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REFLETINDO SOBRE O NOVO

Measuring quality of life in dysphonic patients: a systematic review of content development in patient-reported outcomes measures

Comentado por: Mara Behlau; Glaucya Madazio

Centro de Estudos da Voz - CEV - São Paulo (SP), Brasil; Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Glaucya Madazio R. Machado Bittencourt, 361, 10º andar São Paulo (SP), Brasil CEP 04044-905 E-mail: glaumadazio@uol.com.br

O objetivo do trabalho apresentado foi revisar os protocolos de autoavaliação de resultados de tratamento utilizados em populações disfônicas para compreender se os procedimentos usados contemplam os padrões de desenvolvimento de conteúdo e avaliação psicométrica. Foi realizada uma revisão sistemática das databases Medline, Cumulative Index to Nursing & Allied Health, e Health and Psychosocial Instruments, utilizando-se as palavras "voz", "disfonia", "qualidade de vida", "instrumento", "escala", "escore", "instrumento de pesquisa", "inventário" e "medidas de autoavaliação de tratamento" como palavras-chave.

Distúrbios de voz ocorrem em 3 a 9% da população e provocam efeitos profundos na qualidade de vida destes pacientes. Para quantificar este impacto, assim como avaliar a evolução do paciente e guiar as decisões terapêuticas, numerosos protocolos de autoavaliação têm sido desenvolvidos. Tais questionários ganharam rápida popularidade clínica e científica. Contudo, os aspectos relacionados ao desenvolvimento de um instrumento receberam maior atenção apenas nos últimos 15 anos, culminando no documento do SAC (Scientific Advisory Committee), do Medical Outcome Trust (2002).

A elaboração de um protocolo envolve três estágios, sendo o primeiro o desenvolvimento do modelo conceitual e itens do questionário, o segundo a realização de testes em campo utilizando um grande número de pacientes e o terceiro, um estágio final onde deve ser realizada a avaliação psicométrica do instrumento em sua forma definitiva. No primeiro estágio são utilizados métodos qualitativos que incluem entrevistas com pacientes, grupos focais e revisão de literatura como fontes primárias de informação. O principal objetivo deste estágio é avaliar de forma compreensiva qualquer avaliação pré-existente, em termos de conteúdo e testes psicométricos, para se verificar a qualidade das medidas. Quando se verifica que um protocolo cientificamente desenvolvido e clinicamente significativo não existe, julga-se haver uma área promissora para o desenvolvimento de um novo instrumento baseado em medidas conhecidas. Faz-se, então, uma lista de itens aplicada a um grupo pequeno de pacientes para se reduzir a ambiguidade das afirmações, confirmar se o conteúdo é apropriado e determinar a aceitabilidade e o tempo requerido para se completar o instrumento. Já no segundo estágio, que envolve testes de campo em um grande número de pacientes, os resultados devem permitir revisão e redução de itens, por serem observadas redundâncias, por exemplo. Nesta etapa, uma análise fatorial ajuda a refinar os itens e a perceber de que forma eles refletem atitudes e habilidades específicas. No terceiro estágio, o questionário é novamente administrado a uma grande população de pacientes para se determinar a aceitabilidade da qualidade dos dados, analisando-se a distribuição dos escores, a consistência interna, confiabilidade, correlação entre os itens, teste-reteste, validade interna, validade de comparação a outros questionários e a sensibilidade para se detectar mudanças clínicas após tratamentos. Para os clínicos e pesquisadores que buscam protocolos de autoavaliação para pacientes disfônicos, é importante perceber os pontos fortes e fracos de cada um dos questionários avaliados. Embora se considere que o desenvolvimento dos dois protocolos pioneiros na área de voz, IDV e QVV, tivesse sido uma novidade e uma abordagem progressiva para avaliação de pacientes com problemas de voz, tais instrumentos foram criados como resposta a uma era devotada à "análise objetiva" e sem grande controle dos critérios que foram, na verdade, organizados posteriormente.

