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O valor da imunofenotipagem para o diagnóstico do Mieloma Múltiplo e na avaliação da doença residual mínima

The value of immunofenotyping for the diagnosis of Multiple Myeloma and for the evaluation of minimal residual disease

Resumos

Os plasmócitos normais podem ser diferenciados dos presentes no mieloma múltiplo por imunofenotipagem. Os normais são CD45+, CD19+, CD20+, CD38++, CD56-/fraco, CD138+, mIg-, cIg policlonal. Por outro lado, os plasmócitos do mieloma múltiplo são monoclonais (cIg) e aproximadamente 80% são CD19-CD56+ e 20% CD19-CD56-. O perfil na leucemia plasmocitária primária é semelhante ao do mieloma, embora a positividade para o CD56 ocorra em 45% dos casos. Na gamopatia monoclonal de causa indeterminada existe uma mistura de plasmócitos normais e neoplásicos, que têm perfil semelhante ao do mieloma múltiplo. A doença residual na medula é importante para estimar a resposta terapêutica e pode ser avaliada por citometria de fluxo e pela reação da polimerase em cadeia para o rearranjo da cadeia pesada da Ig. A citometria apresenta sensibilidade de 10-4 a 10-5, é realizada em aproximadamente duas horas e a sua aplicabilidade chega a 90%. O PCR qualitativo tem sensibilidade de 10-6 enquanto o quantitativo, 10-5. Em ambos, o tempo para a realização é maior (2-3 dias), com aplicabilidade de 75%.

Plasmócitos; mieloma múltiplo; imunofenótipo; citometria de fluxo; doença residual mínima


Normal plasma cells can be differentiated from multiple myeloma by their immunophenotype. Normal cells are CD45+, CD19+, CD20+, CD38++, CD56-/dim, CD138+, mIg- and polyclonal cIg. On the other hand, with multiple myeloma, plasma cells are monoclonal (cIg) and approximately 80% are CD19- CD56+ and 20% CD19- CD56-. The profile in plasma cell leukemia is similar to myeloma, but the CD56 is positive in 45% of cases. In the monoclonal gammopathy of undetermined significance there is a mixture of normal and neoplastic plasma cells. Residual disease in bone marrow is important to determine the efficacy of treatment and can be evaluated by flow cytometry or polymerase chain reaction of rearranged heavy chains of Ig. Flow cytometry has a sensitivity of 10-4 to 10-5, is performed in 2-3 hours and is applicable in 90% of cases. Qualitative PCR has a sensitivity of 10-6 and quantitative PCR of 10-5. Both tests are performed in 2-3 days and their applicability is around 75%.

Plasma cells; multiple myeloma; immunophenotype; flow cytometry; minimal residual disease


ARTIGO ARTICLE

O valor da imunofenotipagem para o diagnóstico do Mieloma Múltiplo e na avaliação da doença residual mínima

The value of immunofenotyping for the diagnosis of Multiple Myeloma and for the evaluation of minimal residual disease

Roberto P. FalcãoI; Leandro Felipe F. DalmazzoII

IProfessor titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP

IIPós-graduando de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP

Correspondência Correspondência: Roberto Passetto Falcão Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Campus Universitário - Monte Alegre 14048-900 - Ribeirão Preto-SP - Brasil Tel: (16) 3602-2610 E-mail: rpfalcao@fmrp.usp.br

RESUMO

Os plasmócitos normais podem ser diferenciados dos presentes no mieloma múltiplo por imunofenotipagem. Os normais são CD45+, CD19+, CD20+, CD38++, CD56-/fraco, CD138+, mIg-, cIg policlonal. Por outro lado, os plasmócitos do mieloma múltiplo são monoclonais (cIg) e aproximadamente 80% são CD19-CD56+ e 20% CD19-CD56-. O perfil na leucemia plasmocitária primária é semelhante ao do mieloma, embora a positividade para o CD56 ocorra em 45% dos casos. Na gamopatia monoclonal de causa indeterminada existe uma mistura de plasmócitos normais e neoplásicos, que têm perfil semelhante ao do mieloma múltiplo. A doença residual na medula é importante para estimar a resposta terapêutica e pode ser avaliada por citometria de fluxo e pela reação da polimerase em cadeia para o rearranjo da cadeia pesada da Ig. A citometria apresenta sensibilidade de 10-4 a 10-5, é realizada em aproximadamente duas horas e a sua aplicabilidade chega a 90%. O PCR qualitativo tem sensibilidade de 10-6 enquanto o quantitativo, 10-5. Em ambos, o tempo para a realização é maior (2-3 dias), com aplicabilidade de 75%.

