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A Portaria MS n.º 822/01 e a triagem neonatal das hemoglobinopatias

Government directive MS 822/01 of the Brazilian Ministry of Health and neonatal screening of hemoglobinopathies

Resumos

A Portaria do Ministério da Saúde n.º 822/01 regulamentou a triagem neonatal de vários distúrbios metabólicos, incluindo as doenças falciformes e outras hemoglobinopatias. No presente trabalho, os autores comentam vários aspectos médicos e éticos da triagem neonatal das hemoglobinopatias, o aconselhamento genético como parte da responsabilidade médica e os riscos inerentes aos programas populacionais, que merecem ser conhecidos e prevenidos pelos profissionais que atuam na área de triagem neonatal.

Triagem neonatal; hemoglobinopatias; aconselhamento genético


The government directive MS 822/01 of the Brazilian Ministry of Health, regulates neonatal screening of many metabolic disorders, including sickle cell diseases and other hemoglobinopathies. In the present paper the authors discuss various medical and ethical aspects of neonatal screening for the hemoglobinopathies, the genetic counseling as part of medical responsibilities, and the risks inherent to population programs, which must be known and prevented by the professionals committed to and working in the field of neonatal screening.

Neonatal screening; hemoglobinopathies; genetic counseling


ARTIGO ESPECIAL / SPECIAL ARTICLE

A Portaria MS n.º 822/01 e a triagem neonatal das hemoglobinopatias

Government directive MS 822/01 of the Brazilian Ministry of Health and neonatal screening of hemoglobinopathies

Antonio S. RamalhoI; Luís A. MagnaI; Roberto B. de Paiva e SilvaII

IMédico, Professor Titular do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

IIPsicólogo, Professor Doutor do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação "Prof. Dr. Gabriel O. Porto" (CEPRE) da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Antonio Sérgio Ramalho Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil Caixa Postal: 6111 CEP: 13081-970. Campinas, SP, Brasil E-mail: dgmfcm@unicamp.br

RESUMO

A Portaria do Ministério da Saúde n.º 822/01 regulamentou a triagem neonatal de vários distúrbios metabólicos, incluindo as doenças falciformes e outras hemoglobinopatias. No presente trabalho, os autores comentam vários aspectos médicos e éticos da triagem neonatal das hemoglobinopatias, o aconselhamento genético como parte da responsabilidade médica e os riscos inerentes aos programas populacionais, que merecem ser conhecidos e prevenidos pelos profissionais que atuam na área de triagem neonatal.

Palavras-chave: Triagem neonatal, hemoglobinopatias, aconselhamento genético.

ABSTRACT

The government directive MS 822/01 of the Brazilian Ministry of Health, regulates neonatal screening of many metabolic disorders, including sickle cell diseases and other hemoglobinopathies. In the present paper the authors discuss various medical and ethical aspects of neonatal screening for the hemoglobinopathies, the genetic counseling as part of medical responsibilities, and the risks inherent to population programs, which must be known and prevented by the professionals committed to and working in the field of neonatal screening.

Key words: Neonatal screening, hemoglobinopathies, genetic counseling.

Introdução

A Portaria do Ministério da Saúde Nº 822, de 06 de junho de 2001, regulamentou a triagem neonatal da fenilcetonúria, do hipotireoidismo congênito, das doenças falciformes e outras hemoglobinopatias, bem como da fibrose cística, em todo território nacional. Essa medida restaurou um dos princípios fundamentais da Ética Médica, que é o da igualdade, garantindo acesso igual aos testes de triagem a todos recém-nascidos brasileiros, independentemente da origem geográfica, raça e classe socioeconômica. Além disso, tal portaria também corrigiu uma antiga distorção, ao adequar a triagem neonatal de distúrbios metabólicos às características étnicas da população brasileira. De fato, só a anemia falciforme, por exemplo, tem uma incidência entre recém-nascidos brasileiros cerca de dez a trinta vezes maior que a da fenilcetonúria, que, juntamente com o hipotireoidismo congênito, era tradicionalmente associada ao "teste do pezinho". Com essa afirmação, não queremos, evidentemente, diminuir a importância da triagem neonatal da fenilcetonúria e de outros distúrbios metabólicos ainda mais raros, mas apenas salientar a necessidade da inclusão das hemoglobinopatias nessa triagem.

