Acessibilidade / Reportar erro

Alterações moleculares em síndrome mielodisplásica

Molecular abnormalities in myelodysplastic syndrome

Resumos

A síndrome mielodisplásica (SMD) representa um grupo heterogêneo de doenças hematopoéticas clonais. As alterações cromossômicas observadas em SMD foram o ponto de partida para uma série de estudos para a caracterização da patogênese molecular nessa doença. A perda de material genético leva à hipótese de inativação de genes supressores tumorais (GST), mas essa teoria não explica o evento inicial desencadeador da vantagem de crescimento das células progenitoras hematopoéticas, estando outros mecanismos envolvidos, dos quais sobressaem a ativação de oncogenes, alteração de vias de sinalização e fatores de transcrição. Mutações de oncogenes, como RAS, P53, PDGF, FLT3 e MLL, dentre outros, podem contribuir para o desenvolvimento da SMD. A mutação em tandem do FLT3 é evento genético tardio no curso da doença e os pacientes portadores da mesma tendem a apresentar prognóstico desfavorável e transformação iminente para leucemia aguda. Tanto aberrações qualitativas como quantitativas de fatores de transcrição induzem o desequilíbrio ou bloqueio de diferenciação da célula hematopoética, que, por sua vez, se traduz em hematopoese ineficaz. Alterações epigenéticas são caracterizadas por metilação de DNA que tem papel no controle da expressão gênica. Hipermetilação e inativação de genes reguladores exercem função no desenvolvimento da doença. SMD de alto risco está associada à elevada prevalência de inativação do gene supressor tumoral p15INK4B por hipermetilação do promotor. Encurtamento do telômero correlaciona-se a cariótipos complexos, indicando instabilidade genômica e pior prognóstico.

Síndrome mielodisplásica; prognóstico; FISH; FLT3; LOH


Myelodysplastic syndrome (MDS) is a heterogenous group of clonal hematopoietic disorders. Chromosomal abnormalities detected in this disease were the start to many studies in order to characterize molecular pathogenesis. The loss of genetic material observed in most patients with MDS leads to the hypothesis of tumor suppressor genes (TSG), but this theory does not explain the initial event that underlies growth advantage of hematopoietic progenitor cells, though, different mechanisms are involved such as oncogene activation, altered signaling components and transcription factors. Oncogene mutations, such as RAS, P53, PDGF, FLT3 and MLL, for instance, may contribute to the development of MDS. Tandem mutation of FLT3 is a genetic event that occurs late in the course of the disease and these patients tend to present unfavorable prognosis and imminent transformation into acute myeloid leukemia. Quantitative as well as qualitative abnormalities of transcription factors are detected in MDS and induce the unbalance or block in the differentiation of hematopoietic cells, that results in ineffective hematopoiesis. Epigenentic alterations are characterized by DNA methylation that exerts a role in controlling genic expression. Hypermethylation and inactivation of regulating genes act in the development of the disease. There is a high risk of MDS when p15INK4B is inactivated due to hypermethylation of its promoter. Telomere shortening correlates with complex karyotypes indicating genomic instability and poor prognosis.

Chromosome; myelodysplasic syndrome; FISH; PCR; prognosis; FLT3; LOH


ARTIGO

Alterações moleculares em síndrome mielodisplásica

Molecular abnormalities in myelodysplastic syndrome

Maria de Lourdes L. F. Chauffaille

Professora adjunta, livre-docente, Disciplina de Hematologia e Hemoterapia, Unifesp/EPM; Assessora médica do Fleury-Centro de Medicina Diagnóstica

Correspondência Correspondência: Maria de Lourdes L. F. Chauffaille Rua Botucatu 740, 3º andar 04023-900 – São Paulo, SP Tel.: 55-11-5576-4240 E-mail: chauffaill@hemato.epm.br

