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Questionário sobre dificuldades comunicativas percebidas por pais de crianças do espectro do autismo

Resumos

OBJETIVO: Elaborar um questionário para o levantamento de dificuldades comunicativas percebidas por pais e/ou cuidadores de crianças do espectro do autismo em relação a seus filhos. MÉTODOS: Os aspectos específicos abordados no questionário foram identificados a partir da literatura e da experiência clínica das autoras em dois serviços especializados. As questões foram organizadas segundo diferentes domínios e as respostas registradas numa escala tipo Likert. Foi realizado um estudo piloto com 40 pais, 20 pais de crianças do espectro do autismo e 20 pais de crianças sem queixas de linguagem, como forma de verificar a aplicabilidade do questionário construído e sua utilidade na identificação de dificuldades específicas da população alvo. Foi calculado o nível de concordância das questões e os resultados dos grupos foram comparados entre si (teste t Student). RESULTADOS: O questionário foi desenvolvido de maneira a abranger aspectos fundamentais para o relacionamento interpessoal, tanto no âmbito comunicativo quanto social. Foi dividido em 24 questões fechadas que abrangem quatro domínios; e uma questão aberta, com espaço para que os pais relatassem algo relevante e que não tenha sido perguntado. O estudo possibilitou testar a compreensão do instrumento e a análise estatística indicou que 19 questões apresentaram diferença. CONCLUSÃO: O questionário elaborado identificou diferenças na percepção e atitude de pais de crianças do espectro do autismo e de crianças sem queixa de linguagem, em relação às dificuldades de comunicação com seus filhos. Dessa forma, mostrou-se útil para o levantamento dessas dificuldades em um grupo maior de indivíduos.

Transtorno autístico; Fonoaudiologia; Comunicação; Linguagem; Família


PURPOSE: To develop a questionnaire to the assessment of communicative difficulties perceived by parents and/or caregivers of children on the autism spectrum in relation to their children. METHODS: The specific aspects addressed by the questionnaire derived from the literature and from the author's clinical experience in specialized services. The questions were organized according to different domains and responses registered on a Likert-type scale. It was performed a pilot study with 40 parents, 20 parents of individuals with Autism Spectrum Disorder and 20 parents of children without complaints of language as a way to verify the applicability of the questionnaire construction and their usefulness in identifying the specific difficulties of the target population. Was calculated the level of agreement of the issues and the results of the groups were compared (Student T Test). RESULTS: The questionnaire was developed in order to cover the fundamental aspects of interpersonal relationships, both within the communicative and social domains. It was divided into 24 multiple choice questions covering four areas and an open question, with space to parents report something they consider important and that has not been asked. The study allowed testing the understanding of the instrument and the statistical analysis indicated that 19 questions showed difference. CONCLUSION: The questionnaire identified differences in perception and attitude of parents of children with autism spectrum disorders and children without complaints of language in relation to communication difficulties with their children. Thus, it was proved useful to assess these difficulties in a larger group of individuals.

Autistic disorder; Speech language and hearing sciences; Communication; Language; Family


ARTIGO ORIGINAL

Questionário sobre dificuldades comunicativas percebidas por pais de crianças do espectro do autismo

Juliana Izidro BalestroI; Fernanda Dreux Miranda FernandesII

IPrograma de Pós Graduação (Mestrado) em Ciência da Reabilitação Área de Concentração Comunicação Humana, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil

IIDepartamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Juliana Izidro Balestro. R. Adão Pinheiro da Silva, 385, Ipanema Porto Alegre (RS), Brasil, CEP: 91751-030. E-mail: jubalestro@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Elaborar um questionário para o levantamento de dificuldades comunicativas percebidas por pais e/ou cuidadores de crianças do espectro do autismo em relação a seus filhos.

MÉTODOS: Os aspectos específicos abordados no questionário foram identificados a partir da literatura e da experiência clínica das autoras em dois serviços especializados. As questões foram organizadas segundo diferentes domínios e as respostas registradas numa escala tipo Likert. Foi realizado um estudo piloto com 40 pais, 20 pais de crianças do espectro do autismo e 20 pais de crianças sem queixas de linguagem, como forma de verificar a aplicabilidade do questionário construído e sua utilidade na identificação de dificuldades específicas da população alvo. Foi calculado o nível de concordância das questões e os resultados dos grupos foram comparados entre si (teste t Student).

