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Representações multimodais em aulas de Ciências da Educação Básica: o papel das representações informais

Multimodal representations in basic education science classes: the role of informal representations

Resumo

A Ciência tem se utilizado de diferentes representações no processo de produção e comunicação do conhecimento. No ensino de Ciências as representações são parte do processo cognitivo de aprendizagem de conceitos. Neste trabalho analisamos o papel das representações informais - balões de festa e representação com o corpo - na construção de significados, nas aulas de dois professores. Para aproximar o ensino de Ciências de práticas científicas autênticas, estudantes foram envolvidos na proposição, justificação, negociação e reelaboração de representações, processo esse denominado representações multimodais. Na análise segmentamos as aulas em episódios e transcrevemos aqueles em que as representações informais foram usadas. Observamos que os estudantes perceberam aspectos da representação que não haviam percebido com os desenhos, o que lhes permitiu tanto a reelaboração do desenho quanto um entendimento conceitual mais amplo. Isso traz implicações para o campo, uma vez que o ato de representar não pode ser considerado apenas um recurso periférico.

Palavras-chave
Ensino de Ciências; Representações; Construção de significados

Abstract:

In this study, our goal is to examine how informal representations contribute to the creation of meaning. In an attempt to continue to bring science teaching and learning closer to authentic scientific practices, students have been invited to propose, justify, negotiate, and rework representations, a process called multimodal representations. To this end, we analyzed the use of representations in class by two teachers who used party balloons in addition to drawings and the representation of the body. In this analysis, classes were segmented into episodes, and we transcribed those in which informal representations were used. We found that the students were able to perceive aspects of the representation that they had not noticed with the drawings, which allowed them both to re-elaborate the drawing and to have a broader understanding of what was being studied. This has implications for the field since the act of representing cannot be considered just a peripheral resource.

Keywords
Science teaching; Representations; Meaning making

Introdução

Ao considerarmos o campo das Ciências da Natureza, observamos que tem sido defendido que a práxis científica envolve bem mais do que atividades na bancada de um laboratório. Nesse sentido, à produção científica contemporânea são impostos múltiplos e complexos desafios, tanto no campo teórico-metodológico quanto no político-ideológico do pesquisador (MAGALHÃES; SOUZA, 2018MAGALHÃES, S. M. O.; SOUZA, R. C. C. R. Epistemologia da práxis e a produção de conhecimento. Revista Educação Pública, Cuiabá, MT, v. 27, n. 64, p. 17-40, 2018. Doi: https://doi.org/10.29286/rep.v27i64.1702.
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), com destaque para esta última expressão, o que inclui quem ele representa e para que ou para quem está produzindo um dado conhecimento. Além disso, pesquisas consideradas de ponta envolvem grupos multidisciplinares, o que faz aumentar o compartilhamento/ discussão de informações. E esse compartilhamento é função tão relevante no cotidiano de um cientista como o trabalho experimental em si (LATOUR; WOOLGAR, 1997LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.).

Latour e Woolgar (1997)LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. realizaram uma etnografia da prática científica, experienciando o cotidiano de um laboratório e a rotina dos cientistas ali presentes. Com isso, destacaram a diversidade de modos e recursos semióticos empregados pelos cientistas durante a produção e compartilhamento do conhecimento científico, assim como as estratégias persuasivas que visam garantir a aceitação dos enunciados por eles produzidos. Gooding (2006)GOODING, D. C. From phenomenology to field theory: Faraday’s visual reasoning. Perspectives on Science, Cambridge, US, v. 14, n. 1, p. 40-65, 2006. Doi: https://doi.org/10.1162/posc.2006.14.1.40.
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, por sua vez, defende que algumas descobertas científicas servem como uma importante fonte de informações sobre o papel de diferentes modos semióticos no processo cognitivo. Segundo ele, os modos visuais de representação são essenciais para a geração, comunicação e divulgação de novos conhecimentos. Nesse trabalho, ele apresenta estratégias de visualização por meio das quais cientistas de diferentes áreas manipulam a dimensionalidade das imagens com o objetivo de transitar entre representações locais (relatos de experimentos), pessoais (esboços e desenhos de processos) e imagens canônicas. Essa estratégia de manipulação de imagens demonstra como o status cognitivo das imagens visuais muda na medida em que os cientistas integram novas representações em seus argumentos. Além disso, os estudos de Gooding (2004GOODING, D. Visualization, inference and explanation in the Sciences. In: MALCOLM, G. (ed.). Studies in multidisciplinarity. Amsterdam: Elsevier, 2004. v. 2, p. 1-25., 2010GOODING, D. C. Visualizing scientific inference. Topics in Cognitive Science, Malden, US, v. 2, n. 1, p. 15-35, 2010. Doi: https://doi.org/10.1111/j.1756-8765.2009.01048.x.
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) nos mostram que as representações multimodais também são usadas para organizar o pensamento do cientista e para gerar um dado científico a partir de algo do contexto.

Diversos estudos, a exemplo de Tytler et al. (2013TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Dordrecht: Springer, 2013.) e Hand, Mcdermott e Prain (2016)HAND, B.; MCDERMOTT, M.; PRAIN, V. (ed.). Using multimodal representations to support learning in the science classroom. Cham, Switzerland: Springer, 2016., defendem que uma aprendizagem científica de qualidade é oportunizada quando os estudantes são motivados/engajados a representar e justificar fenômenos e conceitos científicos; têm múltiplas oportunidades para representar, traduzir, justificar e reconfigurar compreensões por meio de processos de experimentação e aprendizagem colaborativa entre pares; compreendem a forma/função de diferentes representações científicas; e são capazes de integrar esses modos para interpretar e criar argumentos convincentes em relação a temas e conceitos científicos.