RESUMO

A síndrome mielodisplásica (SMD) representa um grupo heterogêneo de doenças hematopoéticas clonais. As alterações cromossômicas observadas em SMD foram o ponto de partida para uma série de estudos para a caracterização da patogênese molecular nessa doença. A perda de material genético leva à hipótese de inativação de genes supressores tumorais (GST), mas essa teoria não explica o evento inicial desencadeador da vantagem de crescimento das células progenitoras hematopoéticas, estando outros mecanismos envolvidos, dos quais sobressaem a ativação de oncogenes, alteração de vias de sinalização e fatores de transcrição. Mutações de oncogenes, como RAS, P53, PDGF, FLT3 e MLL, dentre outros, podem contribuir para o desenvolvimento da SMD. A mutação em tandem do FLT3 é evento genético tardio no curso da doença e os pacientes portadores da mesma tendem a apresentar prognóstico desfavorável e transformação iminente para leucemia aguda. Tanto aberrações qualitativas como quantitativas de fatores de transcrição induzem o desequilíbrio ou bloqueio de diferenciação da célula hematopoética, que, por sua vez, se traduz em hematopoese ineficaz. Alterações epigenéticas são caracterizadas por metilação de DNA que tem papel no controle da expressão gênica. Hipermetilação e inativação de genes reguladores exercem função no desenvolvimento da doença. SMD de alto risco está associada à elevada prevalência de inativação do gene supressor tumoral p15INK4B por hipermetilação do promotor. Encurtamento do telômero correlaciona-se a cariótipos complexos, indicando instabilidade genômica e pior prognóstico.

Palavras-chave: Síndrome mielodisplásica; prognóstico; FISH; FLT3; LOH.

ABSTRACT

Myelodysplastic syndrome (MDS) is a heterogenous group of clonal hematopoietic disorders. Chromosomal abnormalities detected in this disease were the start to many studies in order to characterize molecular pathogenesis. The loss of genetic material observed in most patients with MDS leads to the hypothesis of tumor suppressor genes (TSG), but this theory does not explain the initial event that underlies growth advantage of hematopoietic progenitor cells, though, different mechanisms are involved such as oncogene activation, altered signaling components and transcription factors. Oncogene mutations, such as RAS, P53, PDGF, FLT3 and MLL, for instance, may contribute to the development of MDS. Tandem mutation of FLT3 is a genetic event that occurs late in the course of the disease and these patients tend to present unfavorable prognosis and imminent transformation into acute myeloid leukemia. Quantitative as well as qualitative abnormalities of transcription factors are detected in MDS and induce the unbalance or block in the differentiation of hematopoietic cells, that results in ineffective hematopoiesis. Epigenentic alterations are characterized by DNA methylation that exerts a role in controlling genic expression. Hypermethylation and inactivation of regulating genes act in the development of the disease. There is a high risk of MDS when p15INK4B is inactivated due to hypermethylation of its promoter. Telomere shortening correlates with complex karyotypes indicating genomic instability and poor prognosis.

Key words: Chromosome; myelodysplasic syndrome; FISH; PCR; prognosis; FLT3; LOH.

A síndrome mielodisplásica (SMD) representa um grupo heterogêneo de doenças hematopoéticas clonais caracterizadas por hematopoese displásica e manifesta por citopenia periférica apesar de medula hipercelular. A hematopoese ineficaz deve-se, aparentemente, a um microambiente medular anormal que induz à morte precoce das células progenitoras hematopoéticas (CPH) por apoptose. A proliferação clonal se dá em conseqüência a mutações somáticas que conferem vantagem proliferativa às células, embora a base molecular da transformação para a leucemia aguda não esteja completamente compreendida.1,2

No entendimento atual, o modelo de patogênese molecular baseia-se no fato de uma CPH normal sofrer insultos que a levam a adquirir sucessivas anomalias genéticas até alcançar a transformação maligna e expansão clonal. Mutações precoces na CPH podem causar bloqueio de diferenciação, que leva à displasia, enquanto defeitos subseqüentes, que afetam a proliferação mielóide, podem causar expansão clonal das células aberrantes e franca leucemia mielóide aguda (LMA).3

Será feita, inicialmente, breve explanação de algumas técnicas citogenético-moleculares e moleculares que auxiliam na condução de casos de SMD e, a seguir, serão abordadas certas alterações moleculares importantes nessa doença seja porque oferecem alguma luz sobre a fisiopatologia, as manifestações clínicas, a transformação ou a terapia.

Aspectos técnicos

A citogenética molecular compreende as técnicas de hibridação in situ por fluorescência (FISH), hibridação genômica comparativa (CGH), cariotipagem espectral (SKY) e FISH múltiplo (M-FISH), dentre outras. Já os métodos moleculares propriamente ditos englobam diversas técnicas, tais como: reação em cadeia da polimerase (PCR), reação em cadeia da polimerase por transcriptase reversa (RT-PCR) e seqüenciamento.