RESULTADOS: O questionário foi desenvolvido de maneira a abranger aspectos fundamentais para o relacionamento interpessoal, tanto no âmbito comunicativo quanto social. Foi dividido em 24 questões fechadas que abrangem quatro domínios; e uma questão aberta, com espaço para que os pais relatassem algo relevante e que não tenha sido perguntado. O estudo possibilitou testar a compreensão do instrumento e a análise estatística indicou que 19 questões apresentaram diferença.

CONCLUSÃO: O questionário elaborado identificou diferenças na percepção e atitude de pais de crianças do espectro do autismo e de crianças sem queixa de linguagem, em relação às dificuldades de comunicação com seus filhos. Dessa forma, mostrou-se útil para o levantamento dessas dificuldades em um grupo maior de indivíduos.

Descritores: Transtorno autístico; Fonoaudiologia; Comunicação; Linguagem; Família

INTRODUÇÃO

A importância da percepção, da atitude e do envolvimento dos pais em relação ao desenvolvimento de seus filhos tem sido mencionada por alguns estudos nos últimos anos(1,2). Um deles aponta para uma relação direta entre a qualidade da relação pais/filhos e a identificação de relações sociais, comportamentais e comunicativas satisfatórias(1).

As alterações de comunicação em indivíduos do espectro do autismo incluem, desde a ausência de fala em crianças com mais de três anos, a presença de características peculiares, como ecolalia, inversão pronominal, discurso descontextualizado, ausência de expressão facial, até o desaparecimento repentino da fala(2-4). Essas alterações aparecem na literatura como uma das primeiras preocupações dos pais dessas crianças(3).

Outra questão fundamental nos distúrbios do espectro do autismo é a percepção dos pais com relação à aceitação de seus filhos por outras pessoas. Estudos revelam que a estigmatização pode levar à depressão, à auto- estima reduzida e ao isolamento social. Neste sentido, o impacto gerado no contexto familiar pode acarretar efeitos negativos para o processo comunicativo(5,6).

Um levantamento de artigos(7) publicados nos últimos cinco anos, em três periódicos dirigidos a pesquisas sobre autismo (Journal of Autism and Developmental Disorders, Focus on Autism and other Developmental Disorders e Autism) evidenciou que o número de estudos envolvendo famílias não corresponde ao que seria esperado quando se considera o impacto da criança autista na dinâmica familiar ou a importância da participação familiar para o diagnóstico e os processos de intervenção e educação. Algumas temáticas são mais frequentes: as dificuldades emocionais, os grupos de apoio e qualidade de vida, a caracterização das famílias e dos familiares, a perspectiva dos pais a respeito dos filhos e os processos de intervenção. Mesmo considerando que a maioria destes estudos aborda ou compara mais de uma temática, o número de trabalhos envolvendo processos de intervenção com famílias ou que incluam a participação sistemática delas é muito pequeno(7) .

Algumas propostas de intervenção têm relatado sucesso a partir de orientações dirigidas ao aperfeiçoamento da relação pais-filhos(8,9) no sentido da ampliação das habilidades comunicativas(10) e da redução dos comportamentos inadequados(11).

Uma pesquisa recente sobre orientação a mães, que teve como objetivo investigar a interferência de orientações sistematizadas e específicas, realizadas em curtos períodos de tempo, com possibilidades de retorno, verificou que essas orientações contribuem, não só para o ambiente comunicativo da criança autista, mas também para o entendimento familiar a respeito das habilidades e dificuldades de cada criança(12).

A maior parte dos programas de terapia documenta o valor de ter pais e outros membros da família envolvidos em práticas de intervenção(1,2). Tais questões têm sido amplamente abordadas em outros países, tanto que se pode encontrar diversos manuais de orientações a pais, publicados em outras línguas(13,14). Nota-se, entretanto, que esses manuais não referem estudos prévios que identifiquem as dificuldades percebidas pelos pais, para as quais as orientações seriam dirigidas. Os mesmos estão ancorados nos sintomas que caracterizam o quadro, sem menção à sua heterogeneidade(14).

Com isto, permanecem inúmeras questões em aberto sobre o domínio da comunicação. A ideia central é que, a partir da percepção dos pais, possa-se atuar e compreender as questões relevantes quanto às dificuldades de comunicação de cada caso, considerando que a atitude e interpretação dos interlocutores frente aos comportamentos não somente das crianças, mas também das outras pessoas, tenha influência na comunicação, uma vez que a criança é vista com sua singularidade e não com a recorrência dos sintomas descritos no espectro do autismo(15,16).

