didático de ciências de 6º a 9º ano: um estudo com professores brasileiros. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 19, p. 709-746, 2019. Doi: https://doi.org/j6gg.
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).

Diante deste quadro, a presente pesquisa objetivou a análise dos livros didáticos aprovados pelo PNLD 2018-2020 para o ensino médio regular, acerca do tema doenças parasitárias, guiados por Mohr (2000)MOHR, A. A saúde na escola: análise de livros didáticos de 1º a 4º séries. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 94, p. 50-57, 2000. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/838. Acesso em: 12 abr. 2023.
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.

Delineamento metodológico

Caracteriza-se a pesquisa como qualitativa do tipo documental. Para Fávero e Centenaro (2019)FÁVERO, A. A.; CENTENARO, J. B. A pesquisa documental nas investigações de políticas educacionais: potencialidades e limites. Contrapontos, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 170-184, 2019., a pesquisa documental possui como função analisar, descrever e produzir sínteses do objeto de análises documentais, sendo o livro didático, no presente artigo, o documento em questão.

O material a ser investigado foram todas as dez coleções utilizadas pelo guia PNLD do triênio 2018-2020 de Biologia para o Ensino Médio disponíveis no site do Ministério da Educação para consulta pública e disponibilizadas no acervo do laboratório vinculado ao trabalho.

A pesquisa se desenvolveu com a exploração dos livros didáticos, averiguando como as doenças parasitárias são retratadas nestes, tendo como base a ficha adaptada de Adriana Mohr, (MOHR, 2000MOHR, A. A saúde na escola: análise de livros didáticos de 1º a 4º séries. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 94, p. 50-57, 2000. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/838. Acesso em: 12 abr. 2023.
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), que a elaborou com critérios para análise do conteúdo saúde nos livros didáticos. Foi desenvolvida nos seguintes tópicos:

  • - O desenvolvimento do conteúdo: os conceitos e definições estão explícitos preliminar, posteriormente ou mesmo ausentes ao desenvolvimento da abordagem analisada, examinando a qualidade de desenvolvimento dos mesmos nas coleções, e se são condizentes com o nível acadêmico ao qual se propõe o livro didático.

  • - Pré-requisitos para abordagem dos conhecimentos: a explicação de termos desconhecidos e o embasamento científicos corretos ao contexto analisado.

  • - O tipo de enfoque sanitário e a influência com o meio ambiente: há, frente à luz epidemiológica indissociável, as questões sobre doenças parasitárias e meio ambiente, que possam estar se desenvolvendo no livro didático.

  • - As ilustrações: a inter-relação de circunstâncias em doenças parasitárias condizentes com o material apresentado.

  • - Local da abordagem: a localização dos conteúdos de doenças parasitárias nos livros didáticos.

Quadro 1
Listagem de livros utilizados no ensino médio pelo PNLD 2018-2020

Resultados e discussão

Dado o percurso metodológico executado, foram coletados os dados que seguem.

O desenvolvimento do conteúdo: erros conceituais pelas coleções analisadas

No estudo foram observados diversos erros conceituais dentre as coleções selecionadas, como demonstra o quadro 2. Como consequência dessas incorreções científicas, há desserviços para as áreas de saúde pública e ambiental.

Quadro 2
Ficha utilizada na análise exploratória dos livros didáticos
Quadro 3
Análise do conteúdo de doenças parasitárias utilizada pelas dez coleções didáticas em Ciências Biológicas do Ensino Médio

A ausência de informações quanto ao conteúdo sobre geohelmintos, principalmente o Enterobius vermicularis, contribui de forma negativa com o princípio didático do ensino em saúde em doenças parasitárias aplicado pelas coleções didáticas, tendo em vista que o espécime supracitado possui grande capacidade de transmissão ambiental em residências, escolas, rodoviárias, restaurantes, isto é, onde ocorram aglomeração de pessoas, como já descritos por Acosta, Cazorla e Garvett (2002)ACOSTA, M.; CAZORLA, D.; GARVETT, M. Enterobiasis en escolares de una población rural del Estado Falcón, Venezuela y su relación con el nivel socio-económico. Investigación Clínica, Maracaibo, v. 43, n. 3, p. 173-182, 2002. e Silva et al. (2013SILVA, A.T.; MASSARA, C. L.; MURTA, F. G. L.; OLIVEIRA, A. A.; SILVA, F. O. L. Ovos de Enterobius vermicularis em salas de espera e banheiros de unidades básicas de saúde (ubs) do município de Nova Serrana-MG: contribuições para o controle. Revista de Patologia Tropical, Goiânia, v. 42, n. 4, p. 425-433, 2013. Doi: https://doi.org/j6gm.
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).