FISH é a técnica citogenético-molecular que utiliza sondas, ou seja, seqüências de DNA, complementares ao que se pretende estudar. Através da FISH, sondas marcadas com fluorocromos possibilitam a detecção de loci ou translocações tanto no cromossomo metafásico quanto interfásico.4

As alterações cromossômicas associadas à SMD são, na imensa maioria das vezes, detectadas pela citogenética clássica, mas há casos, em particular aqueles com clones pequenos, nos quais a anormalidade cromossômica não é identificada pelo cariótipo convencional, mas diagnosticada por FISH. Com efeito, já foi demonstrado que clones pequenos são mais bem detectados por citogenética molecular (FISH).2,5 Casos sem metáfases também podem ter a alteração revelada por essa técnica.2,5 Hoje, na prática clínica, devido ao seu custo, temos recomendado a realização de FISH em situações específicas nas quais o resultado poderá oferecer informações que venham a modificar a opção terapêutica.

O resultado de FISH deve ser expresso de acordo com a nomenclatura estabelecida, isto é, a International System for Chromosome Nomenclature (ISCN).6

A hibridação genômica comparativa (CGH) permite uma visão ampla do desequilíbrio genômico sem prévio conhecimento das regiões cromossômicas de interesse, independentemente da disponibilidade de metáfases nas amostras a serem investigadas. Para a análise por CGH, o genoma da célula tumoral e o de célula controle normal são usados como sondas fluoresceinadas e hibridados contra cromossomos normais em metáfase. Pela comparação da intensidade de sinais ao longo dos cromossomos hibridados podem ser identificadas alterações relativas ao número de cópias de regiões cromossômicas dentro do genoma tumoral.4

A avaliação do desequilíbrio genômico pela técnica de CGH é deveras interessante ainda que não se tenha tornado método rotineiro, pois o grande inconveniente está na necessidade da amostra ser praticamente homogênea, fato obviamente fácil de ocorrer em tumor sólido, mas não necessariamente freqüente na medula óssea tomada por neoplasias hematopoéticas nas quais há a coexistência e co-habitação de células clonais e não clonais residuais da linhagem celular não acometida. Alguns trabalhos realizados em neoplasias hematopoéticas demonstraram que, embora CGH não seja a metodologia ideal para descrever as alterações, particularmente as translocações, que passam despercebidas por esta metodologia, ela é extremamente útil para oferecer informação da correta localização de aberrações, prover dados em amostras de insucesso citogenético ou complementar a análise.7

Cariotipagem espectral (SKY) e FISH múltiplo (M-FISH) são técnicas pelas quais é possível identificar simultaneamente os 24 pares de cromossomos em diferentes cores graças à associação de três procedimentos: marcação por sondas (combinação de cinco fluorocromos), utilização de equipamentos para a aquisição de imagens (que permite a distinção das nuances de cores ou a falsa coloração perceptível ao olho humano) e análise.4,7

As informações provenientes dessas metodologias mais modernas têm se traduzido fundamentalmente nas seguintes evidências: alguns cromossomos tidos como aparentemente normais estão envolvidos em translocações; o refinamento dos pontos de quebra e a detecção de novas translocações que facilitam a identificação de genes.

Dentre as diversas técnicas moleculares, a PCR e a RT-PCR são as mais freqüentemente utilizadas em SMD. A PCR (reação em cadeia da polimerase), como o próprio nome diz, constitui-se na produção de milhares de cópias complementares a uma região específica do DNA. Já a RT-PCR é o mesmo processo, mas antecedido por uma etapa na qual o DNA complementar é feito a partir de um modelo de RNA usando a enzima transcriptase reversa. O seqüenciamento constitui-se na determinação da ordem exata dos nucleotídeos de um dado segmento do DNA ou gene. A ordem dos pares de base na fita de DNA direciona qual proteína será produzida.

Assim, a escolha da técnica molecular a ser utilizada dependerá da anormalidade que se pretende estudar, a exemplo da pesquisa da mutação interna em tandem (MIT) do gene FLT3, que é feita por PCR, podendo ou não ser realizada, a seguir, a análise de fragmento ou o seqüenciamento, posto que essa mutação reflete um ganho de função.