Nossa experiência tem mostrado que o ato de representar conceitos e modelos científicos em sala de aula vem sendo usado de maneira periférica e, algumas vezes, como uma atividade trivial, na qual é fornecida ao estudante uma tarefa a mais: realizar a representação. Uma das justificativas para essa prática é para enxergar melhor, como se a representação tivesse apenas essa função visual. Ressaltamos que representar é uma habilidade importante no processo de ensino e aprendizagem de Ciências quando se trata do mundo submicroscópico. Com base nesse entendimento do papel da representação no processo de construção do conhecimento científico, e também no processo de apropriação desse conhecimento no ambiente escolar, a presente pesquisa tem como objetivo investigar o papel das representações informais na construção de significados para as representações formais por meio de uma abordagem de ensino baseada na proposição, justificação, negociação e reelaboração de representações.

Referencial teórico

Utilizando como base os casos estudados por Gooding (2004GOODING, D. Visualization, inference and explanation in the Sciences. In: MALCOLM, G. (ed.). Studies in multidisciplinarity. Amsterdam: Elsevier, 2004. v. 2, p. 1-25., 2006, 2010), que apresentam as representações como inerentes à prática científica, além de estudos de outros cientistas, Prain e Tytler (2013)PRAIN, V.; TYTLER, R. Learning through the affordances of representation construction. In: TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Leiden: Brill Sense, 2013. p. 67-82. exploram a proposição, justificação, negociação e reelaboração de representações em salas de aula de Ciências, processo por eles denominado de representações multimodais. Esses pesquisadores argumentam que a inserção dessa dinâmica nas aulas de Ciência considera as concepções alternativas dos estudantes, promove a evolução dessas concepções, possibilita a transição entre as classes do discurso na abordagem comunicativa (MORTIMER; SCOTT, 2003MORTIMER, E. F.; SCOTT, P. H. Meaning making in secondary science classrooms. Maidenhead: Open University Press, 2003.) e, ainda, destaca o papel mediador da linguagem, o que tem uma relação direta com discussões importantes no campo de Educação em Ciências.

Na tentativa de aproximar cada vez mais o ensino e a aprendizagem de Ciências de práticas científicas autênticas, a abordagem de ensino embasada na construção e interpretação de representações a partir de diferentes modos semióticos mostra-se relevante, e não apenas um recurso periférico, tendo em vista que o ato de representar é uma habilidade importante para um indivíduo tornar-se letrado cientificamente (PRAIN; WALDRIP, 2010PRAIN, V.; WALDRIP, B. Representing science literacies: an introduction. Research in Science Education, Dordrecht, v. 40, n. 1, p. 1-3, 2010. Doi: https://doi.org/10.1007/s11165-009-9153-x.
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). Ressaltamos que a abordagem usada neste trabalho tem uma forte influência da semiótica social.

As sequências de ensino na perspectiva de construção e interpretação de representações proposta por Tytler et al. (2013TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Dordrecht: Springer, 2013.) são baseadas em desafios representacionais que visam desenvolver habilidades representacionais nos estudantes. Eles são desafiados a construir e justificar uma representação, participando de um processo de negociação que conduz à sua reelaboração, de maneira que esses estudantes têm a oportunidade de explorar ativamente conceitos/fenômenos e construir argumentos que justifiquem suas escolhas.

Ao inserir as representações multimodais em sala de aula é indicado que o professor selecione as ideias-chave ou os conceitos-chave fundamentais para o entendimento de um determinado fenômeno e que disponibilize o material necessário ao estudante. Cada representação tem suas próprias restrições, e ao navegar entre diferentes modos ou diferentes representações o estudante acaba por entrar em contato com o que Tytler et al. (2013TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Dordrecht: Springer, 2013.) denominam de restrições produtivas. Uma representação pode oferecer informações sobre um traço peculiar, sem - contudo - ser capaz de descrevê-lo completamente. A razão disso vem do fato de uma representação apresentar natureza diversa de outra, o que restringe sua capacidade de representar e descrever aspectos diferentes do referente, uma vez que cada sistema semiótico encerra propriedades específicas que limitam intrinsecamente suas possibilidades de representação (TYTLER et al., 2013TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Dordrecht: Springer, 2013.). Com isso, na representação de um movimento de partículas, por exemplo, é possível que a linguagem verbal associada aos gestos tenha maior potencial para auxiliar no entendimento do que é comunicado. No caso de um ciclo bioquímico, a exemplo do Ciclo de Krebs, a imagem certamente tem um potencial maior para comunicar.

Na perspectiva das representações multimodais, as representações que são construídas pelos estudantes são justificadas, negociadas e refinadas. Para que isso aconteça, a cada etapa o estudante comunica aos pares as suas ideias, podendo se utilizar de diferentes modos semióticos. Nesse processo os estudantes são orientados a construir a representação de dado fenômeno antes da introdução das formas canônicas da Ciência. Apoiados tanto pelo professor quanto pelos colegas, eles são desafiados a elaborar representações usando diversos modos e a mostrar como elas auxiliam na explicação do fenômeno.

A etapa de negociação das representações construídas se dá na medida em que o estudante apresenta as justificativas para sua representação, processo esse mediado pelo professor e apoiado pelos pares. Essas discussões têm como objetivo esclarecer aspectos envolvidos nas diferentes representações, o que acarreta a necessidade de outros modos de representar para que sejam trabalhados tópicos distintos de um conceito. O diálogo auxilia a dar coerência ao que foi proposto pelos estudantes, facilitando que se chegue a uma representação coerente para o conceito/fenômeno em discussão, em um processo mediado.

No processo de refinamento das representações, o professor utiliza a linguagem como mediadora e fornece restrições produtivas, aspectos conceituais ou evidências empíricas que auxiliam os estudantes a refinar e aperfeiçoar as representações construídas com o intuito de explicar/descrever o conceito/fenômeno estudado.