O relato do quadro clínico na forma aguda da esquistossomose, apresentando características de hepatoesplenomegalia, com ascite abdominal, é incorreto, pois, como descreve Coura (2008)COURA, J. R. Esquistossomose. In: COURA, J. R. Síntese das doenças infecciosas e parasitárias. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008. p. 60-61., a forma aguda se inicia de três a quatro semanas após a infecção, com febre, mal-estar, cansaço, anorexia, sudorese, tosse seca, dor epigástrica, diarreia e intensa prostração. A forma crônica da esquistossomose se caracteriza pelas formas hepatointestinais e/ou formas hepatoesplênicas, sendo esta última incidindo em 2% a 10% dos infectados.

A explanação da coleção C2, que relata a presença de formas amastigotas após a infecção de Tripanossomatídeos é errônea, no que tange, especificamente, à presença de apenas formas flageladas na corrente sanguínea (COURA, 2008COURA, J. R. Esquistossomose. In: COURA, J. R. Síntese das doenças infecciosas e parasitárias. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008. p. 60-61.), ou seja, após a infecção. As formas epimastigotas e amastigotas podem aparecer na corrente sanguínea de roedores (PINTO et al., 1999PINTO, P. L. S.; TAKAME, R.; NUNES, E. V.; GUIMERME, C. S.; OLIVEIRA JR., O. C.; GAMA-RODRIGUES, J.; OKUMURA, M. Life cycle of Trypanosoma cruzi (Y strain) in mice. Revista do Hospital das Clínicas, São Paulo, v. 54, n. 5, p. 141-146, 1999. Doi: https://doi.org/d3ghz9.
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), embora em ambientes laboratoriais de infecção de T. Cruzi, ao passo que não há relatos normais da presença de outras formas durante seu ciclo biológico.

Na coleção C7, os autores afirmam a necessidade de aterramento de regiões lacustres, a fim de combater o ciclo reprodutivo de dípteros flebotomíneos. Todavia, esta informação pode ser refutada por não existirem artigos comprovando que estas regiões contribuam no ciclo reprodutivo, pois a produção científica sobre os locais de captura dos estágios larvais dos dípteros ocorre em regiões com grande quantidade de matéria orgânica na base de árvores e em áreas de penumbra (FELICIANGELI, 2004FELICIANGELI, M. D. Natural breeding places of phlebotomine sandflies. Medical and Veterinary Entomology, Chichester, UK, v. 18, n. 1, p. 71-80, 2004. Doi: https://doi.org/chshxk.
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; FERREIRA; DEANE; MANGABEIRA FILHO, 1938FERREIRA, L. C.; DEANE, L. M.; MANGABEIRA FILHO, O. Sobre a biologia dos flebotomus das zonas de Leishmaniose visceral ora em estudo no Estado do Pará. O Hospital, Rio de Janeiro, v. 14, n. 5, p. 1079-82, 1938. Disponível em: https://patua.iec.gov.br/handle/iec/3100. Acesso em: 12 abr. 2023.
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; FORATTINI, 1953FORATTINI, O. P. Nota sobre criadouros naturais de flebôtomos em dependências peri-domiciliares, no Estado de São Paulo. Arquivos da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 157-168, 1953. Doi: https://doi.org/j6f7.
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).

A dimensão da preocupação crítica da qualidade das informações utilizadas nos livros didáticos deve ser de grande consideração, uma vez que o livro didático, por vezes, pode ser a única ferramenta didática do professor, o qual, devido a inúmeras questões que a profissão exerce sobre o mesmo, pode favorecer a criação de incongruências pela sedimentação das informações explanadas nos livros aos alunos.