Alterações moleculares

As alterações cromossômicas observadas em SMD desencadearam uma série de estudos para a caracterização da patogênese molecular nessa doença.8

A perda de material genético, tanto na forma de monossomia como deleção, observada na maioria dos pacientes com SMD, leva à hipótese de inativação de genes supressores tumorais (GST). O modelo de lesões em múltiplos passos exige uma primeira alteração seguida de outra subseqüente. Assim, uma cópia do gene estaria perdida pela deleção ou monossomia e a outra sofreria inativação por mutação de ponto ou perda de expressão por metilação.2,3

Nesse contexto, a síndrome 5q- (descrita no capítulo de alterações citogenéticas) representa a perda de vários genes que codificam fatores de crescimento hematopoéticos e receptores, dentre os quais figuram: IL-4, IL-5, IRF1, IL3, CSF-2, IL9, EGR-1, CD 14 e CSF-1R. A perda homozigótica de um desses genes é, portanto, considerada como possível mecanismo na patogênese da doença mielóide com deleção 5q.9,10

O gene IRF-1, cujo produto tem atividade antioncogênica, está mapeado no 5q31.1, é postulado como um candidato a GST e é um marcador primitivo de diferenciação mielóide induzida por IL6 e regulador negativo da proliferação celular.11,12

O EGR-1 é uma proteína em dedo de zinco necessária para a diferenciação da linhagem monocítico-macrofágica. Além disso, tem função na diferenciação de blastos mielóides e é um regulador do crescimento celular. Devido às suas múltiplas funções, tem sido sugerido que a deleção do EGR-1 poderia ter algum papel nas malignidades mielóides.13

CSF-1R, por sua vez, age na regulação do crescimento de células mielóides e, aparentemente, não possui função de supressor tumoral.10

A del 20q e a monossomia 7 ou deleção 7q exibem modelo semelhante ao da 5q-. Ainda não se sabe quais genes situados no cromossomo 7 seriam os responsáveis pelo fenótipo da doença, porém a região alvo é a 7q22.1.2,3

Os genes supressores tumorais candidatos que se localizam dentro da região 20q deletada são o TPO1 e o PLC1, que têm função na transdução de sinal.3

Já a síndrome de deleção do braço curto do cromossomo 17 (17p-) (também discutida no capítulo de alterações cromossômicas), abarca o gene P53, um GST localizado no 17p13.1, que regula a replicação do DNA, proliferação e morte celular.2,14

Em relação à deleção 13q, foi depositado interesse no gene RB1, que está deletado apenas em alguns casos de SMD.15

Mas, seja qual for o gene ou genes de importância nessa questão que venham a ser qualificados, a teoria do GST não explica o evento inicial, desencadeador da vantagem de crescimento das células progenitoras hematopoéticas. Portanto, outros mecanismos estão envolvidos e quiçá caiba aos GST apenas o papel na progressão da doença, e em parte dos casos.

O estudo de microssatélites (que são regiões de repetições (C-A)n curtas, geralmente menores que 100 pares de base, existentes em todo o genoma humano) pela técnica da PCR (reação em cadeia da polimerase), tem sido o método usado para a detecção de deleções cromossômicas ou a perda de heterozigose (LOH) em regiões alvo em neoplasias mielóides.16

O estudo por PCR microssatélite é útil para testar o estado de reparo do DNA e os GST, os quais, se deficientes, promovem a instabilidade genética. A LOH traduz estado de homozigose de determinada região cromossômica e aponta para a presença de um GST inativado in loco ou próximo que deve estar envolvido na transformação maligna. Instabilidade microssatélite significa a ocorrência de novos alelos no DNA neoplásico quando comparado ao DNA de tecido não acometido do próprio indivíduo. Instabilidade genética inerente à doença é tida com a base para o acúmulo de mutações somáticas na SMD.12,16

Foi observada a LOH no microssatélite intragênico no gene IRF-1, em pacientes com LMA evoluída de SMD e LMA relacionada à terapia, sugerindo que a perda desse microssatélite intragênico pode desempenhar papel importante na progressão para LMA.12

Entretanto, outros defeitos podem explicar as alterações nas quais não há a perda de material genômico, a exemplo de casos com cariótipo normal ou de acréscimo de material genético, menos freqüentes que as perdas na SMD, e nessas situações se impõem os estudos moleculares. Assim, além dos GST, os oncogenes agem em consonância para alterar o controle da regulação do crescimento celular.3