Assim, observa-se a importância de instrumentos que investiguem a questão da percepção e atitude paternas em relação às dificuldades comunicativas com seus filhos(as) autistas.

Para o planejamento de um inquérito, alguns autores(17,18) ressaltam que os serviços de saúde necessitam saber as necessidades da população à qual suas ações serão direcionadas. Recomendam ao pesquisador a realização de uma pesquisa prévia e a elaboração de questionário apenas se este representar um real avanço em relação aos protocolos já existentes, abordando aspectos importantes não contemplados anteriormente. Destaca-se o papel fundamental do questionário, que tem sido considerado ponto chave na obtenção precisa de informações de qualidade(18).

Com isto, o objetivo deste estudo foi desenvolver um questionário para o levantamento das dificuldades percebidas por pais e/ou cuidadores de crianças do espectro do autismo na comunicação com seus filhos, que pudesse ser aplicado a um número significativo de indivíduos.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Esta pesquisa foi encaminhada à Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e aprovada sob protocolo número 0687/09. Todos os participantes do estudo piloto assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Construção do instrumento

Sabe-se que mesmo com os recentes avanços do diagnóstico, os dados clínicos são o padrão-ouro na identificação dos indivíduos autistas, sendo a experiência do profissional, determinante para a compreensão do quadro clínico(19-21). Com isso, a identificação das questões e dos temas abordados teve como critério principal a experiência clínica das autoras. Essa experiência fundamentou os aspectos específicos que foram identificados em revisão da literatura dos últimos cinco anos, a respeito de questões familiares (comunicação, estresse e dificuldades emocionais) na presença de crianças do espectro do autismo(7).

O formato do instrumento foi baseado em um estudo(22) sobre a percepção dos pais de crianças com dificuldades de linguagem, envolvendo questões de estigmatização/rotulação por eles mesmos, por outras crianças, por outros adultos e por membros da família . Esses temas foram estruturados em blocos de questões fechadas.

Para a elaboração das questões, foram levadas em consideração as diretrizes propostas por autores(17,23) que preconizam três regras básicas na criação de um questionário, são elas:

- não formular perguntas antes de estudar as questões (problemas e objetivos) da pesquisa;

- manter as questões da pesquisa sempre em foco;

- fazer a pergunta "porque eu estou fazendo essa pergunta?" e respondê-la na perspectiva da resolução do problema central.

Nesse sentido, o primeiro passo para a elaboração do questionário foi a identificação dos aspectos específicos a serem abordados.

A principal preocupação foi a identificação das percepções paternas a respeito da qualidade de sua comunicação com seus filhos, independentemente das dificuldades concretas manifestadas pela criança, seu diagnóstico e características objetivas. Dessa forma, o questionário não objetivou a descrição da comunicação da criança propriamente dita, mas teve seu foco completamente direcionado à perspectiva do cuidador, a respeito do impacto das dificuldades comunicativas, nas diversas situações do relacionamento social.

Para esse estudo foram assumidos fundamentos da escala Likert para a estruturação formal do questionário(24). Segundo essa proposta é possível especificar o nível de concordância ou discordância com uma afirmação. Adotou-se aqui o formato de quatro itens escalonados, iniciando pelas alternativas de concordo completamente e finalizando com discordo completamente, sem a opção indiferente, conforme a proposta Likert original. Neste estudo, foi adotada a seguinte escala:

- Concordo completamente (CC) – quando há concordância dominante;

- Concordo (C) – quando há concordância predominante, porém nem todas as vezes;

- Discordo (D) – quando há discordância predominante, porém nem todas as vezes;

- Discordo completamente (DC) – quando há discordância dominante.

Esse formato tem sido usado com modificações em diversos estudos na área da saúde(25,26).

No cabeçalho foram inseridas informações sociodemográficas, como região em que reside, ordem de nascimento, gênero, idade e diagnóstico da criança, idade e grau de instrução do informante.

Aplicação do instrumento no estudo piloto

Como forma de verificar a aplicabilidade do questionário construído e sua utilidade na identificação de dificuldades específicas de pais de indivíduos do espectro do autismo, aplicou-se o instrumento em duas populações.