A perspectiva de aprendizado no Brasil pode ser refletida nos dizeres de Moreira e Axt (1986MOREIRA, M. A.; AXT, R. O livro didático como veículo de ênfases curriculares no ensino de física. Revista Brasileira de Ensino de Física, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 33-48, 1986. Disponível em: http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/vol08a04.pdf. Acesso em: 12 abr. 2023.
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, p. 33): “[...] em um dos extremos está a não utilização de livros e no outro está o uso inflexível de um único texto didático”. Ora, os pontos de referência que o aluno pode tomar para si são diversos, como anotações feitas no caderno, ditadas ou escritas na lousa pelo professor, o qual previamente estuda sobre o assunto, reunindo e organizando informações, a fim de utilizá-las em sala de aula, o que pode determinar um recorta e cola. No outro extremo, temos o uso das informações que os livros didáticos utilizam, estes sendo explorados ou empregados como ponto de partida para discussões por professores, sendo estes os maestros de como as informações serão consolidadas nas mentes dos alunos.

Estas mensagens sendo comunicadas implícita ou explicitamente aos alunos, sejam quais pontos de referência forem, devem possuir relevância inestimável, pois, no caráter formador que estas possuem, definem, direta ou indiretamente, que posicionamento o aluno pode tomar, seja, por definições sociais, seja, por definições ambientais.

As ilustrações: análise imagética das coleções

Em relação às ilustrações utilizadas nas dez coleções analisadas, durante o processo de investigação, a ficha análise de Mohr (2000)MOHR, A. A saúde na escola: análise de livros didáticos de 1º a 4º séries. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 94, p. 50-57, 2000. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/838. Acesso em: 12 abr. 2023.
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definia aquelas como: corretas, aceitáveis, incorretas e inexistentes. Todavia, a fim de diferenciar e obter melhor conceituação acerca do material abordado, foram definidas cinco categorias para diferenciação das mesmas: quando utilizadas fotos para complemento das informações, foi determinado como fotografia; quando havia uma representação orgânica da realidade, por meio figurativos, foi determinado desenho; quando havia a representação de relações por meio de símbolos, informações e setas, foi determinado como esquema; quando havia representação cartográfica associada ao assunto, foi determinada como mapa; e, por fim, quando havia representação de dados por meio de gráficos, para ilustrar comparativamente dados, foi determinado como gráfico.

Durante o estudo, foi observada a predominância em todas as coleções, conjunta e individualmente, do uso de fotografias (163), revelando um cuidado, por parte dos autores, do valor didático que as ilustrações acarretam, as quais, por vezes, principalmente na disciplina de Ciências Biológicas, minimizam a conceituação abstrata, que esta disciplina carrega. Partindo do ponto de vista de que a Biologia é uma disciplina em que parte de seus tópicos é, por vezes, complexa, as ilustrações nos livros didáticos tornam-se requisitos indispensáveis e, além disso, a leitura de imagens precisa ser ensinada, uma vez que em Ciências Biológicas, estas quase nunca falam por si (SILVA, 2006SILVA, H. C.; ZIMMERMANN, E.; CARNEIRO, M. H. S.; GASTAL, M. L.; CASSIANO, W. S. Cautela ao usar imagens em aulas de ciências. Ciência & Educação, Bauru, v. 12, n. 2, p. 219-233, 2006. Doi: https://doi.org/j6gh.
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).

O uso de fotografias, seja para ilustrar como são os parasitas, por fotografias e micrografias, como a forma clínica da doença se caracteriza em seres humanos, ou não humanos, seja para explanar situações de descaso político, ou ambiental, evocando reflexão e por vezes, empatia, devido às diversas realidades que a população brasileira convive, pode estreitar a relação que o aluno tem com a disciplina e desenvolver debates que fundamentam as bases dos processos de ensino e da aprendizagem.

Como supracitado, a disciplina de Ciências Biológicas necessita não somente de ilustrações com grande qualidade, mas também que auxiliem no cognitivo dos alunos. A escolha por fotos pode ter grande significância, porém, se não houver um bom texto ou material por detrás do uso destas, a significância do uso das mesmas pode ocasionar problemas na reflexão analítica que as ilustrações devem desenvolver.

Dito isto, o segundo maior número de ilustrações utilizadas foram os esquemas (74), cujo princípio era a elucidação dos ciclos de vida dos parasitos e como procediam as formas de contágio, com uma maior presença nas disciplinas que envolviam helmintos. Estes esquemas eram quase autoexplicativos, com setas e pequenos textos, o que funciona muito bem quando auxiliado por definições e conceituações explícitas preliminarmente, minimizando reducionismos abstratos.

A terceira quantificação no uso de imagens foi relacionada a desenhos (29), normalmente de parasitos microscópicos, ou ilustrando partes da estrutura física de parasitos, como a região cefálica de ancilostomídeos ou proglótides de tênias. A menor quantificação apresentada pode ser explicada pelo maior número de fotografias, principalmente micrografias de vírus, bactérias e protozoários utilizadas nas coleções, o que auxilia no processo de elaboração do conhecimento.