Nas atividades envolvendo representações multimodais o aprendizado significativo inclui o mapeamento representacional. Essa dinâmica consiste na construção das representações por meio da exploração de diferentes aspectos de um conceito ou fenômeno pelos estudantes, com o mapeamento do que foi inferido durante a observação. A avaliação desse processo é contínua e integrada a todas as etapas do desafio representacional. Os estudantes e o professor são envolvidos na avaliação da adequação de cada representação construída para o entendimento de um conceito/fenômeno mais abrangente, avaliação essa que integra a etapa de justificação das representações que emergiram do desafio representacional.

Embora tenhamos descrito separadamente cada uma das etapas envolvidas é preciso salientar que não há uma fronteira clara entre elas e que, por vezes, elas se fundem, e acontecem ao mesmo tempo.

Baseado no fato de que os cientistas utilizam representações para negociar/ compartilhar conhecimento e criar raciocínios em torno dos achados de suas pesquisas, Kozma (2003)KOZMA, R. The material features of multiple representations and their cognitive and social affordances for science understanding. Learning and Instruction, Oxford, UK, v. 13, n. 2, p. 205-226, 2003. Doi: https://doi.org/10.1016/S0959-4752(02)00021-X.
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argumenta que um ensino de Ciências orientado por um processo de construção, justificação e refinamento de representações possibilita aos estudantes organizarem o pensamento e comunicarem ideias. Kozma e Russell (2005KOZMA, R.; RUSSELL, J. Students becoming chemists: developing representational competence. In: GILBERT, J. K. (ed.). Visualization in science education. Dordrecht: Springer, 2005. p. 121-145., p. 129-130, tradução nossa) afirmam que os estudantes aprendem Ciência de uma forma significativa quando participam de atividades “[...] nas quais as representações são usadas na formulação e avaliação de conjecturas, exemplos, aplicações, hipóteses, evidências, conclusões e argumentos”.

De um ponto de vista semiótico, quando a aquisição de conhecimentos fica circunscrita a um número reduzido de modos de representação a aprendizagem torna-se frágil, o pensar permanece encapsulado e os estudantes têm dificuldade de pensar o conceito/fenômeno em um contexto distinto daquele que foi ensinado. O ensino de Ciências centrado em conceitos costuma fazer uso de alguns poucos modos semióticos, o que pode limitar a compreensão dos estudantes. Segundo Kozma e Russel (2005), quando as aulas se utilizam de um número reduzido de modos semióticos, há pouca ou nenhuma transição entre representações a partir de diferentes modos, sendo um verdadeiro obstáculo para a aprendizagem. Além disso, cada modo pode apresentar affordances específicas que contribuem para o entendimento do que está sendo discutido. Gibson (1977)GIBSON, J. J. The theory of affordances. In: GIBSON, J. The ecological approach to visual perception. New York: Psychology Press, 1977. p. 119-136. considera esse termo como a potencial ação de um objeto. Em se tratando de modos semióticos affordance significa tanto o potencial quanto a limitação de um determinado modo (TYTLER et al., 2013TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Dordrecht: Springer, 2013.).

A abordagem de um mesmo conceito ou fenômeno, fundada em distintos modos de comunicação e de representação, pode abrir possibilidades de novas significações conceituais. Para que isso aconteça é indicado que os estudantes sejam capazes de transformar e coordenar as diferentes representações por meio do uso de diferentes modos semióticos (PRAIN; WALDRIP, 2006PRAIN, V.; WALDRIP, B. An exploratory study of teachers’ and students’ use of multi-modal representations of concepts in primary Science. International Journal of Science Education, Abingdon, UK, v. 28, n. 15, p. 1843-1866, 2006.). No contexto brasileiro, pesquisadores do campo da Educação em Ciências têm dedicado atenção para a valorização das representações como parte do processo cognitivo dos estudantes (AIZAWA et al. 2023AIZAWA, A.; BOTELHO, M. L. S. T.; QUADROS, A. L.; GIORDAN, M. A corporificação de entes químicos em performances multimodais em aulas de ciências. SciELO Preprints, 2023. Doi: https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.5342
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; QUADROS; GIORDAN, 2019QUADROS, A. L.; GIORDAN, M. Rotas de transição modal e o ensino de representações envolvidas no modelo cinético molecular. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 24, n. 3, p. 74-100, 2019.) com ênfase na investigação da aprendizagem a partir do uso de representações multimodais em aulas de Ciências (QUADROS, 2020QUADROS, A. L. (org.). Representações multimodais no ensino de ciências: compartilhando experiências. Curitiba: Editora CRV, 2020. v. 1.).

Percurso metodológico

A pesquisa em questão foi realizada em dois ambientes escolares distintos. Parte deste trabalho foi desenvolvido em uma turma de nono ano do Ensino Fundamental, em uma escola privada da região metropolitana de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. As aulas do nono ano aconteceram no período da manhã, e a grade curricular contempla cinco aulas semanais de Ciências, de 50 minutos cada, sendo três delas destinadas a uma apresentação de um conteúdo de Química, em uma perspectiva introdutória. Essa turma era composta por 22 estudantes, com idades entre 14 e 16 anos. A professora responsável pela disciplina nessa escola é uma das pesquisadoras envolvidas nesta pesquisa, o que caracteriza sua atuação como observadora participante.

O segundo ambiente envolvido foi uma escola técnica federal da região metropolitana de Belo Horizonte, em uma turma do primeiro ano do Ensino Médio. A escola é referência em todo o estado de Minas Gerais por seu ensino de excelência, o que faz com que o processo seletivo para ingresso na instituição seja muito concorrido. As aulas da turma participante da pesquisa aconteceram no período da tarde, e a grade curricular contemplava duas aulas semanais de Química, cada aula com duração de uma hora e quarenta minutos. Os 30 estudantes que participaram, com idade entre 15 e 18 anos, eram dos cursos técnicos de Informática, Eletrônica e Mecânica.