O questionário foi aplicado em 20 pais e/ou cuidadores de crianças com diagnóstico inserido no espectro do autismo, com idades entre 2 e 10 anos, cujos filhos eram atendidos em um serviço de fonoaudiologia especializado, e a 20 pais e/ou cuidadores de crianças sem queixa ou história de alteração de linguagem, com idades entre 1 e 3 anos. Os pais deste grupo foram abordados em local público da cidade de São Paulo e foram questionados sobre a presença, ou não, de queixas referentes ao desenvolvimento de linguagem. Foi perguntado, especificamente, sobre as habilidades funcionais da comunicação da criança e a possível presença de um atraso de fala ou de linguagem. No caso da ocorrência de queixas, as examinadoras sugeriram que a criança fosse levada a um serviço especializado e o questionário não foi aplicado. As autoras buscaram examinar a possibilidade de usar o questionário em um amplo espectro de indivíduos, oriundos de diferentes níveis culturais e educacionais. Para isso, parte da coleta foi realizada em local público, sem nenhum critério prévio de seleção sociodemográfica.

O propósito do estudo piloto foi testar o quão compreensível as questões eram, bem como a ordem e distribuição das mesmas; e, eventualmente modificar qualquer termo ou sentença que pudesse ser de difícil compreensão. Para evitar interferências das habilidades de letramento dos inquiridos, buscando a garantia da clareza e do entendimento das questões, o protocolo foi lido pelo fonoaudiólogo, em entrevista individual. Para este estudo considerou-se cuidador quem exerce a função paterna/materna na ausência destes. No caso do respondente ser o cuidador, o fonoaudiólogo lia as questões fazendo referência ao nome da criança em substituição à expressão "seu filho/a".

As respostas às questões foram analisadas a partir do nível de concordância (concordo e concordo completamente), portanto, as respostas de discordância não foram consideradas.

Para comparar as respostas dos pais dos dois grupos foi aplicado o teste t de Student, presumindo variâncias diferentes. O nível de significância adotado foi de 0,05 (5%).

Todas as questões podem ser visualizadas no Quadro 1. Entretanto, a questão 25, apesar de ser aberta e, por isso diferente das demais, não é apresentada.


RESULTADOS

Com a identificação dos aspectos abordados definidos, o questionário foi dividido em quatro domínios. O Quadro 1 apresenta o tema das questões e a divisão do conteúdo por domínios.

O primeiro domínio – referente à impressão dos pais e/ou cuidadores sobre eles próprios em relação a seus filhos – contempla um número maior de questões por abranger especificamente o tema do perfil comunicativo e social dos pais e/ou cuidadores em relação a seus filhos, sob o seu próprio ponto de vista. Por ser uma das propostas deste estudo, optou-se por dividi-lo em 12 questões, sendo oito comunicativas e quatro sociais, compondo 50% do total das questões.

Os outros três domínios – a percepção dos pais em relação à aceitação das pessoas para com seus filhos; a atitude dos pais e/ou cuidadores com seus filhos e a impressão dos pais e/ou cuidadores em relação aos seus filhos – foram divididos em dois grupos de questões, sendo duas comunicativas e duas sociais em cada domínio.

Assim, o questionário abrange 25 questões, 24 fechadas, contemplando os quatro domínios, e uma aberta, onde há espaço para que os pais e/ou cuidadores relatem algo relevante para eles e que não tenha sido perguntado.

Com isso, considerou-se que a questão de número 25 pode ser de grande valia para o manejo terapêutico, pois é uma questão aberta, em que o próprio pai e/ou cuidador, diante de tudo o que lhe foi indagado, seleciona ainda o que considera mais relevante relatar ou discorrer com maior detalhe.

As questões foram elaboradas e distribuídas de forma a equilibrar os temas propostos, e sua ordem de distribuição no corpo do questionário buscou intercalar uma questão do primeiro domínio com as demais (Anexo 1 Anexo 1 ).

A Tabela 1 mostra os dados demográficos dos dois grupos participantes.

Os participantes não apresentaram dificuldades para responder a qualquer item do questionário e, portanto, não sugeriram nenhuma alteração.

A Tabela 2 mostra os dados de estatística descritiva e inferencial referente à comparação entre os dois grupos de cuidadores.

Os grupos foram comparados em relação ao nível de concordância de cada questão. A análise inferencial evidenciou diferença em 19 das 24 questões, exceto nas questões 7, 10, 12, 13 e 24. Nessa análise preliminar as respostas à questão 25 (aberta) não foram analisadas.

DISCUSSÃO

O questionário elaborado é um instrumento de coleta de informações para obter o perfil do estilo comunicativo de cada díade e/ou família, e não um teste que visa alcançar um resultado e incentivar determinada reação por meio de perguntas. Foi construído de forma a abordar informações pessoais e questões gerais envolvidas no espectro do autismo.