A utilização de mapas (9) teve grande representatividade epidemiológica, explanando como se distribuem as doenças no país e no mundo, e criando situações de debate acerca do por que da distribuição de determinadas doenças afetarem algumas áreas e outras não, principalmente no que tange às questões por temperatura (trópicos), ou vegetação envolvida.

O único gráfico utilizado foi na coleção Biologia Novas Bases, de autoria de Nélio Bizzo, com a quantificação de doentes por ano pelas malárias falciparum e comum. A baixa utilização de gráficos pode ser uma resposta ao fato de grande parte dos tópicos em saúde pública estarem inseridos nas disciplinas de zoologia, o que não condizia com o fato de utilizar informações epidemiológicas em saúde pública, uma vez que o foco, apesar de ser sobre doenças, era exemplificar representantes dos filos abordados (imagem 1).

Imagem 1
Representação gráfica total utilizada no conteúdo em saúde pública pelas dez coleções didáticas em Ciências Biológicas do Ensino Médio

O tipo de enfoque sanitário e a influência com o meio ambiente: desenvolvimento dos conceitos e definições em saúde pública nas coleções didáticas

Todas as coleções, em algum momento, apresentaram deficiência nos conteúdos abordados. Em média, a abordagem se fez básica, expondo as doenças de forma primordial, com o nome da doença, agente etiológico, porta de contágio e/ou sintomática que ela apresenta durante sua evolução infecciosa. Esta quase nunca foi respeitada, sendo, por diversas vezes, demonstrada apenas uma sintomática mais grave, ignorando completamente indivíduos que possam apresentar a doença sintomática branda ou assintomática, o que, por vezes, pode ser comum aos indivíduos infectados, transformando-os em agentes transmissores potenciais. No entanto, este papel foi, em todas as coleções, atribuído a seres não humanos, como moluscos, canídeos, primatas e artrópodes.

Este pensamento antropocêntrico é prejudicial, ao se utilizar um pressuposto sanitarista comum à medicina, mas o colocando em material abordado em zoologia, deformando a construção do conceito de ecologia, que elabora a importância do nicho ecológico que as espécies desempenham no ecossistema.

Local de abordagem

Outro ponto a ser discutido sobre os resultados observados, em primeira esfera, é que o ensino em saúde pública era predominantemente exposto a partir dos livros do 2º ano, aproveitando os capítulos de zoologia para introduzir o conhecimento proposto. Em segundo parâmetro, se em um ponto as coleções respeitam a universalidade expositiva que o livro didático deve possuir, em outro ignoram o amplo espectro sociocultural que o Brasil abarca, tornando implícito o pragmatismo assimilacionista, cuja fundamentação é ignorar as igualdades de oportunidade dos diferentes grupos sociais, e a eles lhes são integrados valores, mentalidades e conhecimentos socialmente valorizados pela cultura hegemônica, ignorando o modus operandis de grupos sociais marginalizados.

Quando se analisa o conteúdo de todas as coleções e como este foi direcionado (imagem 2), é notório que o nível de qualidade foi sensivelmente superior na abordagem voltada às doenças, seguida dos aspectos sanitários.

Imagem 2
As três maiores quantificações qualitativas de conteúdo em saúde pública pelas dez coleções didáticas em Ciências Biológicas do Ensino Médio

A maneira como é colocada a qualidade apresentada pela relevância didática indica uma inadequação ao tipo de conteúdo que se deseja apresentar, ou seja, inserindo epidemiologia médica em disciplinas voltadas ao desenvolvimento de conhecimento zoológico, distende-se um pensamento sanitarista acerca dos diversos filos apresentados.

Todas as coleções tiveram como estruturação a inserção de materiais em saúde pública no conteúdo zoológico. Todavia, apenas as coleções C2, C4, C5 e C6 tiveram capítulos desenvolvidos diretamente em saúde pública, elaborando um modelo que, em vias de otimização de conhecimento em saúde pública, obteve um desdobramento positivo.

Outro ponto importante a ser destacado refere-se às coleções que introduziram argumentações em saúde pública de maior sensibilidade, como a coleção C9, que apresentou subtópicos sobre resistência bacteriana pela utilização de medicamentos, além de expor o uso de DDT no combate aos artrópodes vetores de parasitos e as espécies invasoras e como o desequilíbrio ecológico maciço que estes produzem ao meio.