Essas turmas foram escolhidas em função da experiência das professoras com aulas nas quais os estudantes têm maior participação. As professoras das duas escolas receberam orientações sobre como instruir um grupo de estudantes no processo de construção, negociação, refinamento e justificação de representações em aulas regulares de Ciências e de Química. As orientações foram tema das reuniões de preparação das aulas usadas para produção de dados e, também, de reuniões realizadas nos intervalos entre uma e outra aula.

Nessas reuniões compartilhamos ideias e conceitos-chave do referencial teórico adotado, relacionados às representações multimodais, e também estudos envolvendo a mediação na construção de representações pelos estudantes. Esses momentos também foram utilizados para a organização das sequências de atividades, observado que em ambas as turmas as professoras adaptaram o material didático adotado pela instituição para a construção do percurso pedagógico envolvendo os desafios representacionais. Essas reuniões foram ainda um espaço de socialização de observações oriundas do acompanhamento da prática docente e de troca de feedbacks entre as pesquisadoras e as professoras no decorrer da produção de dados.

O processo de produção e análise de dados

Acompanhamos as aulas das duas professoras participantes da pesquisa por um período de seis meses, de fevereiro a julho de 2019. Essas aulas foram registradas em vídeo e em áudio. As atividades envolvendo os desafios representacionais foram realizadas com os estudantes organizados em pequenos grupos. Para isso, foram instaladas duas câmeras de vídeo, em pontos estratégicos de cada uma das salas de aula, e gravadores de voz, em cada grupo de estudantes, para registrar as discussões entre eles durante o desenvolvimento das atividades.

Para facilitar a análise as aulas foram fragmentadas em episódios, com os quais formamos mapas de cada uma delas. Selecionamos os momentos dessas aulas nos quais os estudantes se envolveram em desafios representacionais. Os diálogos ocorridos nesses trechos foram transcritos e as imagens de registros das representações elaboradas pelos estudantes ao longo dos desafios representacionais foram alinhadas com os respectivos trechos de aulas. Optamos por registrar as transcrições de falas na norma culta da língua portuguesa, utilizando a pontuação para sistematizar os momentos de pausa nas falas dos estudantes e das professoras, baseadas principalmente na entonação da voz. Para isso os trechos das aulas transcritos foram assistidos repetidas vezes.

Com os vídeos e as transcrições em mãos, dirigimos nossa atenção para o envolvimento dos estudantes nos desafios representacionais, buscando indícios que pudessem nos ajudar a perceber se eles se apropriaram dos conhecimentos presentes nas representações construídas e, também, dos conceitos e ideias-chave inerentes a essas representações.

Analisamos nos episódios selecionados como as representações informais poderiam auxiliar os estudantes na construção de representações formais, as mais comumente utilizadas nas aulas de Ciências, ou seja, as fórmulas estruturais das moléculas desenhadas na lousa, o desenho de partículas em sistemas gasosos e os experimentos. Como representações informais consideramos as performances com o corpo (teatralização) e o uso de balões de festa, por serem pouco comuns em aulas. Ressaltamos que durante a realização desta pesquisa todos os preceitos éticos foram tomados, atendendo às orientações do Comitê de Ética em Pesquisa (COEP).

Resultados

Compartilhamos, a seguir, recortes das aulas que envolveram o trabalho com os desafios representacionais nos dois contextos escolares investigados. Descrevemos, inicialmente, o conjunto de aulas da turma do nono ano, e em seguida, compartilhamos os resultados analisados com a turma de primeiro ano.

a. A geometria da molécula no Ensino Fundamental

O conteúdo de geometria molecular e polaridade das moléculas foi desenvolvido em um conjunto de oito aulas de 50 minutos, em uma turma de nono ano do Ensino Fundamental. Nessa escola, a professora - nesse caso a própria pesquisadora - conjugou em suas aulas a abordagem baseada na proposição, justificação, negociação e reelaboração de representações multimodais com a exposição dialogada.

Inicialmente a professora explicou, do ponto de vista da Química, o significado do termo geometria molecular, e como iriam proceder na atividade. Em seguida ela retomou o tópico relacionado ao tipo de ligação química que forma moléculas, a ligação covalente, e explicou a teoria de repulsão dos pares de elétrons da camada de valência, considerando que a compreensão dessa repulsão era essencial para que os estudantes pudessem entender a organização espacial das moléculas. Ao retomar a ligação covalente e as diferentes formas de representar o compartilhamento de elétrons, a professora evidenciou a estrutura de Lewis e a de traços, e solicitou que os estudantes, organizados em grupos, construíssem a estrutura de Lewis de um grupo de moléculas. Para este trabalho destacamos as representações e as possíveis reelaborações das seguintes moléculas: cloreto de berílio (BeCl2), trifluoreto de boro (BF3) e metano (CH4).

Após os estudantes e a professora terem revisado e desenhado a estrutura de Lewis para as três moléculas, ela solicitou que os estudantes propusessem uma representação para a geometria dessas moléculas e a desenhassem na lousa. Em seguida, com o intuito de oportunizar a experiência com outro modo semiótico capaz de elucidar essa teoria e também a organização espacial dos átomos ao redor do átomo central, a professora propôs a realização de uma atividade, na qual, mantidos os grupos formados, os estudantes deveriam representar as três moléculas utilizando balões de festa.

No caso da molécula de cloreto de berílio (BeCl2), todos os grupos elaboraram as representações da geometria da molécula de forma coerente com a teoria de repulsão dos pares de elétrons de valência. Os estudantes distribuíram os pares de elétrons compartilhados ao redor do átomo de berílio, de modo que os pares de elétrons estivessem o mais distantes possível. Dessa forma, os dois átomos de cloro foram dispostos em um ângulo de 180 graus um do outro.

