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Perspectivas de terapia celular na esclerose lateral amiotrófica

Perspectives of cell therapy in amyotrophic lateral sclerosis

EDITORIAL EDITORIAL

Perspectivas de terapia celular na esclerose lateral amiotrófica

Perspectives of cell therapy in amyotrophic lateral sclerosis

Júlio C. Voltarelli

Coordenador da Unidade de Transplante de Medula óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. E-mail: jcvoltar@fmrp.usp.br

A esclerose lateral amiotrófica (ELA) deriva seu nome das características predominantes da doença: processo degenerativo, esclerótico dos neurônios motores das porções laterais (corno anterior) da medula espinhal, juntamente com o córtex motor e o trato piramidal, levando a fraqueza e atrofias musculares (amiotrofia), associadas a fasciculações e espasticidade. Tem caráter progressivo, levando à morte em três a quatro anos após o início dos sintomas (dois a três anos após o diagnóstico definitivo), por comprometimento da musculatura respiratória. Não há nenhuma terapia eficaz para evitar esta evolução inexorável e, dentre as inúmeras já testadas, a única que, em estudos prospectivos controlados, conseguiu retardar a progressão da doença, ainda assim em apenas alguns meses, foi o riluzol (Rilutek), um inibidor da via glutamatérgica no SNC (N Engl J Med 1994;330:585 e Lancet 1996;347:1.425). Até o presente, esta é a única droga liberada pelo FDA para tratamento da ELA.

A etiopatogênese da ELA não é conhecida, vários fatores genéticos, ambientais e endógenos parecem contribuir para o desencadeamento e evolução da neurotoxicidade na doença, que poderia ser mediada por múltiplos mecanismos: radicais livres oxidativos, incluindo o óxido nítrico, agregados protéicos intracitoplasmáticos, apoptose mediada pela via Fas-Fas ligante, acúmulo aberrante de neurofilamentos, excitotoxicidade mediada pelo glutamato, anormalidades no transporte axonal retrógado e deficiência de fatores neutróficos (Annu Rev Neurosci 2004;27:723). A descoberta da mutação SOD1 (superóxido dismutase-1), por Siddique e cols (New Engl J Med 1991; 324:1381 e Nature 1993;362:59), permitiu a identificação da forma genética da doença, que afeta 5% a 10% dos pacientes, e a criação de um modelo experimental da ELA (camundongo transgênico para SOD1), que possui muitas características da doença adquirida ou esporádica. Recentemente, a contribuição de fatores inflamatórios e imunológicos e a participação das células acessórias, principalmente a microglia, na patogênese da ELA têm sido bastante exploradas em estudos clínicos e experimentais (Muscle Nerve 2002; 26: 459 e Exp Neurol 2004;187:1). O principal defensor desta hipótese, Stanley Appel, do Baylor College of Medicine, em Houston-TX, EUA, considera a inflamação, mediada imunologicamente, como o gatilho terciário e final (third hit) da morte neuronal na ELA, desencadeada, em uma fase inicial, pela predisposição genética e pelos fatores metabólicos citados acima (www.fromthelab.net/vol02/is7/03july_n2.htm e Ann Neurol 2004; 55: 221).

Baseando-se na hipótese patogenética mencionada acima, drogas antiinflamatórias foram testadas, com sucesso, em modelos animais de ELA (Ann Neurol 2002; 52:771 e Nature 2002;417:74) e estão sendo investigadas na doença humana. Adotando uma estratégia terapêutica mais radical, dentro da mesma hipótese, o grupo do Baylor College realizou o único estudo conhecido de infusão sistêmica de células-tronco hematopoiéticas (CTH) na ELA. Essas células eram coletadas do sangue periférico de irmãos HLA-idênticos e infundidas no paciente após um condicionamento submieloablativo com irradiação corporal total (450 cGy), fludarabina (120 mg/m2) e ATG equina (40 mg/kg). Seis pacientes foram transplantados em fase intermediária da doença (entre um e dois anos após o início dos sintomas); na metade deles, não houve benefício evidente da terapia, tendo ocorrido dois óbitos, mas, na outra metade, houve desaceleração da doença em dois pacientes, 22 e 36 meses após o transplante e estabilização em outro, após 21 meses. Em um paciente do primeiro grupo, com a forma mais grave da ELA (bulbar), a necrópsia mostrou a presença de células do doador no SNC (17% a 25% na medula espinhal e tronco cerebral) e aumento do infiltrado inflamatório e da expressão da quimiocina MCP-1 no SNC em relação a controles sem doença neurológica e a pacientes com ELA não-transplantados (Appel, comunicação pessoal). Será interessante comparar esses resultados com achados histopatológicos de pacientes que tiveram melhor resposta ao TCTH, para verificar se este promoveu redução do processo inflamatório. O Dr. Richard Burt, da Northwestern University, em Chicago, EUA, submeteu ao FDA outro protocolo clínico de TMO alogênico submieloablativo empregando, como condicionamento, ciclofosfamida (50 mg/kg), fludarabina (150 mg/kg) e CAMPATH (90 mg). Finalmente, dois casos esporádicos de TCTH autólogo estão registrados no EBMT/EULAR, na Basiléia, com progressão da doença e morte dos pacientes.