Foram identificados e analisados tanto os questionários de autoavaliação como aqueles direcionados aos pais de pacientes, para medir qualidade de vida associada à problemas de voz, avaliados de acordo com a orientação para o desenvolvimento e avaliação do SAC do Medical Outcome Trust. Nove protocolos preencheram os critérios de inclusão e a qualidade destes questionários foi variável, com respeito ao desenvolvimento do instrumento, sendo que nenhum deles preencheu todos os critérios atuais recomendados. Dos nove questionários, o VoiSS foi aquele submetido ao mais rigoroso processo de desenvolvimento. Além disso, muitos instrumentos foram derivados para permitir sua aplicação em um respondente substituto (pai, cônjuge ou cuidador - proxy), o que frequentemente representa um fracasso na tentativa de se abordar aspectos da qualidade de vida específicos à população-alvo. O desenvolvimento do instrumento para análise do paciente disfônico é frequentemente falho e a revisão realizada sugere que os déficits nas propriedades psicométricas dos instrumentos sejam o resultado pelo menos parcial de deficiências em seu processo de desenvolvimento. Sugere-se ainda o desenvolvimento de um novo protocolo com adesão total aos padrões internacionais para assegurar que os clínicos estejam utilizando as variáveis mais relevantes para o paciente com problemas de voz.

A revisão sistemática foi feita apenas na literatura de língua inglesa e revelou nove instrumentos, cujas características estão apontadas a seguir:

- Voice Handicap Index - VHI: uma lista inicial de itens foi desenvolvida a partir dos prontuários de pacientes disfônicos de um período de sete anos. Os itens foram agrupados em três domínios: funcional (25 itens), emocional (31 itens) e físico (29 itens). Sessenta e cinco pacientes disfônicos completaram a versão preliminar, circulando uma das cinco respostas de uma escala de cinco pontos, com intervalos iguais. A lista inicial foi reduzida por meio de análise da confiabilidade da consistência interna, da eliminação das respostas relacionadas ao sexo e por redundância de conteúdo. Além disso, se 50% não respondiam a um item particular, ele foi excluído da versão final. A versão final foi apresentada a 63 pacientes adultos.

- Voice Handicap Index 10 - VHI-10: em 2004, um outro grupo de autores submeteu o VHI original a um processo de análise fatorial para redução de itens, que resultou no VHI-10. Foram identificadas quais questões apresentavam as maiores diferenças entre 159 indivíduos normais e 100 disfônicos. Além disso, um grupo de clínicos foi solicitado a selecionar os dez itens clinicamente mais relevantes para a avaliação da desvantagem vocal e sensibilidade de resposta ao tratamento. Os dez itens finais foram avaliados usando uma análise pré e pós-tratamento.

- Voice-Related Quality of Life - V-RQOL: os autores do V-RQOL utilizaram entrevistas informais de pacientes e a opinião de clínicos para o desenvolvimento do instrumento, sem nenhuma informação adicional sobre o processo de desenvolvimento. Uma versão original foi utilizada para análise piloto de 20 pacientes, avaliando-se o conteúdo e a forma das frases. O instrumento revisado foi aplicado em 109 novos pacientes disfônicos e 21 indivíduos sem disfonia. Três questões mostraram uma baixa correlação item-total, sendo que duas delas foram mantidas por apresentarem elevada validade de face. Uma questão adicional, relacionada à dificuldade do uso de telefone no trabalho, foi omitida da versão final.

- Voice Outcome Survey - VOS: O protocolo VOS foi construído por um painel de especialistas (médicos e fonoaudiólogos), com a colaboração de pacientes com paralisia de prega vocal. Uma lista original de itens foi selecionada baseada na frequência do sintoma e sua importância. Depois de testes iniciais, foi criado um protocolo piloto e itens adicionais foram inseridos pelos autores para avaliar as limitações dos pacientes em atividades diárias, sociais ou relacionadas ao trabalho, que exigem vocalização. Com a aplicação do protocolo piloto, foi sugerida a introdução de duas questões identificadas como sendo relevantes para pacientes com paralisia de prega vocal: fazer força enquanto fala e sinais de aspiração. Após a análise psicométrica, dois itens foram removidos do piloto por terem sido inadequados na análise de confiabilidade e teste-reteste.