Alguns estudos sugerem que, para obter a melhor compreensão da visão paterna a respeito do processo comunicativo, é necessário que haja valorização do papel dos pais e/ou cuidadores como parceiros, uma vez que se relacionam com seus filhos de acordo com suas crenças e valores, que são a base da atribuição de significados à ação de terceiros(1,5,12,15).

Traçar o perfil de dificuldades dos cuidadores permite pensar que a percepção é algo que interfere no processo comunicativo, e que sua atitude possibilita tanto valorizar como depreciar o investimento e o desempenho na relação diádica(1,2,5). Por isso, as questões do primeiro domínio (a impressão dos pais e/ou cuidadores sobre eles próprios em relação a seus filhos) constituem metade do questionário e são referentes a oito questões comunicativas e quatro sociais.

Em cada domínio foram incluídas questões de reafirmação, que enfocavam o mesmo ponto, sob diferentes prismas. O objetivo desse tipo de reformulação é a confirmação da qualidade das respostas do questionário(17,18,23).

Na comparação dos grupos, nota-se que três questões do primeiro domínio (10, 12 e 24), não apresentaram diferenças estatísticas entre os dois grupos, o que é ratificado na literatura especializada. Isso possivelmente ocorra devido ao estágio de desenvolvimento refletido nas respostas e o desejo unânime de obter formas de se comunicar com filhos(13,15,27). As questões 10 e 12 tratam dos desejos e sentimentos da criança. No desenvolvimento típico, o meio verbal é o principal canal de comunicação e o uso de expressões verbais que veiculem desejo e sentimentos começam a aparecer após o segundo ano de vida; após o terceiro ano, termos mais complexos surgem e refletem maior compreensão da criança a respeito da mente de seu interlocutor(28). No caso dos pais e/ou cuidadores de criança inseridas no espectro do autismo a instrumentalidade comunicativa pode estar prejudicada em seu nível mais basal, bem como a expressão (por qualquer meio) de sentimentos(2). São motivos diferentes que fazem as respostas estarem presentes nos dois grupos. Em um caso, é uma etapa passageira do desenvolvimento, no outro, uma dificuldade persistente. Ainda que os cuidadores aprendam a interpretar os pedidos, desejos e sentimentos, em vários casos, tal interpretação não alcançará o grau de minúcia desejado pelas famílias(29). A questão 24 reflete o desejo, unânime, dos pais, de conhecer mais sobre o desenvolvimento de seu filho.

No segundo domínio (percepção dos pais em relação à aceitação/estigmatização das pessoas), as questões de número 3 e 9, envolvem temas comunicativos, e as questões 15 e 21, as sociais. Estudos recentes(5,6) têm atribuído um papel de destaque para a rotulação por parte das pessoas, como fator prejudicial para o funcionamento social e psicológico, tanto dos indivíduos em questão, como de seus cuidadores. Algumas pesquisas(6,7) concluem, ainda, que o estigma é reforçado pela sociedade e que seus efeitos não são facilmente superados pelas atitudes de enfrentamento adotadas pelas pessoas afetadas e por seus familiares.

As questões de número 1 e 19 abordam os temas sociais do terceiro domínio referentes às atitudes dos pais e/ou cuidadores em relação a seus filhos. As questões 7 e 13 que abordam os temas comunicativos desse domínio, não obtiveram diferença estatísticas entre os dois grupos, no estudo da testagem. Ambas as questões trazem uma ambiguidade implícita, com significados opostos para cada um dos grupos. A ambiguidade refere-se ao duplo valor veiculado pelas ações contempladas nas questões; ou seja, no desenvolvimento típico, responder às iniciativas das crianças é uma ação natural para os pais; no espectro do autismo, os pais têm uma vivência de orientações clínicas, que muitas vezes, pedem que eles expressem uma suposta "incompreensão" do pedido da criança em uma tentativa de favorecer a assertividade dela.

Considerou-se que, se por um lado, os pais que "leem", "traduzem", "narram" e concebem "sentidos" às ações e reações de seus filhos podem influenciar positivamente(10,11) o desenvolvimento e a adaptação. Por outro, pais que não reconhecem/percebem as dificuldades dos filhos, por não serem capazes de discriminar as sutilezas do comportamento, podem produzir efeito contrário sem perceber isso(2) .

