EDITORIAL EDITORIAL
Transplante de medula óssea em leucemia mielóide aguda Resultados preliminares do Grupo Cooperativo Brasileiro
Bone marrow transplantation in acute myelogenous leukemia Preliminary results of the Brazilian Cooperative Group
Daniel G Tabak
Coordenador do Programa de Terapia Celular Clínica São Vicente, Rio de Janeiro
Endereço de correspondência Correspondência para: Praia de Botafogo, 228 - Sala 1004 Rio de Janeiro, RJ - Brasil E-mail: dantabak@terra.com.br
O tratamento quimioterápico moderno é capaz de induzir a remissão em cerca de 80% dos adultos portadores de leucemia mielóide aguda (LMA). A maioria dos pacientes, entretanto, apresentará uma recidiva caso nenhum tratamento de consolidação seja instituído. Embora o transplante alogênico (TMO alo) seja reservado para os mais jovens, com fatores prognósticos desfavoráveis, esta estratégia apresenta limitações menos de 40% possui um doador familiar compatível. Aqueles que não possuem um doador são habitualmente encaminhados para o transplante autólogo (TMO auto) ou são tratados com quimioterapia convencional, enquanto a busca por um doador não aparentado é conduzida. As dúvidas sobre qual a melhor estratégia a ser adotada permanecem, apesar dos inúmeros estudos publicados na literatura.
No Brasil, a situação é ainda mais complexa. Dados concretos sobre a incidência desta patologia e do número de candidatos às diversas modalidades terapêuticas inexistem. O acesso dos pacientes às instituições capazes de reproduzir os resultados positivos no tratamento inicial da LMA é muito limitado. A seleção de pacientes encaminhados para o transplante em nosso país é, portanto, distinta daquela que caracteriza os estudos internacionais. Diante deste quadro extremamente complexo, Hamerschlak e cols1 devem ser parabenizados por apresentar os resultados do transplante de medula óssea para a LMA no Brasil. A reprodutibilidade dos resultados obtidos nos centros internacionais reflete a maturidade atingida pela comunidade transplantadora brasileira ao atingir os 27 anos de existência. O estudo cria ainda a oportunidade para analisarmos a nossa estratégia no manuseio destes pacientes.
Quando deve ser indicado o TMO alo em portadores de LMA? Qual o papel do TMO auto na consolidação? Qual a melhor forma de condicionamento? Quando iniciar a busca por um doador não aparentado? Neste breve comentário, apenas alguns fatores serão considerados.
Os autores realizaram uma análise retrospectiva a partir de um questionário submetido aos diversos centros transplantadores. Como em todos os estudos não randomizados, este grupo de pacientes selecionados para o transplante representa um grupo especial. Habitualmente, pacientes jovens em boas condições clínicas são encaminhados para o transplante em primeira remissão. Pacientes que apresentam uma recidiva precoce, ou toxicidade excessiva após o tratamento inicial, são excluídos desta estratégia. Um viés de tempo passa a ser introduzido: pacientes transplantados em primeira remissão precisam sobreviver o tempo necessário para receber aquela modalidade terapêutica. No estudo do Medical Research Council AML 10, por exemplo, os pacientes de alto risco apresentaram uma taxa de recidiva de 32% nos primeiros seis meses de evolução. Desta forma, os pacientes de alto risco, transplantados ainda em primeira remissão, representam um grupo com um prognóstico mais favorável. Este problema no Brasil é amplificado pelo acesso limitado dos pacientes, não apenas aos centros de transplante, mas também a um tratamento inicial adequado. Este fato pode ser corroborado por este estudo, no qual mais de 90% dos pacientes analisados são oriundos dos estados de São Paulo e Paraná. O acesso limitado ao tratamento alocado também ocorre em pacientes submetidos ao TMO auto. Na metanálise publicada por Nathan e cols2 incluindo mais de 4 mil pacientes portadores de LMA, apenas 69% foram de fato transplantados. Aquele estudo, entretanto, demonstrou que 92% dos pacientes alocados para a consolidação com quimioterapia foram realmente tratados. A análise por intenção de tratar e a randomização "genética" (baseada na disponibilidade de um doador) podem minimizar o viés do tempo, embora o valor real do transplante possa ser subestimado.