Mutações de oncogenes, como RAS, P53, PDGF e CSF-1R, dentre outros, podem também contribuir para o desenvolvimento da SMD.3

As alterações genéticas em algumas moléculas da via de sinalização RAS são responsáveis, em parte, pela patogênese na SMD e nas leucemias. São divididas em duas categorias: receptores tirosino-quinase, incluindo FLT3, CSF e KIT, e RAS, proteínas relacionadas a GAP e NF1.3

O gene RAS é um componente da via de sinalização para a proliferação celular e é ativado por receptores de tirosino-quinase estimulados por ligantes extracelulares. As mutações do gene N-RAS são detectadas em 20% a 30% das leucemias e em 10% a 15% das SMD e estão associadas a sobrevida curta e maior probabilidade de transformação em LMA.3

O gene FLT3 codifica um receptor tirosino-quinase que está envolvido na proliferação e diferenciação de precursores hematopoéticos. A duplicação interna em tandem desse gene é observada como mutação somática em 10% das SMD. Essa anormalidade é evento genético tardio no curso da doença, e os pacientes portadores da mesma tendem a apresentar prognóstico desfavorável e transformação em leucemia aguda.3,17,18

O gene P53 (já discutido no que tange às perdas cromossômicas no contexto dos GST), está inativado em 5%-10% das SMD, as quais se apresentam em estágios clínicos avançados e com cariótipos instáveis ou complexos, indicando que as mutações podem ter função no progresso da SMD para leucemia.

O gene MLL, localizado no 11q23, está amplificado em porção significativa de casos de SMD. Esse gene é reconhecido como importante componente das proteínas de fusão geradas por translocações, portanto freqüente nas LMA, nas quais participa de rearranjos com mais de 40 loci cromossômicos diferentes.19 Tal amplitude de rearranjos deve-se à homodimerização de proteínas quiméricas, que delineia a promiscuidade do MLL na sua predisposição a fundir-se com vários parceiros. Na SMD não aparecem todos esses rearranjos, mas alguns, como: t(11;19)(q23;p31) e t(11;16)(q23;p13), que geram genes quiméricos, MLL/MEN(ELL) e MLL/CBP, respectivamente, observáveis tanto em casos primários como secundários a terapia.19

Contrastando com esses rearranjos, a amplificação do MLL também representa um mecanismo de ativação oncogênica. A ativação aberrante, em especial em SMD, é de importância clínica pela conseqüente desregulação dos alvos de ação do gene. Com efeito, há estreita relação entre amplificação do gene MLL em SMD e em LMA com 5q- no contexto de cariótipos complexos, resultando em taxa de sobrevida total curta. Entretanto, além dos casos de cariótipos complexos, a amplificação do MLL tem sido igualmente observada em SMD com cariótipo normal.19

O gene MLL tem como alvo, dentre vários, os genes HOXA9 e MEIS1, denotando que sua alteração induz a inativação inapropriada de outros genes importantes na patogênese da LMA e SMD.19

Genes homeobox (HOX, em humanos) são genes homólogos aos de Drosophila e observados virtualmente em quase todas as espécies. Genes HOX controlam a morfogênese, nos estágios iniciais do desenvolvimento embrionário, e a hematopoese. Portanto, a expressão aberrante desses genes contribui para a patogênese leucêmica.19

O gene NUP98, localizado no 11p15, é uma nucleoporina que está envolvida no transporte de proteínas e RNA. Diversos genes quiméricos com NUP98 foram identificados em SMD primária e secundária. Além da translocação t(7;11)(p15;p15) em LMA, que resulta na fusão dos genes NUP98 (11p15) e HOXA9 (7p15), outras envolvendo o gene HOXA9 (HOXA7, HOXA10) foram descritas. Porém, as translocações ou a amplificação do gene MLL levam adicionalmente à desregulação do HOXA9 ou de outros.19

O gene NF1 é observado mutado em SMD de crianças.20

Dentre os genes reguladores da transcrição nos quais são detectadas alterações na SMD/LMA encontram-se: AML1, C/EBPa, TEL, MLL e EV1. AML1, C/EBPa e TEL, que são essenciais na hematopoese ou diferenciação.3

A fusão TEL(ETV6)/PDGFb, observada por ocasião da t(5;12)(q33;p13) e manifesta em doença mieloproliferativa/mielodisplásica (LMMC com componente de eosinofilia) traduz-se pela ativação do domínio tirosino-quinase do PDGFb pelo ETV6, com conseqüente transformação celular.2,21,22

