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Síndromes mielodisplásticas: diagnóstico de exclusão

Myelodysplastic syndromes: diagnosis by exclusion

Resumos

As síndromes mielodisplásticas são comuns nos indivíduos com idade superior a 60 anos e se apresentam laboratorialmente com macrocitose isolada, anemia, citopenias isoladas ou combinadas e alterações morfológicas na medula óssea. O diagnóstico depende da exclusão de causas não clonais e reversíveis. Especialmente nas fases mais precoces da doença, na ausência de excesso de blastos, sideroblastos em anel ou alteração citogenética clonal, o diagnóstico requer um protocolo de exclusão. A exposição recente a agentes tóxicos ou drogas citostáticas, a deficiência de vitamina B12 e ácido fólico e o uso recente de fatores de crescimento são considerados fatores de exclusão absolutos. O etilismo, a anemia da doença crônica, distúrbios metabólicos, hormonais, auto-imunes e infecções virais devem ser excluídos ou interpretados com cautela. Outras doenças da célula-tronco hematopoética devem ser consideradas, sobretudo na SMD hipocelular. Em alguns casos, um período mínimo de seis meses de seguimento é necessário.

Síndromes mielodisplásicas; diagnóstico; citopenias; dispoese


Myelodysplastic syndromes are common in elderly people. Laboratory presentation includes isolated macrocytosis, anemia, isolated or combined cytopenias and dysplastic bone marrow. Diagnosis depends on exclusion of non-clonal and reversible disorders. Especially in lowest grade of the disease, with no blast excess, no ringed sideroblasts, no clonal cytogenetic abnormalities the diagnosis requires an exclusion protocol. Recent exposure to toxin, cytotoxic drugs or growth factor therapy and vitamin B12 or folate deficiency are considered absolute exclusion factors precluding the definite diagnosis. Alcohol abuse, chronic inflammatory states, auto-immune disorders, metabolic dysfunctions, hormonal disorders and viral infections must all be ruled out or interpreted with caution. Some diseases of the pluripotential stem cell must also be considered especially in hypocellular MDS. Moreover, in some cases a 6-month follow-up is necessary before a diagnosis be established.

Myelodysplastic syndromes; diagnosis; cytopenias; dyspoiesis


ARTIGO

Síndromes mielodisplásticas - diagnóstico de exclusão

Myelodysplastic syndromes - diagnosis by exclusion

Silvia M. M. Magalhães

Professora adjunta do Departamento de Medicina Clínica - Universidade Federal do Ceará/Hemoce

Correspondência Correspondência: Silvia M. M. Magalhães Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará - Hemoce Av. José Bastos, 3390 60440-261 - Fortaleza-CE Tel.: (85) 3101-2272 - Fax: (85) 3101-2274 E-mail: silviamm@ufc.br

RESUMO

As síndromes mielodisplásticas são comuns nos indivíduos com idade superior a 60 anos e se apresentam laboratorialmente com macrocitose isolada, anemia, citopenias isoladas ou combinadas e alterações morfológicas na medula óssea. O diagnóstico depende da exclusão de causas não clonais e reversíveis. Especialmente nas fases mais precoces da doença, na ausência de excesso de blastos, sideroblastos em anel ou alteração citogenética clonal, o diagnóstico requer um protocolo de exclusão. A exposição recente a agentes tóxicos ou drogas citostáticas, a deficiência de vitamina B12 e ácido fólico e o uso recente de fatores de crescimento são considerados fatores de exclusão absolutos. O etilismo, a anemia da doença crônica, distúrbios metabólicos, hormonais, auto-imunes e infecções virais devem ser excluídos ou interpretados com cautela. Outras doenças da célula-tronco hematopoética devem ser consideradas, sobretudo na SMD hipocelular. Em alguns casos, um período mínimo de seis meses de seguimento é necessário.

Palavras-chave: Síndromes mielodisplásicas; diagnóstico; citopenias; dispoese.

ABSTRACT

Myelodysplastic syndromes are common in elderly people. Laboratory presentation includes isolated macrocytosis, anemia, isolated or combined cytopenias and dysplastic bone marrow. Diagnosis depends on exclusion of non-clonal and reversible disorders. Especially in lowest grade of the disease, with no blast excess, no ringed sideroblasts, no clonal cytogenetic abnormalities the diagnosis requires an exclusion protocol. Recent exposure to toxin, cytotoxic drugs or growth factor therapy and vitamin B12 or folate deficiency are considered absolute exclusion factors precluding the definite diagnosis. Alcohol abuse, chronic inflammatory states, auto-immune disorders, metabolic dysfunctions, hormonal disorders and viral infections must all be ruled out or interpreted with caution. Some diseases of the pluripotential stem cell must also be considered especially in hypocellular MDS. Moreover, in some cases a 6-month follow-up is necessary before a diagnosis be established.