Ainda em relação à anemia falciforme, espera-se que o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), associado a algumas medidas terapêuticas, tais como a penicilinoterapia profilática, entre os três meses e os cinco anos de idade, a vacinação específica (Pneumococos, Haemophilus, Hepatite B) e o seguimento ambulatorial regular, garantam maior sobrevivência e melhor qualidade de vida aos seus portadores. Uma análise dos óbitos registrados pelo Sistema de Informações de Mortalidade, no período de 1979 a 1995, fornece alguns aspectos dramáticos, do ponto de vista social e humanístico, a respeito da anemia falciforme no Brasil (1). Assim, por exemplo, 25% dos seus portadores não atingiam os quatro anos de idade e quase 80% deles não completavam 30 anos. Esses dados tornam-se ainda mais chocantes, quando se leva em consideração que a simples administração profilática de penicilina por via oral evitaria pelo menos 80% desses óbitos. Nos EUA, por exemplo, a penicilinoterapia profilática, associada à vacinação anti-pneumocóccica em crianças com menos de 2 anos de idade, aumentou cerca de dez vezes a população adulta com a anemia falciforme (2).

Um estudo realizado em Campinas, SP, demonstrou que os adultos com a anemia falciforme, em seguimento ambulatorial regular, apresentam não apenas uma boa sobrevivência, como também um grande potencial de integração à comunidade (3). Além disso, os recentes avanços hemoterapêuticos, sobretudo a eritrocitaférese computadorizada, atenuaram drasticamente algumas situações de risco para os indivíduos com a anemia falciforme, como a gestação, cirurgias, pneumonias e outras infecções, acidentes vasculares cerebrais, etc.

O inciso III do Artigo 10 da Lei Nº 8069, de 13 de junho de 1990, estabelece a obrigatoriedade não apenas do diagnóstico e da terapêutica das anormalidades do metabolismo do recém-nascido, como também da orientação dos seus pais. Assim sendo, julgamos oportuno tecer alguns comentários não apenas sobre a triagem neonatal, como também sobre o processo de aconselhamento genético, com especial ênfase às hemoglobinopatias hereditárias, tomando por base a nossa experiência de muitos anos nessa área.

O diagnóstico neonatal das hemoglobinopatias

O diagnóstico neonatal das hemoglobinopatias merece algumas considerações especiais. Quanto a esse aspecto é importante lembrar que o recém-nascido normal apresenta cerca de 80% da sua hemoglobina do tipo fetal (Hb F), só atingindo o padrão hemoglobínico típico da respiração pulmonar (97 a 99% de Hb A, 1 a 3% de Hb A2 e < 1% de Hb F) por volta dos seis meses de idade. Os pacientes com a anemia falciforme (homozigotos do gene da hemoglobina S) apresentam a hemoglobina S substituindo a hemoglobina normal A. Como a Hb F é um potente inibidor do processo de falcização das hemácias, o seu alto percentual nos primeiros meses de vida protege clinicamente os indivíduos com doenças falciformes. Esse fato, associado à imunidade passiva, recebida da mãe por via placentária, permite que penicilinoterapia profilática tenha início por volta dos três meses de idade. Os homozigotos do gene da talassemia beta, bem como de outras hemoglobinopatias, também são protegidos pelos níveis elevados de Hb F nos primeiros meses de vida. Pode-se dizer, portanto, que para as principais hemoglobinopatias que ocorrem em nosso país, o diagnóstico pode ser considerado precoce se realizado até os três ou quatro meses de idade. Tal situação é totalmente diferente da fenilcetonúria e do hipotireoidismo congênito, por exemplo, que exigem uma intervenção terapêutica muito mais precoce. A única hemoglobinopatia fatal a partir dos sete meses de gestação é a hidropisia fetal por Hb Bart's, que é uma forma específica de talassemia alfa extremamente rara no Brasil.