A família EVI-1, que envolve alterações estruturais no 3q21 (riboforina-1) e 3q26 (EVI-1), também denominada síndrome 3q devido às características de dismegacariocitopoese, contagem de plaquetas elevada e prognóstico desfavorável, resulta da expressão aberrante do EVI-1 mediada por elementos promotores no gene riboforina-1.2,21,22

O gene AML1 (Runx) está freqüentemente envolvido em translocações associadas à LMA. Mutações nesse gene induzindo "perda de significado ou função" (missense) causam a doença familiar de plaquetas (FPD), na qual os indivíduos têm predisposição à LMA devido à haploinsuficiência do AML1 por defeito plaquetário congênito, autossômico dominante, e que predispõe à aquisição de mutações adicionais que causam leucemia. Em SMD, o gene AML1 é alvo, ainda que menos freqüentemente, de mutações que levam a fenótipo de perda de função e também a efeito dominante negativo na função normal do AML1.23

Com isso, tanto aberrações qualitativas como quantitativas de fatores de transcrição são detectadas em SMD e LMA e induzem o desequilíbrio ou bloqueio de diferenciação da célula hematopoética, que por sua vez se traduz em hematopoese ineficaz ou disematopoese da SMD.3

Além de todos os fenômenos envolvidos até aqui descritos, um dos mecanismos invocados como explicativos da aparente discrepância entre a celularidade da medula óssea e as citopenias periféricas é a apoptose que se apresenta aumentada na SMD. Diversas citocinas ou ligantes conhecidos por suas atividades pró-apoptóticas, como a interleucina 1b, o fator de necrose tumoral (TNF) e a ligante-Faz estão ativados em pacientes com SMD.24

Pode haver também um mecanismo imune para a falência da medula, já que há associação entre doença auto-imune e SMD. Já foram avaliados tanto a expressão como o significado funcional do fator de crescimento endotelial (VEGF) em SMD. Desregulação de citocinas, dentre as quais o fator de necrose tumoral alfa (TNF-a) na medula, tem sido considerada como responsável pela hematopoese ineficaz.2,25,26

As alterações epigenéticas, que são fenômenos importantes para a expressão de genes desde a embriogênese, também têm papel na SMD.27,28 A remodelação da cromatina é uma forma de regulação da expressão gênica e função protéica, podendo reprimir permanentemente a expressão de um gene, ou seja, causar o "silenciar" de um gene. O silenciar epigenético, embora seja mecanismo normal para a inativação de um número limitado de genes, é essencial para o desenvolvimento de mamíferos.23 Dessa forma, a regulação gênica é reservada para situações específicas como a inativação de um cromossomo X nas mulheres e de alguns genes nos quais apenas uma das duas cópias é expressa na dependência da origem, isto é, se paterna ou materna, processo esse denominado de impressão genética. Há dois mecanismos moleculares principais para a remodelação da cromatina em mamíferos: metilação do DNA e modificações na histona.23,27

A metilação é mediada pela adição bioquímica de grupo CH3 a várias moléculas, sendo a base citosina o alvo fisiológico específico em células de mamíferos. Segue-se, nesse processo, a modificação da histona, exercida pelas histona-deacetilases e histona-metilases que são recrutadas para remodelarem a cromatina, tornando-a invisível para os fatores de transcrição.23,28

A hipermetilação aberrante de DNA está presente na SMD. Esse mecanismo silenciador de numerosos genes supressores tumorais foi ligado ao desenvolvimento de vantagem proliferativa das células malignas. Alguns dos genes mais estudados são os inibidores de quinases ciclina-dependentes, tais como, p15, p16, p21 e p57. O p15INK4B e p16INK4A codificam as quinases ciclina-dependentes 4 e 6 e controlam a progressão do ciclo celular da fase G1 a S. Hipermetilação do DNA das ilhas de CpG da região promotora do p15 está associada à perda de expressão desse gene. Foi observada relação entre a porcentagem de blastos da medula e hipermetilação de p15. Pacientes com hipermetilação, ao diagnóstico, apresentaram sobrevida mais curta que aqueles com metilação normal. Além disso, pacientes com doença de baixo risco não apresentaram metilação do p15, enquanto nos de alto risco a incidência variou de 23% a 30%. 23,27-29