- Voice Activity and Participation Profile - VAPP: foram utilizadas entrevistas de 45 indivíduos disfônicos e dados oferecidos por dez fonoaudiólogos para a construção do instrumento. Os sujeitos foram solicitados a fazerem uma lista de todas as situações de vida que eles percebiam ter sido afetadas negativamente pela disfonia. Para abordar a validade de conteúdo, três grupos (fonoaudiólogos, estudantes de fonoaudiologia e pacientes com disfonia) comentaram sobre o quão bem as questões descreviam os aspectos relacionados à disfonia, assim como em relação à clareza da formulação dos itens. Quarenta sujeitos com disfonia e 40 controles responderam ao questionário inicial. O instrumento foi então dividido em cinco domínios: autopercepção do problema vocal, aspectos sociais, emocionais, de trabalho e comunicação diária.

- Voice Symptom Scale - VoiSS: o desenvolvimento desta escala teve três etapas. Na primeira, 133 pacientes relataram prospectivamente 467 dificuldades associadas ao seu problema de voz e um instrumento preliminar foi desenvolvido baseado nestes aspectos. O questionário piloto foi administrado a 168 pacientes com disfonia e foi utilizado um processo de redução de itens. Como etapa final, 180 novos pacientes com disfonia responderam ao VoiSS em sua versão refinada. A validade de conteúdo foi determinada utilizando-se 13 itens do VHI. Este processo resultou em um instrumento de 43 itens que foi posteriormente refinado após análise de estrutura psicométrica, produzindo um instrumento final com 30 itens.

- Pediatric Voice Outcome Survey - pVOS: esse instrumento tem apenas quatro itens, foi derivado do VOS e permite administração aos pais. Foi realizada uma análise fatorial e de componente principal para avaliar a estrutura interna e o desenho do instrumento em relação à sua aplicação para uma população pediátrica. Cento e oito cuidadores de crianças ou adolescentes traqueostomizados participaram do estudo e responderam ao questionário. A análise de confiabilidade e análise fatorial apoiaram a estrutura global do instrumento, eliminando-se um item relacionado à deglutição. Para ampliar a aplicabilidade do pVOS em crianças com outros problemas vocais, o instrumento foi incluído em outro estudo com 385 pais de crianças entre 2 e 18 anos de idade com uma grande variedade de condições de saúde, tais como insuficiência velofaríngea, estenose subglótica, nódulos de pregas vocais, laringite por refluxo, paralisia de prega vocal, apnéia obstrutiva do sono, hipertrofia adenotonsilar, otite média e sinusite.

- Pediatric Voice-Related Quality of Life - pV-RQOL: o pV-RQOL foi adaptado do V-RQOL para permitir a administração aos pais. Os dez itens do QVV-p foram administrados junto com o pVOS a 104 cuidadores de crianças entre 2 e 18 anos de idade com uma variedade de problemas otorrinolaringológicos, incluindo insuficiência velofaríngea, disfonia, hipertrofia adenotonsilar, otite média e sinusite. Este estudo preliminar que o pV-RQOL é um instrumento válido e que se correlaciona fortemente com o pVOS.

- Pediatric Voice Handicap Index - pVHI: o pVHI foi adaptado do VHI. Inicialmente foram realizadas modificações na formulação das perguntas, para contemplar as respostas dos pais em relação ao problema de voz de seus filhos. As questões irrelevantes à população pediátrica foram eliminadas e o resultado final foi um protocolo de 23 itens. O pVHI foi administrado em conjunto a outro questionário com dez questões abertas relacionadas ao impacto da qualidade de voz da criança na comunicação como um todo, em seu desenvolvimento, educação, vida social e circunstâncias familiares. A análise psicométrica revelou que o pVHI era um instrumento válido e confiável.

Como principais comentários, vale a pena destacar que o VHI foi o primeiro questionário introduzido, em 1997, para se avaliar especificamente o impacto de uma disfonia na qualidade de vida durante um período no qual a tendência era utilizar instrumentação pesada na análise vocal. Desde então, vários outros instrumentos foram descritos na literatura, preenchendo um maior ou menor número de pré-requisitos essenciais. As principais deficiências estão relacionadas ao desenvolvimento do questionário, principalmente na geração da lista inicial dos itens e no processo de redução do número de afirmações. Tais déficits, mesmo nos instrumentos considerados populares, podem ser a fonte de limitações na validade psicométrica e potencialmente confundir os dados clínicos observados.