Key words: Myelodysplastic syndromes; diagnosis; cytopenias, dyspoiesis.

As síndromes mielodisplásticas (SMD) acometem indivíduos com idade média entre 65 e 70 anos e se caracterizam, sobretudo, pela associação de hematopoese displástica e citopenias periféricas. Essas alterações são, necessariamente, persistentes (4 a 8 semanas), inexplicadas e refratárias. Essa apresentação, no entanto, não constitui evidência inequívoca de doença clonal, o que torna necessária a exclusão de causas reversíveis e não clonais e o diagnóstico diferencial com outras doenças da célula-tronco hematopoética.

A SMD é uma condição de incidência crescente com a idade, atualmente considerada a doença onco-hematológica mais comum, superando, em adultos, as leucemias agudas mielóide e linfóide e as leucemias crônicas mielóide e linfóide.1

A anemia isolada é a apresentação mais comumente observada na SMD. Em indivíduos com idade superior a 60 anos, a anemia é um problema clínico comum, com causas identificadas na maioria dos casos e, portanto, não atribuída ao processo fisiológico de senescência.2 As alterações próprias da hematopoese do idoso, entretanto, tornam o ambiente medular especialmente favorável à emergência de clones anormais e mielodisplasia. Estudos de prevalência e causas de anemia nesse grupo populacional evidenciaram que as deficiências nutricionais e a anemia da doença crônica são as causas mais comuns e que, em 5% a 6% dos casos, um diagnóstico de SMD pode ser estabelecido.

A patogênese da doença é um processo de múltiplas etapas. Nas fases mais precoces da doença, caracterizadas por ausência de excesso de blastos, as alterações podem ser sutis, com graus mínimos de displasia. Nos casos, portanto, que se apresentam com macrocitose isolada, anemia ou citopenias isoladas ou combinadas, persistentes, não responsivas e inexplicadas, na ausência de sideroblastos em anel, excesso de blastos ou alteração citogenética clonal, o diagnóstico deve ser de exclusão e seguir diretrizes práticas3 (Figura 1).


A avaliação inicial desses pacientes requer anamnese, exame físico, hemograma e contagem de reticulócitos, análise citológica, citoquímica e histopatológica da medula óssea, incluindo a avaliação da rede de reticulina, o estudo citogenético, a dosagem de eritropoetina endógena e a exclusão de causas não clonais que, com freqüência, cursam com citopenias e/ou dispoeses. Desse protocolo de investigação constam alguns critérios de exclusão considerados absolutos: as deficiências nutricionais, de vitamina B12 e ácido fólico, a exposição recente, nas últimas três a quatro semanas, a substâncias tóxicas ou drogas tais como agentes citotóxicos e fatores de crescimento.

A macrocitose isolada pode ser a apresentação inicial da SMD. Nos indivíduos com idade superior a 60 anos que se apresentam com macrocitose, mais de uma causa pode ser identificada, sendo mais comum a sua ocorrência em resposta a drogas (zidovudina, quimioterápicos, azatioprina, anticonvulsivantes, etc) e etilismo. A SMD é causa em um percentual inferior a 5%. Os casos de anemia megaloblástica apresentam, em geral, VCM superior a 120 fL.4

Níveis séricos de vitamina B12 têm pouca especificidade para o intervalo entre 100 pg/ml e 400 pg/ml e, portanto, limitações para o diagnóstico, sobretudo na apresentação subclínica. Nesses casos, o diagnóstico requer a evidência da deficiência funcional, através dos níveis elevados de ácido metilmalônico (AMM) e homocisteína. A não disponibilidade desses testes complementares, mesmo na vigência de níveis séricos normais, torna necessário o teste terapêutico5 (sugestão: administração semanal de 1.000 mg por via intramuscular por oito semanas).

A presença de sideroblastos em anel é uma forma de diseritropoese que pode ser observada no etilismo, em intoxicações ocupacionais pelo chumbo ou benzeno, após uso de drogas como os tuberculostáticos, cloranfenicol e penicilamina, na deficiência de cobre e ainda na anemia sideroblástica congênita.