Palavras-chave: Plasmócitos; mieloma múltiplo; imunofenótipo; citometria de fluxo; doença residual mínima.

ABSTRACT

Normal plasma cells can be differentiated from multiple myeloma by their immunophenotype. Normal cells are CD45+, CD19+, CD20+, CD38++, CD56-/dim, CD138+, mIg- and polyclonal cIg. On the other hand, with multiple myeloma, plasma cells are monoclonal (cIg) and approximately 80% are CD19- CD56+ and 20% CD19- CD56-. The profile in plasma cell leukemia is similar to myeloma, but the CD56 is positive in 45% of cases. In the monoclonal gammopathy of undetermined significance there is a mixture of normal and neoplastic plasma cells. Residual disease in bone marrow is important to determine the efficacy of treatment and can be evaluated by flow cytometry or polymerase chain reaction of rearranged heavy chains of Ig. Flow cytometry has a sensitivity of 10-4 to 10-5, is performed in 2-3 hours and is applicable in 90% of cases. Qualitative PCR has a sensitivity of 10-6 and quantitative PCR of 10-5. Both tests are performed in 2-3 days and their applicability is around 75%.

Key words: Plasma cells; multiple myeloma; immunophenotype; flow cytometry, minimal residual disease.

Introdução

Os plasmócitos foram descritos pela primeira vez em 1875, mas a sua função como célula produtora de anticorpos só começou a ser definida a partir de 1937. Naquela época, Bing e Plum demonstraram que o mieloma múltiplo estava associado à produção excessiva de gamaglobulina. Nas décadas de 1940 e 1950, outros procedimentos experimentais revelaram que a imunização endovenosa de animais com múltiplos antígenos era acompanhada do aumento de plasmoblastos no baço.1,2 Esses plasmócitos jovens dividiam-se rapidamente e o citoplasma tornava-se rico em RNA, sugerindo a capacidade de produção de proteínas (anticorpos). Posteriormente, Coons e colaboradores demonstraram que os plasmócitos continham anticorpos. A validação deste modelo para o homem foi feita graças às observações em pacientes com doença de Bruton, que não tinham plasmócitos, nem produziam anticorpos. Entretanto, a definição da origem dos plasmócitos a partir de linfócitos B só foi estabelecida em meados da década de 1960. Os plasmócitos normais possuem mutações somáticas na região variável da imunoglobulina, indicando que são células derivadas do compartimento do centro germinativo ou pós-centro germinativo. Os plasmócitos, uma vez integralmente constituídos, irão migrar para a medula óssea ou para outros gânglios, para o baço e para o tecido linfóide associado à mucosa (Figura 1).3,4 A exemplo do que ocorre com os plasmócitos normais, os plasmócitos neoplásicos do mieloma múltiplo representam células que já passaram pelo centro germinativo e, portanto, sofreram os fenômenos de edição do receptor, hipermutação somática e troca de classe (Figura 2). A patogênese molecular do mieloma múltiplo corresponde a um processo composto por várias etapas, cuja primeira é a aquisição da translocação envolvendo o lócus de uma das cadeias da imunoglobulina, com conseqüente instabilidade citogenética. Essa primeira anormalidade ocorre num plasmócito que inicialmente originará um pequeno clone, cuja repercussão clínica será a gamopatia monoclonal de significado indeterminado. Alterações cromossômicas adicionais, geralmente no decorrer de vários anos, associadas à ativação de oncogenes e ao aumento acentuado do número de plasmócitos neoplásicos, farão com que ocorra a progressão clínica para mieloma múltiplo (Figura 2).