Na coleção C4, explana-se, além da importância ecológica que os parasitas compreendem, um subtópico importante sobre eugenia, microcefalia e aborto, o qual foi brilhantemente abordado, quando esmiuçaram o capítulo acerca de doenças virais, em chikungunya.

Esses aspectos em saúde pública expõem uma oportunidade reflexiva sobre como as doenças parasitárias moldam a forma como nós humanos coexistimos, e criam uma concepção de protagonismo individual e coletivo nos alunos, quando se desenvolvem debates acerca destas concepções e o impacto que estas abarcam.

Quando mesclamos estes resultados em um prisma epistemológico de abordagens em saúde (MARTINS; SANTOS; EL-HANI, 2016MARTINS, L.; SANTOS, G. S.; EL-HANI, C. Abordagens de saúde em um livro didático de biologia largamente utilizado no ensino médio brasileiro. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 249-283, 2016.), são bem definidas as três linhas de abordagem descritas pela autora, sendo:

  1. A doença a uma abordagem biomédica, ou seja, que a saúde é discutida em oposição à doença, ignorando completamente todos os processos ecológicos que a mesma apresenta, ou ainda, colocando a saúde como um estado estático.

  2. Os ciclos de vida e a abordagem socioecológica, isto é, sob essa perspectiva, o que determina a saúde dos indivíduos e/ou das comunidades são suas reações frente às condições de risco ambientais, sendo por vezes, um dos fatores determinantes à promoção da saúde coletiva, e por conseguinte, das ações políticas; e

  3. Comportamental e os aspectos sanitários, semelhante à abordagem socioecológica, cria também o compromisso da promoção da saúde, se diferenciando pelos níveis de exposição ao risco, explorando mais os determinantes individuais e familiares nos diversos níveis de risco, do que os determinantes coletivos.

Nos livros didáticos, a abordagem das doenças parasitárias, muitas vezes, apresenta um modelo unicausal, que coloca o ser humano quase sempre como vítima, por vezes, ignorando os aspectos comportamentais, sociais, políticos e mesmo ecológicos, os quais caracterizam o dinamismo que o processo saúde doença desenvolve, deixando a cargo do docente, explanar estes contextos.

Esses aspectos também estão presentes nos temas estruturadores do ensino de Biologia, especialmente nos temas nº 2 (Qualidade de vida das populações humanas) e o tema nº 6 (Origem e evolução da vida). No tema 2, as unidades temáticas são respectivamente: O que é saúde?, A distribuição desigual da saúde pelas populações e As agressões à saúde das populações. Estas unidades preconizam: expor, por uma abordagem positivista, os índices de desenvolvimento humano e de saúde pública; relacionar as condições socioeconômicas com o exposto; e trabalhar construindo tabelas e gráficos comparativos, além de compará-los também aos indicadores a níveis regionais e mundiais, com os dados levantados por meio de pesquisa, desenvolvendo uma noção de saúde e dos condicionantes biológicos que atrelam este processo.

No entanto, quando se sobrepõe esta temática estruturante ao conteúdo abordado, denotam-se algumas divergências, principalmente no que tange às informações contidas nos livros didáticos serem massivamente básicas, explorando alguns temas de forma mais completa e outros de forma insuficiente ou inexistente, citando apenas a existência de determinada doença e a que grupo de microrganismos a mesma é relacionada.

Comparativamente, os microrganismos que tiveram maior nível de polidez na sua representação didática foram os vírus. Contudo, salvo o conteúdo de saúde pública em bactérias, o nível de qualidade entre bom e ruim se manteve semelhante entre os protozoários, platelmintos e nematódeos (imagem 3).