No estudo brasileiro, os pacientes alocados para o TMO auto apresentavam ainda uma particularidade adicional: 24% eram portadores de leucemia promielocítica. Atualmente, a maioria dos pacientes portadores de LMA-M3 é curada com o tratamento convencional. A seleção destes pacientes deve ser considerada no contexto histórico quando a maioria dos pacientes não tinha acesso ao tratamento com o ácido transretinóico e ao suporte hemoterápico moderno que mudaram as expectativas naquela patologia. Ainda no estudo de Nathan e cols, o pequeno incremento na sobrevida livre de eventos associada com o TMO auto em CR1 não se traduziu em um aumento da sobrevida global, quando comparado com a quimioterapia convencional. Observou-se não apenas uma taxa de recidiva elevada, mas também maior toxicidade associada ao transplante. Os números no estudo brasileiro também são significativos e certamente refletem a curva do aprendizado, principalmente considerando que 78% dos pacientes receberam precursores hematopoéticos de sangue periférico, isoladamente ou associados a células de medula óssea.
O TMO auto em CR1 no tratamento da LMA não deve, entretanto, ser desconsiderado. O grupo cooperativo alemão3 apresentou recentemente um estudo prospectivo comparando o uso de altas doses de ARA-C e o transplante de precursores hematopoéticos de sangue periférico como consolidação tardia em pacientes portadores de LMA com idade inferior a 60 anos. A análise citogenética foi crítica para definir os resultados. Pacientes classificados como de risco padrão t(8;21), inv(16) ou cariótipo normal e < 5% de blastos na medula óssea do d15 da indução apresentaram uma sobrevida global semelhante, independente da forma de consolidação. Entretanto, os autores apontaram o TMO auto como o tratamento de escolha devido a menor toxicidade associada ao tratamento. O mesmo benefício não pode ser demonstrado para pacientes de alto risco, para os quais o grupo recomenda o TMO alo.
Na experiência brasileira, o TMO alo foi realizado em CR1 em 40% dos pacientes; porém, os dados citogenéticos foram analisados em apenas 30% dos pacientes. Dois estudos recentes ressaltam de forma dramática a importância da análise molecular para a decisão terapêutica. Schlenk e cols demonstraram que o impacto prognóstico negativo, determinado pela presença da ITD-FLT3, pode ser neutralizado pelo TMO alo.4 No entanto, o valor preditivo da alteração molecular mais comum na LMA ainda não pode ser completamente estabelecido.5
O valor imunoterapêutico do transplante alogênico é inquestionável. Entretanto, a morbidade associada à DECH e às infecções limita a sua maior aplicabilidade. Portanto, a seleção de pacientes não deve ser determinada apenas pelo risco do processo biológico, mas também pelo risco de toxicidade associada ao procedimento. Como quantificar este risco? Sorror e cols,6 em Seatlle, descreveram recentemente um índice específico de comorbidade para pacientes submetidos ao transplante hematopoético. A aplicabilidade deste índice, que ressalta inclusive a importância de fatores como a obesidade e aspectos psiquiátricos, pode permitir o melhor aconselhamento aos pacientes antes do TMO e também deveria ser estudado na nossa população.
No estudo brasileiro, a maioria dos pacientes submetidos ao TMO alo não se encontrava em primeira remissão. Nesta fase, a indicação do transplante é menos complexa, diante da limitação terapêutica com potencial curativo. Este benefício pode ser quantificado? Breems e cols7 acreditam que sim. Um índice prognóstico foi estabelecido com a análise de 667 pacientes portadores de LMA não M3. Os seguintes indicadores foram incluídos: intervalo entre a primeira recidiva e a primeira remissão; citogenética ao diagnóstico; idade na recidiva e realização de transplante hematopoético prévio. Foram identificados três grupos de risco com uma probabilidade de sobrevida significativamente distinta de 46%,18% e 4% em cinco anos. Este modelo também poderia ser analisado em nossa população e talvez ajudar na seleção de pacientes quando os recursos são ainda mais limitados.