Figura 1
Representações para a molécula de cloreto de berílio

Nesse caso, os estudantes não demonstraram dificuldade para representar a geometria da molécula em questão, uma vez que, ainda que estivessem seguindo uma lógica própria, o resultado coincidiu com a representação canônica. As representações da geometria das demais moléculas, no entanto, inicialmente, não foram elaboradas de forma coerente com a teoria de repulsão dos pares de elétrons de valência. Na figura 2 apresentamos a representação feita por um dos grupos para a molécula de trifluoreto de boro (BF3):

Figura 2
Representação inicial para a molécula de BF3

Podemos perceber que ao representar a molécula de trifluoreto de boro (BF3) os estudantes estipularam a maior distância angular em linha reta para duas das ligações entre os átomos de boro e flúor, formando um ângulo de 180 graus entre os pares de elétrons compartilhados. O espaço restante foi destinado para a outra ligação entre boro e flúor, formando um ângulo de 90 graus, conforme mostra a figura 2. Esse era um resultado previsível, uma vez que temos observado essa forma de representar como uma tendência dos estudantes ao iniciarem o estudo da geometria molecular.

Ao se utilizarem dos balões de festa para fazer essa mesma representação, os estudantes tentaram ‘forçar’ um resultado que correspondesse ao que haviam desenhado na lousa (figura 3B). A professora, então, questionou-os sobre a correspondência entre a representação da molécula com balões e a representação que haviam registrado no quadro. Apresentamos um trecho do diálogo que ocorreu nesse momento:

Figura 3
Representações para a molécula de BF3- com balões (A) e final (B)

Professora: Pessoal, vocês acham que os balões e o desenho que eles fizeram no quadro estão representando a mesma coisa?

Alunos: Não.

[Alunos falam ao mesmo tempo]

Professora: Tem três pares de elétrons sendo compartilhados e têm três balões. Isso está correto. E a forma como esses balões estão organizados no espaço?

Francisco: Assim. [Francisco segura os balões com as mãos - Figura 3B]

Professora: Segura um balão só. E deixa que os outros se reorganizem.

[Francisco segura apenas um balão com as mãos e mostra para a turma a forma como os balões foram organizados]

Professora: Este ângulo aqui é igual a esse? [Professora aponta para as angulações entre os balões]

Alunos: Sim.

Professora: Então vocês concordam que as três nuvens eletrônicas dos elétrons que estão sendo compartilhados estão à mesma distância umas das outras?

Alunos: Sim.

Professora: Quando eles fizeram esse desenho aqui, essa distância é a mesma desta? [Professora aponta para as angulações de 90 e 180 graus registradas na representação no quadro]

Alunos: Não.

Professora: Aqui no desenho deles nós temos um ângulo de 180 graus e dois ângulos retos, 90 graus. Esse desenho não traz as mesmas informações que a representação com balões. Como que a gente pode ajustar isso?

Francisco: Diminuir esse ângulo. [Francisco aponta para a angulação de 180 graus entre os átomos de flúor]

Professora: Então vamos fazer isso.

[Francisco e Gustavo reelaboram a representação]

[...]

Professora: Beleza. Agora esse desenho corresponde à representação dos balões no espaço?

Alunos: Sim.

Professora: E vocês têm ideia da angulação dessas ligações? Como a gente faz para descobrir o ângulo?

[Alunos falam ao mesmo tempo]

Alunos: 120 graus: 360 dividido por três.

Professora: Concordam? 360 graus divididos por três são 120 graus.

O questionamento da professora sobre a correspondência entre as duas representações (balões e traços-esferas) permitiu que os estudantes percebessem que as duas formas representacionais não informavam as mesmas características em relação à geometria da molécula em questão. Francisco, que ‘empurrava’ dois balões para baixo, forçando um ângulo de 180 graus, notou que os balões se organizavam de forma diferente quando ele segurava apenas um deles. Isso fez com que ele e os colegas identificassem ângulos iguais entre todas as ligações e reelaborassem a representação feita na lousa (figura 3B). Essa nova representação desenhada na lousa tinha as mesmas características da representação com balões e estava coerente com a teoria de repulsão dos pares de elétrons da camada de valência. Os estudantes distribuíram os pares de elétrons, compartilhados entre os átomos de boro e flúor, de modo que os três ângulos de ligação ficassem iguais.

No caso da molécula de metano (CH4), a geometria proposta pelos estudantes, por meio do desenho na lousa, trazia os quatro pares de elétrons compartilhados entre os átomos de carbono e hidrogênio separados por uma angulação de 90 graus cada (figura 4B). Na representação do metano (CH4) podemos perceber claramente que os estudantes fizeram um desenho bidimensional, o que não nos fornece qualquer ideia do entendimento necessário no caso de geometria molecular (tridimensional). Ao refazerem a representação da geometria do metano (CH4) com balões de festa, novamente as estudantes forçaram a disposição dos quatro balões, de forma que os pares de elétrons compartilhados entre carbono e hidrogênio ficassem no plano (figura 4C). Ao que parece, sabendo que a representação com balões era a mesma desenhada na lousa, tentaram reproduzi-la, forçando a posição dos balões.

Figura 4
Representações iniciais e com balão para a molécula de metano

Em seguida, a professora solicitou que as estudantes deixassem que os balões se reorganizassem naturalmente e, nesse momento, elas e seus colegas se depararam com quatro balões que não se encontravam no mesmo plano, o que criou dúvidas em torno daquilo que haviam proposto. A seguir, um trecho da transcrição desse momento da aula:

Mariana: Aqui no centro do balão tem um átomo de carbono. E em cada uma das pontas um hidrogênio. Eles fazem quatro ligações simples. Aí vai ter uma angulação de 90 graus, porque 360 dividido por quatro é 90.

Professora: O desenho delas corresponde à imagem do balão, gente?

Alunos: Sim.

[...]

Professora: Mas olha só! Houve uma pequena ‘forçação de barra’ para que os balões ficassem assim. Se a gente deixar eles [sic] soltos, sem condicionar a posição que queremos que eles fiquem, como eles se organizam? [Professora segura apenas um dos balões com a mão, permitindo que eles se organizem sem interferência]. Eles ficam iguais à representação do quadro?