Características imunofenotípicas dos plasmócitos normais e neoplásicos

Os plasmócitos de indivíduos normais caracterizam-se pela presença dos antígenos CD45+, CD19+, CD20+, CD38++, CD56-/fraco, CD138+, ausência de imunoglobulinas na superfície de membrana (mIg) e presença de imunoglobulina citoplasmática policlonal (cIg) (Tabela 1).5

Os plasmócitos do mieloma múltiplo expressam cIg monoclonal e não possuem mIg. A imunoglobulina mais comum é a IgG. Ocasionalmente há expressão de IgA, e raramente IgD, IgE ou IgM. A molécula de imunoglobulina é completa em 85% dos casos, apresentando cadeias pesadas e leves, e em 15% dos casos apenas as cadeias leves kappa ou lambda estão presentes, o que corresponde à proteína Bence-Jones. A maioria dos casos é CD45- ou CD45+fraco, não possui os marcadores pan-B CD19 e CD20, mas expressa o CD38+, CD79a+, CDforte.5,6 A molécula de adesão CD138 (sindecan 1) é encontrada na maioria dos casos, sendo importante para a ancoragem dos plasmócitos na medula óssea. Ocasionalmente, pode haver expressão do CD10. Apesar de aproximadamente 80% dos plasmócitos do mieloma múltiplo serem CD19- e CD56+, cerca de 20% dos casos são CD19- CD56- e possuem cIg monoclonal. Os plasmócitos neoplásicos podem expressar antígenos das linhagens mielóide ou monocítica, como o CD13 (31% dos casos), CD15 (7%) e CD117 (43%).6 A expressão da molécula VLA-5, envolvida na adesão entre os plasmócitos neoplásicos e as células do estroma da medula óssea, é heterogênea, sendo que os plamócitos VLA-5- são células imaturas proliferativas e os plasmócitos VLA-5+ são células neoplásicas maduras.7 O conhecimento das características imunofenotípicas dos plasmócitos do mieloma múltiplo e dos plasmócitos normais permite a detecção de células tumorais residuais e a comparação da eficiência de diferentes tratamentos.8,9,10

O fenótipo das células na leucemia plasmocitária primária (LPP) é semelhante ao do mieloma múltiplo (cIg+ , CD38+, CD138+), mas difere na expressão dos antígenos CD56, CD9, HLA-DR e CD117, que são menos freqüentes na leucemia plasmocitária primária.6 Entretanto, as características fenotípicas não permitem a completa distinção entre a LPP e o MM. A falta de CD56, que tem um importante papel na ancoragem de plasmócitos no estroma da medula óssea, poderia explicar a leucemização dos plasmócitos da LPP. Por outro lado, a presença do CD20 em metade dos casos de LPP sugere um fenótipo mais imaturo na leucemia do que no MM, no qual esse antígeno geralmente não está presente. Ademais, estas diferenças imunofenotípicas poderiam explicar a melhor sobrevida global do MM em comparação à LPP, pois a expressão do CD56 está associada a um bom prognóstico, enquanto a do CD20 está associada a uma sobrevida menor.6 (Tabela 2).

A gamopatia monoclonal de significado indeterminado (GMSI) apresenta duas subpopulações distintas de plasmócitos.5,11 Uma delas apresenta as características dos plasmócitos normais: CD19+, CD38+forte, CD56-. O estudo das cadeias leves intracitoplasmáticas revela que essas células são policlonais. A outra subpopulação apresenta as características dos plasmócitos do mieloma múltiplo, caracterizada por CD19-, CD38+intermediário, CD56+forte e cadeia leve intracitoplasmática monoclonal. Todos os indivíduos com GMSI, mas nenhum com mieloma múltiplo, apresentavam > 20% de plasmócitos fenotipicamente normais em relação ao total de plasmócitos da medula óssea.11 Esse valor é, portanto, altamente discriminatório no diagnóstico diferencial entre MM e GMSI.