Se do ponto de vista clínico os níveis elevados da Hb F nos primeiros meses de vida são benéficos para os portadores de hemoglobinopatias, do ponto de vista do seu diagnóstico laboratorial, eles podem representar um fator complicante. Para as duas hemoglobinopatias mais freqüentes em populações brasileiras (Hb S e C), são exigidas técnicas mais sensíveis de eletroforese, como a de focalização isoelétrica. Mesmo assim, a confirmação diagnóstica por volta dos três meses de idade, sempre acompanhada da investigação laboratorial de ambos os genitores, é imprescindível. Isso permite que a anemia falciforme (homozigotos SS) seja diferenciada de outras doenças falciformes, como a hemoglobina SC e, principalmente, a Sb talassemia.

Quanto à hemoglobina C, é importante lembrar que ela ocupa, na eletroforese em pH alcalino, a mesma posição que a hemoglobina normal A2. Assim sendo, os heterozigotos com o traço de hemoglobina C (heterozigotos AC) não devem ser confundidos com os heterozigotos da talassemia beta (heterozigotos AT), que apresentam níveis aumentados de Hb A2. Embora nós tenhamos constatado que essa confusão diagnóstica realmente ocorra em nosso meio, ela é difícil de ser compreendida, pois os heterozigotos AC apresentam, após os seis meses, níveis de Hb C por volta de 40 a 50%, enquanto que os heterozigotos AT apresentam níveis de Hb A2 de, no máximo, 7%.

Do ponto de vista do diagnóstico neonatal, no entanto, o aspecto mais problemático é o dos homozigotos do gene da talassemia beta, portadores da talassemia maior (homozigotos TT). Curiosamente, a portaria MS 822/01 refere-se à triagem neonatal das doenças falciformes e de "outras hemoglobinopatias", sem especificar exatamente quais são elas. A talassemia maior, no entanto, que representa um grande problema no Sul e no Sudeste do Brasil, tanto pela freqüência quanto pela gravidade clínica (4), é praticamente impossível de ser triada nos recém-nascidos pelas técnicas hematológicas usuais, exigindo procedimentos de Biologia Molecular. Nós temos contornado esse problema de uma forma muito simples, ou seja, investigando rotineiramente o traço de talassemia beta (heterozigose AT) nas gestantes em seguimento pré-natal.

Quando diagnosticamos uma heterozigota AT, agendamos o exame laboratorial da criança a nascer, para quando ela tiver por volta dos 4 meses de idade, bem como o exame do seu pai e irmãos. Nessa idade, a talassemia beta já pode ser diagnosticada pelas técnicas hematológicas usuais, ou seja, hemograma + eletroforese de hemoglobinas com dosagem de Hbs F e A2 + dosagem bioquímica da Hb F + teste de resistência osmótica das hemácias. Outra alternativa, ainda mais eficiente, é submeter à análise molecular os recém-nascidos das heterozigotas AT. Tais procedimentos permitem o diagnóstico precoce de todas crianças com a talassemia maior, pois, evidentemente, não é possível o nascimento de um homozigoto, se a sua mãe não for, pelo menos, heterozigota.

Parece desnecessário enfatizar, por outro lado, que essas crianças com talassemia maior são muito beneficiadas com o tratamento especializado, baseado, em geral, na hipertransfusão sangüínea, acompanhada da quelação contínua no ferro e outras medidas de fortalecimento. Com a crescente simplificação das técnicas de Biologia Molecular, no entanto, o seu uso rotineiro na triagem neonatal não é uma prática distante da nossa realidade. Quanto a esse aspecto, é importante salientar que a detecção molecular de mutações das hemoglobinopatias e da fibrose cística são previstas pela Portaria MS 822/01, como exames confirmatórios (procedimento SAI/SUS de códigos 11.211.04-0 e 11.211.05-9, respectivamente).

Para maiores detalhes sobre o diagnóstico e tratamento das doenças falciformes, recomendamos aos profissionais da saúde, principalmente aos que atuam nas áreas de Pediatria, Hematologia e Genética Clínica, a leitura do Manual redigido por vários especialistas e publicado recentemente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (6).