Além da eritropoetina, outros hormônios têm influência direta ou indireta na eritropoese. É parte do protocolo de exclusão a dosagem dos hormônios tireoidianos (T4 livre e TSH), sobretudo nos pacientes que apresentam macrocitose não relacionada à deficiência de vitamina B12 ou folato.

Muitos mecanismos, além do efeito tóxico direto, contribuem para as alterações na hematopoese observadas no etilismo, e resultam em citopenias e alterações morfológicas: restrição nutricional, prejuízo no ciclo entero-hepático de folato, malabsorção de vitamina B12 secundária à pancreatite crônica e hiperesplenismo secundário à hipertensão portal. A macrocitose é um achado freqüente, devido a alterações na composição lipídica da membrana.

A infecção pelo vírus da imunodeficiência adquirida tem destaque no protocolo de exclusão. A medula é, em geral, hipercelular, e alterações displásticas, em pelo menos uma linhagem hematopoética, podem ser observadas em até 80% dos pacientes acometidos.

A anemia da doença crônica se associa a uma variedade de condições inflamatórias crônicas, infecciosas, neoplásicas e, ainda, doenças de base de apresentação subclínica ou ainda não identificadas. A anemia, acompanhada de reticulocitopenia, é raramente severa e, por ser muito freqüente e se acompanhar de alterações reacionais da hematopoese, merece atenção no diagnóstico diferencial. A patogênese é multifatorial e inclui elevação das citoquinas inflamatórias com estímulo da produção de hepcidina e conseqüente alteração no metabolismo do ferro. O ferro sérico e a concentração de transferrina estão diminuídos, na presença de ferritina normal ou elevada.

Fazem parte, portanto, da investigação laboratorial de um paciente que se apresenta com citopenias e alterações displásticas:

• dosagem de vitamina B12 e ácido fólico e se possível dosagem de AMM

• dosagem de ferro sérico e capacidade ferropéxica

• ferritina sérica

• dosagem de hormônios tireoidianos (T4 livre e TSH)

• screening para disfunções metabólicas por insuficiência hepática ou renal

• sorologias para hepatites B e C e HIV

• FAN

• Coombs direto

• teste de HAM e, preferencialmente, pesquisa da deficiência de CD55 e CD59 por citometria de fluxo.

É necessário ainda considerar doenças da célula progenitora hematopoética que se correlacionam e podem constituir situações de diagnóstico difícil. Na presença de medula óssea hipocelular, o diagnóstico diferencial entre anemia aplástica ou hemoglobinúria paroxística noturna e SMD hipoplástica pode ser difícil. O sangue periférico e a medula óssea de pacientes portadores de SMD podem apresentar um clone com deficiência de proteínas de ancoragem em 20% a 25% dos casos. Doenças clonais como as desordens mieloproliferativas atípicas ou mistas mielodisplásticas/mieloproliferativas devem ser consideradas.6,7 Se presentes, as alterações citogenéticas constituem um importante recurso para o diagnóstico diferencial e prognóstico. Com freqüência, somente a evolução da condição permite a distinção entre entidades que se sobrepõem. Nesses casos, e nas situações em que se observam citopenias inexplicadas e persistentes, na ausência de alterações morfológicas ou citogenéticas, o National Comprehensive Cancer Network (NCCN) recomenda um período de observação mínimo de seis meses para o diagnóstico de SMD8 (Figura 2).


O diagnóstico de SMD, com seu potencial para insuficiência medular progressiva e evolução para leucemia aguda, depende, portanto, do processo de exclusão de pelo menos 50% dos pacientes que se apresentam com quadro de citopenias e alterações morfológicas medulares.

Recebido: 06/03/2006

Aceito após modificações: 11/09/2006

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: não declarado

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    The Myelodysplastic Syndromes Foundation's Awareness Program for 2005-2006: Understanding MDS – a Primer for Practicing Clinicians, segment 1 and 2.
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  • 8
    National Comprehensive Cancer Network. Clinical practice guidelines in oncology: Myelodysplastic Syndromes. Michigan, 2006. Version 3.2006.
  • Correspondência:

    Silvia M. M. Magalhães
    Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará - Hemoce
    Av. José Bastos, 3390
    60440-261 - Fortaleza-CE
    Tel.: (85) 3101-2272 - Fax: (85) 3101-2274
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2006

    Histórico

    • Aceito
      09 Nov 2006
    • Recebido
      06 Mar 2006
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