Características do ciclo celular por citometria de fluxo

Cinqüenta e sete por cento dos casos de MM apresentam um índice de DNA dos plasmócitos hiperdiplóide (>1). Os outros 43% são diplóides (=1) (Tabela 3). Por outro lado, os achados na LPP são completamente diferentes, pois quase a totalidade dos casos são diplóides.6 A distribuição de células no ciclo celular também é diferente nas duas doenças, sendo que a LPP apresenta uma maior percentagem de células plasmocitárias neoplásicas na fase S, correspondendo, portanto, a uma maior capacidade proliferativa. Ademais, a porcentagem de células plasmocitárias normais residuais em fase S é menor na LPP do que no MM, o que poderia explicar porque os achados de anemia e plaquetopenia são maiores na LPP do que no MM.

Sezer et al 11 compararam o ciclo celular do MM com a GMSI. Os pacientes com MM foram divididos em dois grupos. No grupo A, foram incluídos pacientes com infiltração de 10%-30% de plasmócitos na medula óssea, proteínas séricas menor que 3,5 g/dL (IgG) ou menor que 2 g/dL (IgA) e sem lesões osteolíticas no raio X convencional. No grupo B, foram incluídos os pacientes que preenchiam os critérios de Durie e Salmon, incluindo pelo menos um critério maior. No grupo A, a porcentagem de plasmócitos em fase S na medula óssea e o índice de DNA não diferiram na GMSI em relação ao MM. Por outro lado, a atividade proliferativa medida pela porcentagem de plasmócitos em fase S foi maior no grupo B do MM em relação à GMSI e ao grupo A do MM

Avaliação de doença residual mínima em mieloma múltiplo

O mieloma múltiplo (MM) é uma proliferação clonal de plasmócitos na medula óssea (MO), que, apesar de responder ao tratamento com agentes quimioterápicos, permanece hoje como doença incurável. O tratamento usual do MM deve incluir altas doses de quimioterápicos, seguida da infusão autóloga de células-tronco periféricas (TMO autólogo). Com esse esquema, muitos pacientes conseguem atingir remissão completa da doença quando avaliados pela morfológia da MO, eletroforese e/ou imunofixação de proteínas séricas e urinárias, citogenética clássica.12 No entanto, todos os doentes irão invariavelmente sofrer uma recaída, com uma taxa mediana de sobrevida global de cerca de três anos.

A recaída da doença se deve à presença de plasmócitos neoplásicos residuais na MO, chamada de doença residual mínima (DRM). Nos últimos anos, o estudo da DRM provou ser de grande valia para a avaliação de resposta clínica em diversas neoplasias hematológicas.13 Porém, no mieloma múltiplo, tanto a sua utilidade clínica quanto o melhor método para detecção da DRM permanecem controversos.

Métodos para detecção de DRM em mieloma múltiplo

Reação em cadeia da polimerase (PCR)

No mieloma múltiplo, existem alguns possíveis alvos para detecção de clonalidade por PCR, sendo que o principal e o mais estudado é o rearranjo gênico da cadeia pesada da imunoglobulina (IgH).14,15 Os genes da IgH encontram-se no cromossomo 14 e, durante a ontogenia das células B, cerca de 150 regiões chamadas variáveis (V), 30 chamadas diversidade (D) e 6 chamadas junção (J) sofrem rearranjos. Essa região variável, VDJ da IgH, formada após o rearranjo, é única para cada célula B madura e pode ser considerada como um marcador clonal dos plasmócitos neoplásicos no mieloma múltiplo. Assim, técnicas de PCR foram desenvolvidas para detecção e quantificação do rearranjo VDJ da IgH.

A pesquisa por PCR qualitativo atinge a maior sensibilidade entre todos os métodos de detecção de DRM, quando se utiliza a técnica do RT-PCR aninhado (nested) com primers montados através do seqüenciamento do rearranjo VDJ de cada paciente.16 Esses primers são os chamados oligonucleotídeos alelo-específicos (ASO) e são específicos para cada paciente. A técnica que utiliza esses oligonucleotídeos pode ser chamada de ASO-RT-PCR e atinge níveis de sensibilidade de cerca de 10-6.