O aconselhamento genético e a responsabilidade médica

Muitos clínicos brasileiros ainda percebem o aconselhamento genético dos pacientes ou de seus pais como um procedimento secundário, opcional ou de responsabilidade exclusiva do geneticista. No entanto, a possibilidade de uma alteração genética ter caráter hereditário acrescenta componentes adicionais à conduta clínica e à responsabilidade médica. De fato, as pessoas que apresentam risco de gerar filhos com tais doenças têm o direito de ser informadas, por meio do aconselhamento genético, a respeito dos aspectos hereditários e demais conotações clínicas do problema em questão. O aconselhamento genético é, portanto, um componente importante da conduta médica, sendo a sua omissão uma falha grave.

Em casos de recorrência de um problema hereditário na prole, os casais que não tinham consciência prévia do risco podem sentir-se privados de informações e lesados em seu direito de escolha. Nesses casos, o nascimento de mais uma criança com a mesma heredopatia não é considerado, por esses casais, uma fatalidade, mas uma injustiça. Na Inglaterra, por exemplo, é comum casais processarem o clínico por negligência. Por outro lado, o aconselhamento genético apresenta importantes implicações psicológicas, sociais e jurídicas, acarretando um alto grau de responsabilidade às instituições e aos clínicos que a oferecem. Assim sendo, é imprescindível que ele seja fornecido por profissionais habilitados e com experiência, dentro dos mais rigorosos padrões éticos e científicos.

A portaria MS 822/01 regulamenta o seguimento das crianças triadas em um Ambulatório Multidisciplinar Especializado, sendo que um dos profissionais da equipe, preferencialmente um profissional médico, deverá ter recebido uma capacitação técnica em Aconselhamento Genético específico para Triagem Neonatal, em um serviço reconhecido de Genética Médica.

O caráter assistencial do aconselhamento genético

Um aspecto importante do aconselhamento genético e que merece ser ressaltado é o seu objetivo assistencial, uma vez que se trata de um processo que permite a indivíduos ou famílias a tomada de decisões conscientes e equilibradas a respeito da procriação.

O objetivo assistencial desse aconselhamento pode ter ou não conseqüências preventivas ou eugênicas. Os indivíduos são conscientizados do problema, sem ser privados do seu direito de decisão reprodutiva. Para que isso possa ocorrer, é fundamental que o profissional que atue em aconselhamento genético assuma uma postura não diretiva e não coerciva e discuta com os clientes vários aspectos além do risco genético em si, tais como tratamento disponível e a sua eficiência, o grau de sofrimento físico, psicológico e social imposto pela doença, o prognóstico, a importância do tratamento precoce, etc.

Esse caráter assistencial do aconselhamento genético o distingue da eugenia. Realmente, os princípios do aconselhamento genético, ao contrário do que acontece com os princípios eugênicos, visam, primordialmente, a defesa dos interesses dos pacientes e das famílias, e não os da sociedade (7).

O aconselhamento genético não pode estar baseado apenas em hipóteses diagnósticas, sendo necessário estabelecer um diagnóstico preciso para o problema em questão. A triagem neonatal deve ser complementada, portanto, pela confirmação diagnóstica posterior, procedimento, aliás, ressaltado pela Portaria MS 822/01.

Os riscos inerentes aos programas populacionais

Os programas populacionais são concebidos em um mundo teórico e idealizado. Na prática, no entanto, eles são realizados em um mundo real, muito diferente (8). Por esse motivo, existem alguns riscos inerentes a esses programas, que merecem ser conhecidos e prevenidos.

Em um programa de triagem neonatal das hemoglobinopatias, os indivíduos mais vulneráveis a esses riscos são os heterozigotos assintomáticos, sejam aqueles triados juntamente com os homozigotos, sejam os pais e outros familiares das crianças afetadas.

Vamos, mais uma vez, tomar a anemia falciforme como exemplo. Enquanto a incidência de recém-nascidos homozigotos com a anemia falciforme é de cerca de 1-3/1000, a de heterozigotos com o traço falciforme é da ordem de 2 a 10% em populações brasileiras (4). Tais indivíduos com o traço falciforme são assintomáticos e só poderão apresentar complicações clínicas em situações excepcionais, tais como a de hipóxia e/ou acidose muito intensas.