Outras tentativas de terapia celular em modelos animais ou pacientes com ELA envolveram a injeção endovenosa de células humanas de cordão umbilical em camundongos com a forma genética da doença (mutantes SOD1), com prolongamento significativo da sobrevida (Life Sciences 2000; 67: 53-59, J Hematother SC Res 2003; 12: 255-270) e a injeção local ou sistêmica de CTH autólogas, com discreta melhora sintomática, mas sem impacto documentado na sobrevida (J Hemathoter SC Res 2001;10:913-915, ALS and other NMD 2003;4:158-161, Cythotherapy 2004, 6:431). Enquanto não emerge uma terapia eficiente para interromper o progresso da doença e melhorar a sobrevida, os pacientes se tornam presas fáceis de terapias não comprovadas, aparentemente miraculosas, mas que, no fundo, têm apenas interesse comercial.

No contexto de uma doença crônico-degenerativa do SNC com provável patogênese imune-inflamatória e inexoravelmente fatal, não causa surpresa a emergência de várias tentativas terapêuticas, mencionadas acima, objetivando reparação tecidual e modulação do processo inflamatório. Em uma revisão recente (Lancet 2004; 364: 200), foram apontados os requisitos mínimos para se iniciarem investigações clínicas para ELA com células-tronco e foi destacado que, tendo as células-tronco hematopoiéticas de pacientes com ELA capacidade proliferativa normal, elas poderiam ser injetadas por via sistêmica e alcançar o sistema nervoso central.

No Brasil, movidos pelos resultados encorajadores obtidos com o TCTH autólogo em doenças auto-imunes (DAI), principalmente do SNC (esclerose múltipla) (Bone Marrow Transplantation 33 (Suppl 1) 2004; S145) e pela pressão desesperada de pacientes e familiares, um grupo de especialistas (neurologistas, hematologistas, imunologistas e cientistas básicos) começou a se reunir no 1º semestre de 2004 para discutir a possibilidade de se implementar um protocolo de terapia celular para ELA no país. A decisão mais difícil e demorada foi a de testar uma forma de terapia potencialmente fatal (TCTH com imunossupressão agressiva) em uma doença com patogênese tão críptica e com tão poucos resultados experimentais. Predominou a idéia, entretanto, de que, havendo uma possibilidade, mesmo remota, de que o processo imune-inflamatório desempenhe um papel importante na evolução da doença e que possa ser modulado pela terapia celular e imunossupressora, esta deveria ser tentada, num contexto prognóstico tão sombrio como o da ELA. Decidiu-se, assim, após várias reuniões, que culminaram com uma sessão de debates no último Congresso Brasileiro de TMO, em Curitiba, com a participação marcante de Sérgio Giralti e Mary Flowers, organizar, inicialmente, um estudo de fases I/II com quatro grupos experimentais: 1) um com TCTH autólogo, 2) outro alogênico submieloablativo, utilizando, nestes dois braços, o mesmo esquema de condicionamento da Northwestern University citado acima (ciclofosfamida, fludarabina e CAMPATH) e medula óssea como fonte de CTH, para se ter uma maior contribuição de células mesenquimais, 3) um com injeção intra-arterial de CTH autólogas na medula espinhal e 4) outro com uma combinação de drogas antiglutamatérgicas (memantina + riluzol). Está programado, para novembro próximo (20/21), antes do início dos transplantes, um workshop operacional, com a presença dos Drs. Burt e Siddique, para se discutir aprofundadamente o protocolo final e, assim, validá-lo para ser usado nos pacientes brasileiros.

Não temos ilusões sobre as enormes dificuldades, de várias naturezas, que se interpõem ao nosso objetivo final, que é o de desenvolver uma forma de terapia que interrompa a progressão inexorável da ELA. Desde a falta de eficácia das terapias propostas, como ocorreu em vários outros estudos clínicos nesta doença, até diversos obstáculos logísticos e operacionais (dificuldade de aprovação do protocolo nas comissões de ética em pesquisa locais e na Conep, falta de leitos suficientes para transplante, de financiamento pelo SUS e pelos convênios, de disponibilidade do CAMPATH no mercado nacional, etc, etc) conspiram contra o sucesso desta empreitada. Entretanto, estamos esperançosos em superar essas dificuldades, como fizemos com o protocolo de TCTH para DAI e outros e, no mínimo, vislumbrar, com esta investigação inicial, um caminho que nos leve, num futuro não muito distante, a alcançar aquele objetivo tão importante para os pacientes. E estamos certos de, mais uma vez, colocar a Medicina brasileira na vanguarda da investigação clínica em um dos campos mais promissores da ciência atual.

Agradecimentos

À FUNDHERP, FAEPA-HCRP, FAPESP, CNPq e FINEP pelo apoio financeiro e aos Drs. Stanley Appel (Baylor College of Medicine, Houston, EUA), Richard Burt (Northwestern University, Chicago, EUA), Alan Tyndall (EBMT/EULAR, Basiléia, Suíça) e Dominique Bourdessoli (Limonges, França) pelo fornecimento de informações não publicadas.

Publicado a convite do editor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    2004
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