Imagem 2
As três maiores quantificações qualitativas de conteúdo em saúde pública pelas dez coleções didáticas em Ciências Biológicas do Ensino Médio

O livro deve utilizar exemplos de grande abrangência para atingir o maior público alvo possível e facilitar os aspectos logísticos de sua distribuição em grande escala num país biologicamente e culturalmente diverso como o Brasil (PIMENTEL et al., 2021PIMENTEL, A. G.; SPIEGEL, C. N.; MOREL, A. P. M.; RIBEIRO, C. C. M.; GOMES, S. A. O.; ALVES, G. G. Concepções de educação em saúde nos jogos didáticos sobre Aedes aegypti no Brasil: uma revisão integrativa. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 26, n. 1, p. 285-304, 2021. Doi: https://doi.org/j6gf.
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; VASCONCELLOS, 2002VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas: Papirus, 2002.). Contudo, regionalmente, pode representar um problema em nível de saúde pública, principalmente na questão geográfica em que as doenças se apresentam, como esquistossomose, oncocercose, filariose, doença de Chagas e malária. Doenças causadas por vírus talvez não 'respeitem' muito barreiras geográficas devido ao meio em que se desenvolvem ser o interior de outros seres vivos, principalmente mamíferos e artrópodes (dengue e chikungunya). As causadas por bactérias necessitam de critérios ambientais externos no que tange, principalmente, à insalubridade e à ausência de saneamento ambiental. Infere-se, com isto, que estas doenças possuem caráter extremamente social e dependem de ações individuais e políticas públicas para seu aumento ou decréscimo.

A grande questão aqui levantada é se os livros didáticos selecionados levam em conta a qualidade das doenças abordadas com a região em que a escola está localizada, e se esta qualidade corroborará positivamente com o ensino em saúde pública. Existem diversos fatores a serem levantados aqui, como infraestrutura, tempo, formação docente, recursos disponíveis, que influenciarão diretamente na qualidade do ensino que o professor se utiliza para a abordagem em saúde pública.

Outra questão é o acesso a informações extra livro didático. Ressalta-se que, no Brasil, por ser um país de predominância rural, o acesso à internet é por vezes inexistente, e claro, por esta ser uma pesquisa a nível estadual, a realidade é que, apesar de existir uma concentração de escolas nos grandes centros, a existência de inúmeras delas na área rural também é elevada, o que representa que os alunos, por vezes, não têm acesso à internet, por conta dos condicionantes sociais, tornando o livro didático talvez a única fonte confiável para informações acerca das doenças parasitárias.

O tema 6 (Origem e evolução da vida) e suas unidades temáticas (Hipóteses sobre a origem da vida e a vida primitiva, Ideias evolucionistas e evolução biológica, A origem do ser humano e a evolução cultural, A evolução sob intervenção humana) trabalham com conceitos sobre a origem e linhas evolucionárias dos seres vivos, a origem e evolução cultural do Homo sapiens sapiens e como a interferência humana colabora com a evolução de outros seres vivos.

Alinhando este eixo estruturante aos estudos em saúde pública, torna-se claro a ligação, principalmente no que se refere à dispersão humana no planeta e como as doenças infecto parasitárias influenciaram diretamente sua história, desde tuberculose nas eras de vida nômade às gripes espanhola e suína que assolaram o último século.

Todavia, a questão principal e o papel das doenças no meio ambiente, assim como o parasitismo, possuem seu viés positivo, no que condiz com as questões coevolucionárias. Diversos exemplos são explanados pela natureza, como a Entamoeba gingivalis, que se alimenta de partículas de comida, bactérias e células epiteliais da boca, sem causar dano algum ao hospedeiro (ARAGÃO, 1988ARAGÃO, M. B. As duas parasitologias. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 4, n. 4, p. 420-426, 1988. Doi: https://doi.org/bbgkc2.
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), ou a plasticidade da microbiota intestinal humana às respostas imunológicas que perturbam o equilíbrio homeostático (CANDELA, 2012CANDELA, M. Unbalance of intestinal microbiota in atopic children. BMC Microbiology, London, v. 12, n. 1, p. 95, 2012.).

A dinâmica ecológica parasita-hospedeiro pode agregar fatores ambientais, fatores genéticos e fatores comportamentais, que determinam principalmente os parâmetros populacionais, pois as infecções parasitárias influenciam diretamente no potencial reprodutivo do hospedeiro, causando, por vezes, a morte do mesmo. É indubitável o papel no controle biológico de populações que o parasitismo exerce, influenciando inclusive como auxílio evolutivo nas espécies, determinando descendentes com genotipagem e fenotipagem superior às gerações anteriores (VON ZUBEN, 1997VON ZUBEN, C. J. Implicações da agregação espacial de parasitas para a dinâmica populacional na interação hospedeiro-parasita. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 31, n. 5, p. 523-530, 1997.).