A confusão entre traço e doença foi um dos problemas sérios surgidos nos programas norte-americanos de prevenção da anemia falciforme iniciados no final dos anos 60, fruto do despreparo dos legisladores, dos orientadores genéticos e, sobretudo, da imprensa (9). No Estado de Massachusetts, por exemplo, o traço falciforme foi transformado em doença, pelo menos por lei. Da mesma forma, o seguinte texto foi publicado em 1972 na revista Ebony, cujo público leitor é predominante negro, sob o patrocínio do American Express, que se propunha a doar o valor de compra de ordens de pagamento da companhia para a luta contra a anemia falciforme (9):

"Um em cada dez americanos negros é portador de um traço sangüíneo que ameaça incapacitar ou matar. Chama-se anemia falciforme, pois produz glóbulos vermelhos do sangue em forma de foice. Pode debilitar as pessoas que não mata. Mesmo as que têm a forma branda da anemia falciforme - o traço - sofrem. Em geral, elas devem evitar atividades pesadas e consultar os seus médicos regularmente".

É, portanto, com grande preocupação que constatamos que esse erro começa a se repetir no Brasil. Assim, por exemplo, a seguinte manchete foi publicada em um jornal brasileiro em 16 de junho de 1993:

"Anemia falciforme atinge crianças em... – Programa do ... detecta traços da doença em 24 crianças nascidas na cidade; em 25% dos casos a doença mata antes de chegar aos 5 anos".

Essa confusão entre traço e doença acarretou sérios dissabores aos portadores norte-americanos do traço falciforme. Muitas companhias de seguro, por exemplo, excluíam os heterozigotos AS, com base na teoria, nunca comprovada, de diminuição da sua expectativa de vida. Da mesma forma, muitas empresas não empregavam portadores do traço falciforme, com o falso argumento de que eles são mais vulneráveis a acidentes de trabalho. Até mesmo a Academia da Força Aérea dos Estados Unidos não permitia, até 1981, o ingresso de portadores do traço falciforme (9).

É muito importante, portanto, que fique bem claro para os pacientes, médicos e para a comunidade em geral, que o traço falciforme não é uma doença, não é uma forma atenuada da anemia falciforme e muito menos uma forma incubada ou sub-clínica, que pode se transformar em doença em determinadas circunstâncias.

Em uma avaliação que realizamos em Campinas, SP, pudemos verificar que, até mesmo entre indivíduos com o traço falciforme orientados por uma equipe multidisciplinar de aconselhamento genético, composta por médicos geneticistas e hematologistas, psicólogo e assistentes sociais, os riscos da orientação genética, ainda que pequenos, não são inexistentes (10). Dentre as distorções mais freqüentemente detectadas e corrigidas, podem ser citadas: discriminação ("o dentista da escola não quis tratar os dentes da minha filha, porque ela é traço"), estigmatização ("eu sou branco, mas o meu vizinho vive me dizendo que o traço é problema de negros"), rotulação ("por mais que eu afirme que sou normal, as pessoas me olham como se eu tivesse um problema") e perda da auto-estima ("sinto muita culpa pelo fato de ter passado o gene para o meu filho"). A equipe de aconselhamento genético deve estar preparada, portanto, para detectar e corrigir esses problemas. Outro aspecto fundamental é o sigilo médico, respeitando-se o princípio ético da privacidade, que determina que os resultados dos testes genéticos de um indivíduo não podem ser comunicados a nenhuma outra pessoa sem o seu consentimento expresso, com exceção, talvez, de familiares com elevado risco genético e, mesmo assim, após falha de todos os esforços para obter permissão do probando.

O sentimento de culpa dos pais é uma ocorrência freqüente no aconselhamento genético, uma vez que esse procedimento não é apenas de natureza intelectual, mas também emocional e comportamental (11). Temos constatado que em algumas regiões do Brasil é habitual os clínicos denominarem os heterozigotos de "transmissores". Esse hábito é extremamente indesejável, pois além de dar a falsa conotação de um caráter infeccioso à heredopatia, ainda pode agravar o sentimento de culpa dos pais.