Do momento em que a validade psicométrica dos instrumentos já havia sido investigada, o foco do presente artigo foi analisar o desenvolvimento de seu conteúdo. O processo de desenvolvimento do conteúdo de um teste requer que a lista de itens seja gerada a partir da entrevista de pacientes, análise da literatura e opinião de especialistas. Dos nove questionários analisados, apenas cinco usaram entrevistas com pacientes; dois desses foram desenvolvidos a partir de anamneses analisadas retrospectivamente e três utilizaram primária e unicamente a opinião de especialistas. Os dados sobre quantos pacientes foram entrevistados no início do processo geralmente foi omitido das publicações, sendo que a VoiSS é o único instrumento com estes dados. A maior parte dos instrumentos usou poucas entrevistas e não discutiu adequadamente a heterogeneidade da população de disfônicos. No que diz respeito à redução dos itens, o VHI, V-RQOL, VOS e VoiSS parecem preencher os critérios. Dos restantes, cinco usaram a opinião de especialistas como critério para reduzir os itens. Estes déficits provavelmente são a explicação de medidas psicométricas questionáveis. Um aspecto adicional é que parece haver uma tendência de se modificar os instrumentos que já existem para se aplicar a outras populações de pacientes. A manipulação de instrumentos para outras populações, e até mesmo para serem utilizados com informantes substitutos, viola os critérios fundamentais para o desenvolvimento do mesmo, o que compromete todos os questionários pediátricos, já que foram desenvolvidos a partir da versão para o adulto. Questionários de qualidade de vida pediátricos devem necessariamente incluir os domínios que são importantes para as crianças e questionários desenvolvidos para adultos podem falhar na avaliação de aspectos relevantes à população pediátrica. Além disso, não é claro como estes instrumentos capturam aspectos da qualidade de vida específicos para esta população.

Um outro aspecto é que modificações na linguagem têm sido utilizadas para adaptar o instrumento a um subgrupo específico de pacientes disfônicos, como cantores e cônjuges. Para completar, um bom número de questionários foram traduzidos em outras línguas sem validação linguística apropriada. Finalmente, nenhum destes protocolos utilizou métodos psicométricos mais contemporâneos, como a análise RASCH e a Teoria da Resposta ao Item, que é uma modelagem estatística utilizada em medidas psicométricas, principalmente na área de avaliação de habilidades e conhecimentos. Essas abordagens para o desenvolvimento de escalas e redução de itens aumenta a utilidade clínica, pois oferece uma atenção individual ao paciente e avalia aspectos importantes da qualidade de vida que os disfônicos vivenciam. Embora o uso da análise RASCH e da Teoria da Resposta ao Item tenham sido sugeridas para população disfônica, parece haver pouco progresso nesta direção.

Em resumo, embora clínicos e pesquisadores tenham melhorado sua capacidade de detectar a progressão de uma doença e a efetividade de tratamentos com o uso de instrumentos que também permitem tomar decisões terapêuticas embasadas, infelizmente o resultado desta revisão revelou que nenhum dos instrumentos de qualidade de vida utilizados atualmente na área de voz contemplam os critérios descritos como essenciais para o seu desenvolvimento. Este artigo oferece um ímpeto potencial para a criação de uma nova métrica que respeite rigorosamente as recomendações para o desenvolvimento de instrumentos com a incorporação de novos métodos psicométricos para melhorar a utilidade clínica. Deve-se ainda esclarecer que não se sugere eliminar o uso de medidas de autoavaliação vocal, pois oferecem uma dimensão única no diagnóstico do paciente e na determinação da conduta clínica, mas que se compreendam as limitações inerentes às deficiências no processo de desenvolvimento desses protocolos.

Branski RC, Cukier-Blaj S, Pusic A, Cano SJ, Klassen A, Mener D, Patel S, Kraus DH. Measuring quality of life in dysphonic patients: a systematic review of content development in patient-reported outcomes measures. J Voice. 2010;24(2):193-8.

  • Endereço para correspondência:
    Glaucya Madazio
    R. Machado Bittencourt, 361, 10º andar
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011
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