Sob este foco, é importante que o livro didático apresente relações positivas provindas de eventos parasitários, uma vez que se trata de Biociências. Neste contexto, deve-se tratar também das relações históricas que a parasitologia exerceu e exerce na sociedade humana, principalmente no que se refere a servir como bioindicador para avaliar os impactos sociopolíticos, médicos, farmacológicos e agropecuários no processo evolutivo das espécies.

Considerações finais

Diante dos critérios de análise criados por Adriana Mohr (MOHR, 2000MOHR, A. A saúde na escola: análise de livros didáticos de 1º a 4º séries. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 94, p. 50-57, 2000. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/838. Acesso em: 12 abr. 2023.
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), denotou-se que todas as coleções detinham impasses quanto ao processo de inserção do tema abordado. Salvo poucas coleções já supracitadas, quase todas se utilizaram de uma pedagogia ambígua, um processo de sanitarismo tácito. Na abordagem do tema, quase sempre se mesclou ou inseriu-se como exemplo definitivo os parasitas e as doenças em outras disciplinas, ignorando toda a importância ambiental dos seres apresentados, sejam eles helmintos, bactérias, protozoários ou vírus.

Mohr e Schall (1992)MOHR, A.; SCHALL, V. T. Rumos da educação em saúde no Brasil e sua relação com a educação ambiental. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 199-203, 1992. Doi: https://doi.org/d25v9m.
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já nos revelavam que os dados apresentados neste trabalho já eram recorrentes, baseando-se, quase que unicamente, em informações a respeito da descrição de agentes etiológicos, no ciclo das zoonoses e na sintomatologia das doenças, ignorando o desenvolvimento de conteúdos sobre processos e fatores condicionantes envolvidos no processo infecção-doença.

Outro ponto importante também citado pelas autoras é a negligência às particularidades de cunho geográfico e culturais presentes em diversas realidades brasileiras, sendo que as coleções partem do pressuposto que a universalização cultural em saúde seria a melhor forma de introduzir o conhecimento em saúde pública, promovendo uma relação verticalizada entre a academia e a população, desenvolvendo maior distanciamento entre as relações sociais e vetorizando o processo pedagógico de forma autoritária.

De todas as coleções trabalhadas, a que retratou melhor desenvolvimento do assunto abordado por este trabalho e apresentou em seu processo metodológico uma transposição didática mais completa foi a coleção C6, desenvolvendo as disciplinas de forma crescente e não inserindo as doenças parasitárias como exemplo único durante as disciplinas de zoologia. Somente após os capítulos de zoologia, sistemas dos seres humanos e sistema imunológico, os autores discorrem de um capítulo final exclusivamente sobre doenças parasitárias, com desenvolvimento dos condicionantes não somente biológicos, mas também os sociais, denotando os eixos estruturantes mais funcionais para transposição didática voltada a Educação em saúde.

O processo histórico do ensino em saúde pública no Brasil, iniciado por Carlos Chagas em 1920 e posteriormente pelo artigo 7 da lei 5.692/71 (BRASIL, 1971BRASIL. Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1o e 2o graus, e dá outras providências. Brasília: presidência da República, 1971. Disponível em: https://tinyurl.com/2p8nb9ab. Acesso em: 10 abr. 2023.
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), que intencionava o estímulo ao conhecimento e a prática da saúde básica e da higiene, mesmo após a assimilação da pedagogia de Paulo Freire, pouco se alterou. O trabalho demonstra que, de certa forma, houve sim algumas evoluções, como tópicos sobre aborto. Não obstante o impacto da ausência de políticas públicas em saúde em algumas coleções abordadas, a predominância é ainda a massificação positivista de dados acerca das doenças, ciclos zoonóticos e ausência de saneamento básico. Atribui-se, desta forma, aos docentes o trabalho de explorar esses dados por vezes abjetos, e de desenvolver o pensamento crítico acerca das doenças neotropicais, bem como desmistificar o fato de que estas são, atualmente, doenças de desigualdade e exclusão social.

Como recomendações aos professores, sugere-se tentar utilizar de endemias comuns à região que reside a instituição escolar, utilizando-se de algum reforço didático, como a criação de aplicativos digitais e jogos de tabuleiro (caso a região não possua acesso fácil à internet), de modo a aproximar os alunos, com histórias e experiências que os mesmos presenciaram com a família, vizinhos, ou eles mesmos, estimulando a reflexão acerca de todo o processo político e ambiental do contexto saúde-doença.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2022
  • Aceito
    31 Jan 2023
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