Outro cuidado a ser tomado nos programas populacionais de hemoglobinopatias é evitar o "caráter racial", com afirmações que a anemia falciforme atinge a raça negra, a talassemia os italianos, etc. Segundo Wilkie (9) , um dos erros dos programas norte-americanos de prevenção da anemia falciforme iniciados no E.U.A. na década de 60 foi conferir-lhe um caráter racial, como se o problema interessasse exclusivamente aos indivíduos da raça negra. Esses programas surgiram em muitos Estados norte-americanos, com a ascensão do movimento pelos direitos civis, graças à ação de grupos de pressão e legisladores negros, mas acabaram tendo os seus objetivos deturpados, transformando-se em focos de disputas políticas e raciais. Em alguns locais, como Washington, DC, por exemplo, a anemia falciforme foi transformada por lei em doença contagiosa e os escolares negros foram submetidos a testes compulsórios, por força dos regulamentos de imunização do distrito (9).

O alto grau de miscigenação que ocorre em nosso país invalida totalmente a conotação racial das hemoglobinopatias. Ela tem apenas uma importância histórica, para explicar a introdução das diversas hemoglobinopatias em nosso país por fluxo gênico externo (as hemoglobinas S e C a partir do século 16, com o tráfico de escravos e a talassemia beta a partir da segunda metade do século 19, com a imigração italiana), uma vez que elas não são autóctones em nossas populações indígenas (4). Cerca de 40% dos indivíduos com a hemoglobina S que atendemos na UNICAMP não são classificados como negros ou pardos, com base na sua aparência fenotípica.

Concluindo esta discussão, é importante enfatizar a importância da divulgação das hemoglobinopatias entre os clínicos brasileiros. Embora textos específicos e acessíveis existam em nosso país desde a década de 80 (4) , a recente iniciativa da ANVISA de publicar um Manual dirigido aos profissionais de saúde é de grande utilidade.

É interessante mencionar um estudo realizado em 1992 entre 160 médicos norte-americanos, sobre os seus conhecimentos a respeito da anemia falciforme e do traço falciforme (12). Os resultados foram surpreendentes, constatando-se que 14% dos médicos acreditavam que o traço falciforme é uma doença contagiosa, 20% acharam que é muito difícil diferenciar o traço da anemia falciforme e 50% não sabiam que a anemia falciforme pode ser confundida com outras síndromes falciformes, como a hemoglobinopatia SC e a S/b-talassemia.

Seria conveniente, portanto, que um estudo semelhante fosse realizado no Brasil, já que em um levantamento que realizamos em 1993, entre 59 geneticistas e 55 hematologistas brasileiros, revelou que 29% e 9% deles, respectivamente, conheciam a anemia falciforme somente a partir de dados da literatura e apenas 8% e 65% deles, respectivamente, a conheciam a partir do atendimento rotineiro de pacientes. Curiosamente, 5% dos geneticistas e 59% dos hematologistas entrevistados eram favoráveis ao diagnóstico pré-natal e ao abortamento "terapêutico" como forma de prevenção da anemia falciforme. Em outras palavras, eles tinham uma opinião formada a respeito do direito de sobrevivência de portadores de alterações que eles, muitas vezes, nem conheciam com a profundidade necessária para opinar. Apenas 13% dos hematologistas e 15% dos geneticistas consultados tiveram a prudência de afirmar que não tinham ainda opinião formada sobre o assunto.

Uma última palavra sobre o diagnóstico pré-natal da anemia falciforme: as modernas técnicas de Biologia Molecular permitem, atualmente, o diagnóstico rápido e eficiente do gene da hemoglobina S em qualquer célula nucleada. Essa célula pode pertencer a um embrião implantado, com cerca de 10 semanas, ou mesmo a um embrião em fase de pré-implantação. No entanto, apesar de legalizada em vários países, a interrupção da gestação de portadores de doenças falciformes ainda é um assunto polêmico, mesmo nesses países. No Brasil, o abortamento de portadores de hemoglobinopatias hereditárias não é contemplado com a isenção penal. Assim sendo, a discussão desse assunto em nosso meio ainda é prematura, já que o diagnóstico pré-natal não oferece, em termos de diagnóstico precoce, qualquer vantagem sobre o diagnóstico neonatal das doenças falciformes.

Recebido: 19/10/2002

Aceito: 25/10/2002

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  • Endereço para correspondência
    Antonio Sérgio Ramalho
    Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil
    Caixa Postal: 6111
    CEP: 13081-970. Campinas, SP, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2003
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Aceito
      25 Out 2002
    • Recebido
      19 Out 2002
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