No quarto domínio, a respeito da impressão dos pais e/ou cuidadores em relação à comunicação e socialização de seus filhos, considerou-se que há três questões a respeito da comunicação e apenas uma envolvendo os aspectos sociais, devido à duplicidade da pergunta 17: "Eu percebo que meu filho fala coisas que não têm a ver com o momento e/ou assunto". Embora haja menção específica a um comportamento comunicativo, como a fala, o foco da questão é a repercussão ambiental/social deste comportamento. Assim, neste domínio, as questões 17 e 23 são as direcionadas aos aspectos sociais e as de número 5 e 11 são as referentes à comunicação.

Cabe lembrar que nos aspectos sociais foram incluídos fatores relevantes para o processo comunicativo como, por exemplo, o meio, a interação, aspectos comportamentais, emocionais e cognitivos, conforme discutido na literatura(22-25).

Esses quatro domínios podem ser entendidos como duas vertentes de relacionamento. O primeiro e o terceiro domínios representam os níveis pessoais (aquilo o que eu penso da relação comunicativa com meu filho) e interpessoais (como eu ajo na relação com meu filho) do relacionamento diádico. Já o segundo e o quarto domínios representam a percepção dos pais da relação de interdependência entre o filho e a sociedade, sendo que o segundo domínio direciona o foco para a relação da sociedade com o indivíduo e o quarto domínio, inverte a direção dessa percepção, considerando-a a partir da perspectiva do indivíduo(22,25).

Os domínios enfocam os pais e/ou cuidadores sob diferentes papéis, representando diferentes níveis de relacionamento, colocando-os tanto como parceiros na relação dual com seus filhos, quanto como portadores simbólicos da cultura(27).

Com a aplicação do estudo piloto, foi possível perceber como os quatro domínios que dividem o questionário estão interligados. No entanto, mesmo que as respostas permitam a identificação dos domínios de maior dificuldade, a interpretação dependerá da realidade de cada indivíduo(12).

Por não se tratar de um teste e sim de um questionário, as variáveis psicométricas não se aplicam como critério de julgamento de confiabilidade.

A análise do questionário resultante (Anexo 1 Anexo 1 ) não objetiva um número que diferencie um sujeito do outro, mas conhecer as dificuldades percebidas pelos pais e/ou cuidadores de forma que as orientações, eventualmente fornecidas, possam estar baseadas em informações individualizadas e não em pressupostos baseados no senso comum(12).

Os resultados da aplicação do estudo piloto demonstraram que a maioria das questões foi adequada para identificar as dificuldades específicas da população alvo, que em muitas ocasiões conseguiu identificar a si próprios, agindo ou sentindo algo semelhante aos enunciados relativos à comunicação com seus filhos. Por outro lado, pais e/ou cuidadores de crianças sem queixa de linguagem 'estranhavam' algumas perguntas e referiam em geral respostas contrárias às dos pais de crianças autistas. Foi possível perceber que os dois grupos responderam de forma compreensível, embora com diferentes graus de dificuldades comunicativas.

Ainda que tenha atendido o objetivo proposto, uma das limitações do estudo refere-se aos critérios de inclusão dos sujeitos no grupo sem queixas de linguagem. Na medida em que o foco foi colocado em famílias com crianças em desenvolvimento de linguagem, a idade cronológica desse grupo era muito diferente da faixa etária das crianças com distúrbios do espectro do autismo.

CONCLUSÃO

Ressalta-se a importância da elaboração desse questionário conforme as diretrizes propostas por diversos autores. Sua aplicação demonstrou utilidade na identificação de dificuldades comunicativas específicas da população alvo. Ele mostrou avanço em relação aos instrumentos nos quais as propostas de intervenção e as orientações aos pais e/ou cuidadores vêm sendo fundamentadas, na recorrência de sintomas dos distúrbios do espectro do autismo. Além disso, o presente questionário permite a análise a respeito da singularidade destes sintomas e seu significado para o contexto familiar.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio concedido para a realização dessa pesquisa, sob o processo número 09/12103-3.

Recebido em: 19/5/2011

Aceito em:2/7/2012

Conflito de interesses: Não

Trabalho realizado no Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil.

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Anexo 1

  • Endereço para correspondência:

    Juliana Izidro Balestro.
    R. Adão Pinheiro da Silva, 385, Ipanema
    Porto Alegre (RS), Brasil, CEP: 91751-030.
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      19 Maio 2011
    • Aceito
      02 Jul 2012
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