Telômeros são repetições de nucleotídeos (seqüências palindrômicas) que formam a extremidade dos cromossomos e têm como principal função a manutenção da estabilidade estrutural do cromossomo. Cada vez que a célula sofre divisão os telômeros vão se encurtando e não se regeneram, chegando a um ponto em que, de tão encurtados, não mais permitem a replicação do cromossomo e a célula perde sua capacidade de divisão. A ação da telomerase é essencial para a manutenção do telômero. O gene da transcriptase reversa da telomerase (hTERT) está diferentemente expresso em doenças de CPH com níveis significativamente mais altos em anemia refratária.30

Em SMD, a atividade da telomerase é, aparentemente, insuficiente para compensar o encurtamento do telômero, e o encurtamento do telômero correlaciona-se com cariótipos complexos, indicando instabilidade genômica e pior prognóstico.30

O estudo da expressão diferencial de genes por microarranjos (microarray) é uma abordagem potencialmente informativa na investigação da patogênese molecular da SMD. Estudos já mostraram que os mecanismos moleculares que resultam na monossomia 7 e na trissomia 8 implicam vias patogênicas diferentes. Esse tipo de estudo oferecerá em breve novas informações acerca da SMD.31

Em conclusão, apesar de todos os avanços, não foram ainda elucidados quais os mecanismos moleculares que desencadeiam a SMD ou sua transformação em LMA. Estudos com modelos animais talvez possam auxiliar na compreensão, porém, fundamentalmente, apenas o conhecimento mais aprofundado da genética e da biologia desse conjunto de doenças permitirá um discernimento do que realmente importa na gênese e evolução da doença.

Recebido: 31/05/2006

Aceito após modificações: 11/09/2006

Avaliação: Editor e dois revisores externos.