Qual o impacto do transplante na qualidade de vida de portadores de leucemia mielóide aguda? Dados específicos para portadores de LMA em CR1 são limitados. O intergrupo alemão8 apresentou recentemente uma análise de 525 questionários aplicados a pacientes com idade mediana de 46 anos e acompanhados por um período mediano de nove anos. Foram transplantados 244 pacientes (alo: 189; auto: 55) e 281 pacientes tratados com quimioterapia convencional. Problemas na vida social, familiar e na atividade econômica comprometeram mais significativamente os pacientes submetidos ao TMO alo. Estes aspectos devem ser valorizados ao serem consideradas as opções terapêuticas.
Vários fatores contribuíram para a redução da mortalidade associada aos transplantes hematopoéticos na última década e também vêm sendo incorporados pelo grupo brasileiro: 1) Monitorização molecular e tratamento preemptivo de infecções por CMV; 2) Doses mais elevadas de precursores hematopoéticos; 3) Novos agentes antifúngicos; 4) Melhor seleção de doadores não aparentados através da tipagem HLA molecular de alta resolução; 5) Uso mais racional da infusão de linfócitos na prevenção e tratamento de recidivas e 6) Utilização de regimes não mieloablativos permitindo inclusive a realização do transplante em pacientes com idade superior a 60 anos. O tratamento da LMA deverá se modificar nos próximos anos. Novos agentes terapêuticos como os anticorpos monoclonais, inibidores da transdução de sinais e da angiogênese, estão sendo rapidamente incorporados em nosso arsenal e poderão modificar as recomendações terapêuticas no manuseio da LMA. O estudo de Hamerschlak e cols deverá servir como uma plataforma para novos estudos, que ampliarão o horizonte da pesquisa clínica em LMA no Brasil.
Referências Bibliográficas
1. Hamerschlak N, Barton D, Pasquini R et al. Um estudo retrospectivo do tratamento de leucemia mielóide aguda com o Transplante de Medula óssea A experiência Brasileira. Rev Bras Hematol Hemoter 2006;28(1):11-18.
2. Nathan PC, Sung L, Crump M et al. Consolidation therapy with autologous bone marrow transplantation in adults with acute myeloid leukemia: a meta-analysis. J Natl Cancer Inst 2004;96(1):38-45.
3. Ganser A, Krauter J, Hoelzer D et al. Prospective randomized comparison of high dose AraC and autologous peripheral blood stem cell transplantation as late consolidation for patients ≤ 60 years with standard risk AML. Blood 2005;106(11):48a.
4. Schlenk RF, Krauter J, Fröhling S et al. Postremission therapy with an allogeneic transplantation from an HLA Matched family donor seems to overcome the negative prognostic impact of FLT3-ITD in younger patients with acute myeloid leukemia exhibiting a normal karyotype. Blood 2005;106(11):662a.
5. Gale RE, Hills R, Kottaridis PD et al. No evidence that FLT3 status should be considered as an indicator for transplantation in acute myeloid leukemia (AML): an analysis of 1135 patients, excluding acute promyelocytic leukemia, from the UK MRC AML10 and 12 trials. Blood 2005;106(10):3.658-65.
6. Sorror ML, Maris MB, Storb R et al. Hematopoietic cell transplantation (HCT)-specific comorbidity index: a new tool for risk assessment before allogeneic HCT. Blood 2005;106(8):2.912-9.
7. Breems DA, Van Putten WL, Huijgens PC et al. Prognostic index for adult patients with acute myeloid leukemia in first relapse. J Clin Oncol 2005;23(9):1.969-78.
8. Messerer D, Engel J, Hasford J, et al. Allogeneic transplantation from an HLA Matched family donor in first complete remission of acute myeloid leukemia had an adverse impact on quality of life in patients followed for at least five years after treatment: A survey of the german AML Intergroup on 525 Patients. Blood 2005;106(11):221a.
Recebido 13/01/2006
Aceito: 16/01/2006
Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.
Conflito de interesse: não declarado
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Ago 2006 -
Data do Fascículo
Mar 2006