[Júlia reelabora a representação do seu grupo]

[...]

Professora: Explica seu desenho, Júlia.

Júlia: Esses dois hidrogênios estão no plano do quadro [Júlia aponta para as esferas 1 e 2 indicadas na figura 4-C]. Esse está para fora [Júlia aponta para a esfera 3] e esse dentro do plano [Júlia aponta para a esfera 4].

No momento em que a professora chamou a atenção de Mariana e Júlia para a organização natural dos balões, elas perceberam problemas na representação que estava na lousa e a reelaboraram. Essa nova representação (figura 5A) se mostrou coerente com a organização espacial dos balões e com a teoria de repulsão dos pares de elétrons de valência.

Figura 5
Representação final para a molécula de metano

Como Mariana já havia tratado da angulação na sua primeira tentativa de representar a molécula usando os balões, ela questionou a professora sobre o ângulo existente entre essas ligações. Atendendo ao questionamento, a professora explicou essa angulação e apresentou, a título de informação, o valor do ângulo (figura 5B). Ao serem desafiados a representar a geometria da molécula os estudantes tiveram a oportunidade de um maior envolvimento com conhecimentos relacionados à organização espacial dos átomos em uma molécula. Foi o processo de negociação com a professora e com os pares que conduziu à reelaboração da representação inicial.

A representação usando os balões de festa, que chamamos de representação informal, foi essencial para que os estudantes percebessem as limitações da representação bidimensional e pudessem ‘imaginar’ a molécula no espaço a partir das forças de repulsão entre os pares de elétrons. Como se trata de um conhecimento complexo para estudantes do Ensino Fundamental, as restrições do desenho na lousa exigiram o uso de representação a partir de outro modo semiótico. Nesse caso os balões tiveram esse papel de auxiliar os estudantes a perceberem incoerências na proposta inicial que haviam feito. Ressaltamos que isso só foi possível pelo fato de a professora ter chamado a atenção para a relação entre os dois modos de representar.

b. O modelo cinético molecular no Ensino Médio

O conteúdo de modelo cinético molecular foi desenvolvido em um conjunto de seis aulas de uma hora e quarenta minutos cada, em uma turma de primeiro ano do Ensino Médio. As aulas que foram objeto deste estudo envolviam as partículas presentes em materiais de diferentes estados físicos. Além da inserção de alguns desafios representacionais, nessas aulas a professora também conjugou a abordagem baseada na proposição, justificação, negociação e reelaboração de representações multimodais com aulas expositivas e dialogadas.

Como recorte, analisamos os dados gerados a partir do trabalho com um sistema de aquecimento de um erlenmeyer com um balão acoplado (figura 6). O erlenmeyer foi colocado sobre uma chapa elétrica para aquecimento, e os estudantes foram orientados a observar as possíveis modificações no sistema. Durante o aquecimento foi constatado o aumento do volume do balão ocasionado pela expansão das partículas de ar ali contidas. Em seguida, a professora solicitou que os estudantes representassem, com um desenho, o sistema de partículas antes e após o aquecimento. Destacamos um fragmento do diálogo ocorrido entre estudantes de um grupo durante a construção dessa representação:

Figura 6
Representação para o aquecimento do erlenmeyer

Pedro: Aí, vai crescer e vai agrupar mais, né?

Marcelo: Não, vai separar.

Carolina: Quando aumenta a temperatura de uma coisa, aumenta o volume dela também. Então o volume dela fica maior.

Marcelo: 1, 2, 3, 4, 5

Pedro: Fica maior? Ela agita mais.

Esse diálogo foi acontecendo enquanto o grupo de estudantes propunha uma representação para o que aconteceu no experimento. O cuidado com o número de partículas, as quais foram contadas por Marcelo, evidenciou que esse grupo de trabalho estava atento ao princípio de conservação de massa do sistema, aspecto do modelo cinético molecular discutido entre a professora e os estudantes em desafios representacionais anteriores. Durante o processo de construção da primeira representação para o fenômeno, os estudantes logo associaram o aumento do volume do sistema com o aumento da temperatura, embora não tenham utilizado o conceito de energia cinética. Tanto a representação elaborada por esse grupo (figura 6) quanto a dos demais contemplou a expansão do gás presente no erlenmeyer e, em consequência, o aumento do volume do balão.

A representação simultânea de aspectos macroscópicos (béquer e balão) e submicroscópicos (partículas) também foi comum a todos os grupos. Consideramos que essa simultaneidade é um aspecto frágil da representação feita pelos estudantes, por dois motivos: ela não permite evidenciar se o estudante tinha noção da quantidade de partículas que pode estar presente dentro do erlenmeyer, e se ele realmente considerou a partícula como algo submicroscópico. Nesse sentido, julgamos adequado orientar os estudantes a fazerem um zoom para representar o sistema submicroscópico. Essa transição entre representações macroscópicas e submicroscópicas foi tratada posteriormente pela professora, em momentos não contemplados no conjunto de aulas que analisamos para o presente trabalho.

Os estudantes de outro grupo incluíram em sua representação a ideia de movimento das partículas, mas o fizeram apenas na representação do sistema após o aquecimento (figura 7).

Figura 7
Representação para o aquecimento do erlenmeyer considerando o movimento das partículas

A professora selecionou a representação desse grupo para dar início à discussão do movimento das partículas presentes na representação. Os estudantes Helena e João protagonizaram uma discussão em torno do fato de as partículas não estarem distribuídas uniformemente no sistema, conforme pode ser observado na transcrição que segue.

Helena: O que acontece nessa situação é que quando uma substância fica em uma temperatura mais alta a energia dela aumenta e ela precisa ocupar mais espaço. Já que o balão é um sistema fechado, não vai sair nenhum ar por aqui, então a mesma quantidade de massa vai ocupar um espaço maior.

Professora: Então, a energia final aqui vai ser maior. Alguém acrescentaria alguma coisa aqui na representação?