Conflito de interesse: não declarado

  • 1. Mufti GJ. Pathobiology, classification, and diagnosis of myelodysplastic syndrome. Best Practice Res Clin Hematol 2004;17(4):543-57.
  • 2. Steensma DP, Bennett JM. The myelodysplastic syndrome: diagnosis and treatment. Mayo Clin Proced 2006 81(1):104-130.
  • 3. Hirai H. Molecular pathogenesis of MDS. International Journ of Hematology 2002;76: 213- 21.
  • 4. Chauffaille MLLF. Anormalidades citogenéticas em leucemia mielóide aguda, síndrome mielodisplásica, síndrome mieloproliferativa e anemia de Fanconi. In Lorenzi TF. Atlas de Hematologia: clínica hematológica ilustrada. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2006.
  • 5. Romeo M, Chauffaille ML, Silva MRR, Bahia DMM, Kerbauy J. Comparison of cytogenetics with FISH in 40 MDS patients. Leuk Res 2002; 26: 993-6.
  • 6. ISCN 2005: An international system for human cytogenetic nomenclature, Shaffer LG, Tommerup N (eds); S Karger, Basel, Suíça, 2005.
  • 7.Gozzetti A & LeBeau MM. Fluorescence in situ hybridization: uses and limitations. Sem in Hematol 2000;37(4):320-333.
  • 8. Bennett JM, Komrokji RS. The myelodysplastic syndromes: diagnosis, molecular biology and risk assessment. Hematology 2005; 10 suppl 1:258-269.
  • 9. Olney HJ & LeBeau MM. The cytogenetics in myelodysplastic syndromes. Best Practice & Research Clin Hematol 2001;14(3):479-95.
  • 10. Mhawech P & Saleem A. Myelodysplastic syndrome: review of the cytogenetic and molecular data. Crit Rev in Oncol Hematol 2001;40: 229-238.
  • 11 Preisler HD, Perambakam S, Li B, Hsu WT, Venugopal P, Creech S, et al. Alterations in IRF1/IRF2 expression in acute myeloid leukemia. Am J Hematol 2001, 68:23-31.
  • 12. Serio FM. Detecção da perda de heterozigose no gene IRF-1 em pacientes portadores de SMD e LMA. 2002. Tese de mestrado, Unifesp/EPM.
  • 13. Boultwood J, Filder C, Lewis S, Kelly S, Sheridan H, littlewood TJ, et al Molecular mapping of uncharacteristically small 5q deletions in two patients with thew 5q- syndrome: delineation of the critical region 5q and identification of a 5q- breakpoint. Genomics 1994;19:425-32.
  • 14. Pinheiro RF, Chauffaille ML, Silva MR. Isochromosome 17q in MDS: a marker of a distinct entity. Cancer Genetics and Cytogenentics 2006; 166(2): 189-90.
  • 15. Heim S, Mitelman F. Cancer Cytogenetics. Chromosomal and molecular genetic aberrations of tumor cells. 2nd ed Wiley Liss. N York, 1995.
  • 16. Maeck L, Haase D, Schoch C, et al Genetic instability in myelodysplastic syndrome: detection of microsatellite instability and loss of heterozigosity in bone marrow sample with karyotype alterations. Br. J. Haematol 2000, 109:842- 846.
  • 17. Shih LY, Huang CF, Wang PN, Wu JH, Lin TL, Dunn P, et al. Acquisition of FLT3 or N-RAS mutations is frequently associated with progression of MDS to AML. Leukemia 2004;18:466-75.
  • 18. Stirewalt D, Radich JP. The role of FLT3 in haematopoietic malignancies. Nature Rev 2003;3:650-666.
  • 19 Look T. Molecular Pathogenesis of MDS. Hematology 2005. Education Book: 156- 60.
  • 20. Kaneko H, Horiike S, Nakai H, Ueda Y, Nakao M, Hirakawa K, et al. Neurofibromatosis 1 gene (NF1) mutation is a rare genetic event in myelodysplastic syndrome regardless of the disease progression. Int J Hematol 1995;61(3):113-6.
  • 21. Lahortiga I, Vazquez I, Agirre X, Larrayoz MJ, Vizmanos JL, Gozzetti A, et al Molecular heterogeneity in AML/MDS patients with 3q21q26 rearrangements.Genes Chromosomes Cancer 2004; 40(3):179-89.
  • 22. Fonatsch C, Gudat H, Lengfelder E, Wandt H, Silling-Engelhardt G, Ludwig WD, et al. Correlation of cytogenetics findings with 18 patients with inv(3)(q21q26) or t(3;3)(q21;q26). Leukemia 1994 8(8):1.318-26.
  • 23. List AF, Vardiman J, Issa JPJ, DeWitte T. MDS. Hematology 2004. Education Book: 297- 317
  • 24. Gersuk GM, Beckham C, loken MR, Kiener P, Anderson JE, Farrand A, et al. A role for tumor necrosis factor alpha, Fas and Fas-ligand in marrow failure associated with myelodysplastic syndrome. Br J Hematol 1998; 103:176-88.
  • 25.Biesma DH, van den Tweel JG, Verdonck LF. Immunosuppressive therapy for hypoplastic myelodysplastic syndrome.Cancer 1997; 79(8):1.548-51.
  • 26. Appelbaum FR. Immunobiologic therapies for myelodyspalsctic syndrome. Best Practice & Research Clinical Haematology 2004; 17(4);653-661.
  • 27. Aggerholm A, Holm MS, Guldberg P, Olesen LH, Hokland P. Promoter hypermethylation of p15INK4B, HIC1, CDH1, and ER is frequent in myelodysplastic syndrome and predicts poor prognosis in early-stage patients.Eur J Haematol 2006;76(1):23-32.
  • 28. Laird PW. Cancer Epigenetics. Hum Mol Genetics 2005;14:R65-R76.
  • 29. Morgan MA, Reuter CWM. Molecularly targeted therapies in MDS and AML. Ann Hematol 2006;85:139-63.
  • 30.Gürkan E, Tanriverdi K, Baslamish F. Telomerase activity in MDS. Leuk Res 2005;29:1.131-9.
  • 31. Pellagatti A, Fidler C, Wainscoat JS, Boultwood J. Gene expression profiling in the myelodysplastic syndrome. Hematology 2005; 10(4):281-7.
  • Correspondência:

    Maria de Lourdes L. F. Chauffaille
    Rua Botucatu 740, 3º andar
    04023-900 – São Paulo, SP
    Tel.: 55-11-5576-4240
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2006

    Histórico

    • Aceito
      11 Set 2006
    • Recebido
      31 Maio 2006
    Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Terapia Celular R. Dr. Diogo de Faria, 775 cj 114, 04037-002 São Paulo/SP/Brasil, Tel. (55 11) 2369-7767/2338-6764 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: secretaria@rbhh.org