João: O ar quente é menos denso, no caso ali vai ter menos moléculas no erlenmeyer do que no balão.

Professora: Mas vai aquecer tudo. Olha o sistema aqui.

João: É porque o ar quente sobe.

Helena: Você acha que tem mais partículas no balão do que no recipiente?

João: É.

Helena: Por quê?

João: Porque o ar quente é menos denso que o ar frio, aí ele sobe.

[...]

Helena: Você está certo. O ar quente vai para cima. Mas forma uma corrente, o que está embaixo vai aquecer e subir também.

João: Então tem a mesma quantidade no balão e no erlenmeyer?

Helena: Se eles fossem do mesmo tamanho, sim. Mas como não são, não é a mesma quantidade. Aqui tem menos, porque eu desenhei menor [Helena aponta para o erlenmeyer].

Ao explicar a representação que construíram, Helena citou a elevação da temperatura e da energia do sistema, dizendo que essa elevação provocou o aumento do volume ocupado pelas partículas. Porém quando João, estudante de outro grupo, comentou sobre o número de partículas no erlenmeyer e no balão, em função de uma corrente de convecção que se formou dentro do sistema, Helena utilizou conhecimentos de densidade e de energia cinética (embora não tenha utilizado os termos) para explicar ao colega a distribuição homogênea de partículas no sistema. A partir das explicações de João, Helena mostrou a sua própria linha de raciocínio, que considerava a energia cinética e se aproximava da explicação canônica para o fenômeno em questão.

A ideia de João de que após o aquecimento do sistema as partículas iriam se concentrar no balão em função da diminuição da densidade do ar quente, é uma lógica de pensamento dos estudantes que nem sempre é conhecida pelos professores. A utilização de representações estáticas, como o desenho, pode reforçar essa concepção alternativa, devido à dificuldade de pensar nessas partículas em termos de movimento, uma vez que o desenho não permite representar facilmente a corrente de convecção formada.

A professora, então, solicitou que os estudantes usassem o próprio corpo para, em grupo, representarem as partículas antes e durante o aquecimento, processo esse que chamamos de representação incorporada ou teatralização. A figura 8, que segue, fornece uma ideia do que foi essa representação.

Figura 8
Teatralização das partículas no sistema erlenmeyer e balão antes (A) e após o aquecimento (B)

Ao propor a representação com o corpo, a professora permitiu que os estudantes explorassem outros modos semióticos. Sete estudantes participaram da teatralização e utilizaram a fala para explicar a delimitação do espaço correspondente ao erlenmeyer. Em seguida, iniciaram os movimentos de vibração, rotação, translação e também movimentos aleatórios para os lados. Conforme o sistema recebia energia, o que foi indicado na fala dos participantes, o movimento dos estudantes tornou-se mais amplo e eles foram preenchendo outros espaços da sala, indicando o aumento do volume do sistema. Quando terminaram essa teatralização a professora fez alguns questionamentos a eles. A seguir, apresentamos um trecho da transcrição desse momento da aula.

Professora: Então vocês conseguiram colocar a expansão, o espaço, o giro, o deslocamento. Mas uma coisa faltou, não faltou não? O que faltou gente?

Helena: Faltou o fogo.

Professora: Faltou representar o quê?

Helena: O aumento das interações.

Professora: O aumento das interações. Isso! É como se você tivesse fazendo alguma coisa mais lenta e depois tem que fazer mais rápido. Está recebendo energia!

A professora ressaltou os aspectos do modelo cinético molecular contemplados na teatralização realizada, mas alertou para o aumento gradativo dos movimentos das partículas, já que os participantes da teatralização haviam se movimentado de forma constante durante toda a encenação. A teatralização permitiu que com o próprio corpo os estudantes explorassem e explicitassem o movimento das partículas. O fato de eles terem se movimentado é um indicativo de que tinham conhecimento do movimento que as partículas realizavam. No entanto eles não aceleraram esse movimento ao aumentar a energia do sistema. Logo após a socialização da teatralização a professora retomou a análise das representações registradas no quadro. A seguir um trecho da transcrição desse momento da aula.

Helena: É porque quando a gente imagina com uma imagem estática fica difícil. Na verdade, as moléculas ficam vibrando. E no gás, como o movimento é maior, elas precisam de mais espaço para vibrar.

Professora: Parênteses [professora faz o gesto de parênteses com as mãos]. Esse movimento está representado no modelo que vocês desenharam?

Estudantes: Não!

Professora: Não? Poderia estar?

Estudantes: Sim.

Professora: Como poderia?

Henrique: Setinha.

Professora: Vocês falaram de um aspecto que nós nem retratamos no primeiro, né? Vocês estão dizendo que o gás movimenta! Como eu retrato isso no meu modelo? Existe alguma maneira de retratar? Nós não estamos discutindo que é importante que o modelo tenha conexão com o fenômeno? Então eu preciso prestar atenção em alguns detalhes. O que vocês acham da sugestão da nossa colega [Helena]? A sugestão dela é colocar um negocinho tipo aquele ali [a professora aponta para o desenho de uma aspa no quadro]. Que negócio é esse? Uma aspa. Que representa que está agitando.

[...]

Helena: As partículas, elas começam a ter mais energia e se movimentam mais.

Professora: Elas se movimentarem mais quer dizer que já se movimentavam sem receber energia?

Estudantes: Sim.

Professora: Sim. Isso está representado? Então, olha só. Vocês concordam com isso? Todo mundo concorda com isso?

Estudantes: Sim.

Professora: O gás se movimentava antes do aquecimento?

Estudantes: Sim.

Professora: As partículas têm movimento. As partículas de gás têm movimento. Como eu posso representar isso ali [professora aponta para o quadro]? Vocês acham que o que está desenhado ali está suficientemente representado?

Estudantes: Não.

Professora: O que falta? Cada um vai até o seu desenho e reformula. Vê o que tem que mudar.

A professora destacou a relação entre a representação teatralizada e a desenhada na lousa valendo-se da linguagem como meio mediacional para que os estudantes entendessem melhor a representação. Helena chamou a atenção para as limitações da representação na forma de desenho, levando em conta que ela é estática.

A teatralização permitiu que os estudantes explorassem a representação do movimento das partículas, o que fez com que esse movimento e o seu aumento em função do aumento da energia do sistema, fossem inseridos no desenho. Como a estudante Helena foi capaz de elucidar, cada representação tem suas próprias restrições, e ao navegarem entre diferentes modos ou diferentes representações, os estudantes entraram em contato com o que Tytler et al. (2013TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Dordrecht: Springer, 2013.) denominam de restrições produtivas. Assim sendo, uma descrição que abrange todos os aspectos de um conceito ou fenômeno, demanda a utilização de diferentes representações, e cada representação é capaz de explicar determinadas características do conceito/fenômeno tratado. A figura 9 mostra uma das representações reelaboradas pelos estudantes:

Figura 9
Reelaboração da representação

Nessa reelaboração os estudantes usaram aspas simples para representar o movimento das partículas gasosas em temperatura ambiente e aspas duplas para representar o movimento das partículas quando o sistema foi aquecido. Dessa forma eles acrescentaram à representação estática uma propriedade percebida durante a teatralização. Também nesse caso observamos que a representação informal ou incorporada auxiliou na construção da representação formal. O desafio representacional proporcionou um debate no qual vários aspectos da representação foram discutidos pelos pares.

A partir da análise realizada, argumentamos que as representações informais subsidiaram a construção das representações formais e possibilitaram uma melhor compreensão do fenômeno ou conceito estudado. Assim como Tytler et al. (2013TYTLER, R.; PRAIN, V.; HUBBER, P.; WALDRIP, B. (ed.). Constructing representations to learn in science. Dordrecht: Springer, 2013.), defendemos que as representações sejam o centro das ações nas atividades de ensino, considerando que cada modo de representar traz suas próprias affordances, uma vez que inserem abstrações nem sempre percebidas pelos estudantes nas representações formais.

Considerações finais

A presente pesquisa teve como objetivo investigar tanto o uso de representações que chamamos de informais em uma abordagem de ensino baseada na proposição, justificação, negociação e reelaboração de representações centradas no estudante, como a contribuição dessas representações para os estudantes entenderem melhor o conceito ou fenômeno que estava sendo estudado. Nos dois casos analisados observamos que as representações informais foram fundamentais para que os estudantes pudessem entender melhor alguns aspectos envolvidos nas representações formais.

O uso de balões para desenvolver o conteúdo de Geometria Molecular na turma de nono ano propiciou aos estudantes o entendimento das forças de repulsão entre os pares de elétrons que formam as ligações e, com isso, eles puderam perceber a organização espacial dos átomos em uma molécula. A geometria da molécula de metano (CH4), por exemplo, é complexa para estudantes do Ensino Fundamental. No entanto, com os desafios representacionais, eles demonstraram mais autonomia e segurança em suas ações e foram capazes de retomar ideias e argumentos que permearam os diálogos ao longo das aulas relacionadas às representações. Notamos indícios de que a representação de Lewis (formal) não foi suficiente para avançar no conhecimento, o que só foi possível com as representações informais, conforme Prain e Waldrip (2006)PRAIN, V.; WALDRIP, B. An exploratory study of teachers’ and students’ use of multi-modal representations of concepts in primary Science. International Journal of Science Education, Abingdon, UK, v. 28, n. 15, p. 1843-1866, 2006. haviam sugerido.

Ao explorar o Modelo Cinético Molecular na turma de primeiro ano a representação das partículas com o corpo - que chamamos de teatralização - foi usada para que a ideia de movimento das partículas fosse construída. Os desafios representacionais propostos no experimento de aquecimento de um sistema (erlenmeyer com balão acoplado) evidenciam que as representações estáticas, utilizando desenhos, não foram capazes de elucidar aspectos importantes do modelo cinético molecular, como o movimento das partículas e o aumento gradativo desse movimento em função da elevação da temperatura do sistema. O uso da teatralização foi fundamental para que os estudantes analisassem esses aspectos, além de permitir a construção de representações mais coerentes com o modelo cinético molecular para o sistema em questão.

Nesses dois casos, as representações que denominados de informais propiciaram um avanço no processo de aprender tanto em relação às representações formais quanto a alguns pontos específicos do que estava sendo ensinado. Com isso, defendemos que as representações informais foram fundamentais no processo de compreensão de aspectos das representações formais, que carregam uma grande bagagem conceitual e, consequentemente, uma maior abstração. Os balões de festa e a teatralização contribuíram significativamente para o entendimento das representações comumente usadas em aulas de Ciências e de Química. Dessa forma o entendimento dos conceitos e fenômenos investigados pelos estudantes foi significativo, uma vez que as representações informais abordaram outras affordances da representação. Desse modo, além de usar outros modos semióticos capazes de contribuir com o processo de compreensão do conceito ou fenômeno, as representações informais auxiliaram na identificação de aspectos das representações formais, bem como no processo de construção de significado de um conceito ou fenômeno. As interações verbais entre os sujeitos participantes e as interações desses sujeitos com as diferentes representações reforçam a ideia de que é importante tratar as representações como parte da compreensão conceitual.

A partir dos resultados obtidos com esta pesquisa, defendemos que os estudos da multimodalidade e das representações multimodais podem contribuir para a superação ou para um melhor entendimento do que sejam obstáculos epistemológicos, uma vez que na performance com o corpo (teatralização), os átomos foram representados por pessoas, sem que em nenhum momento os entes representados tenham manifestado 'vontade', 'desejo' ou algo similar.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela concessão de bolsa de doutoramento para a primeira autora e à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) pelo financiamento do projeto de pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2023
  • Aceito
    14 Jul 2023
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