A pesquisa molecular do rearranjo da IgH pode também ser realizada de forma quantitativa.14,15,16 A técnica mais utilizada e aplicável clinicamente, o PCR em tempo real, também utiliza como primer um oligonucleotídeo alelo-específico (ASO), seqüenciado de cada paciente (ASO-RQ-PCR). Esse método atinge níveis de sensibilidade de cerca de 10-5.

Todas as técnicas descritas para detecção molecular de DRM em mieloma múltiplo envolvem experimentos trabalhosos, minuciosos e que consomem muito tempo para a sua realização, aproximadamente dois a três dias. Além disso, a técnica do PCR só é aplicável em cerca de 75% dos pacientes (Tabela 4).18 Essa falha de aplicabilidade do teste se deve à falta de marcadores clonais para amplificação genética, o que, por sua vez, é causada pela presença de mutações somáticas nos genes da IgH já presentes em alguns clones de mieloma múltiplo.

Imunofenotipagem por citometria de fluxo

Recentemente, a citometria de fluxo (CF) passou a ser utilizada como alternativa para monitorização de doença residual mínima no mieloma múltiplo. Os plasmócitos expressam marcadores que são linhagem-específicos de células B e também alguns marcadores próprios. Além disso, as células plasmocíticas neoplásicas também podem ser diferenciadas das não-neoplásicas por marcadores de superfícies detectáveis pela citometria de fluxo.

Como já foi descrito os plasmócitos normais expressam CD19, CD38, CD138, CD45 (fraco) e geralmente são negativos para CD56. Os plasmócitos neoplásicos, em sua maioria, expressam CD56 e podem ou não apresentar positividade para CD19 e CD45. Utilizando-se métodos multiparamétricos com quatro cores, a aplicabilidade do teste chega a 90%, pois ainda existem alguns casos em que a citometria de fluxo não pode diferenciar plasmócitos normais de neoplásicos, devido à ausência de marcadores diferenciais.18

Além dessa capacidade de diferenciar as células, a citometria de fluxo ainda é capaz de quantificar os plasmócitos neoplásicos e comparar de forma quantitativa sua proporção com os plasmócitos normais, com um nível de sensibilidade em torno de 10-4 a 10-5.

Uma das vantagens da citometria em relação aos métodos moleculares para pesquisa de DRM é que consome tempo menor de execução, aproximadamente duas horas, podendo ser utilizada na prática clínica de forma mais rotineira. Ademais, possui aplicabilidade maior quando comparada ao PCR (90 vs 75%).18 Além disso, na maioria dos casos, o marcador de clonalidade é o mesmo para todos os pacientes e o estudo não necessariamente requer avaliações feitas ao diagnóstico para cada paciente. Este método pode ainda fornecer informações sobre a recuperação imunológica de cada paciente após o tratamento. A principal desvantagem quando comparada ao PCR é seu menor nível de sensibilidade (Tabela 4).

Aplicações clínicas da pesquisa de DRM em mieloma múltiplo

Monitorar resposta ao tratamento

Atualmente, o grau de resposta ao tratamento quimioterápico, um dos principais indicadores de prognóstico em doenças neoplásicas, é avaliado na prática clínica apenas por métodos convencionais que incluem a avaliação morfológica da medula óssea, pesquisa de lesões em órgãos-alvo da doença (principalmente alterações renais e ósseas), eletroforese e imunofixação de proteínas séricas e urinárias. Assim, o grau de resposta terapêutica de cada paciente baseia-se nesses exames, e os critérios mais utilizados para remissão completa (RC) ou parcial (RP) são atualmente aqueles preconizados pelo European Group for Blood and Bone Marrow Transplantation (EBMT).19

O tratamento do mieloma múltiplo com esquemas quimioterápicos múltiplos é capaz de induzir remissão completa em cerca de 25% dos pacientes. Quando utilizado tratamento em altas doses com transplante autólogo de medula óssea, as taxas de RC e RP chegam, respectivamente, a 31%-51% e 41%-65%.

A citometria é capaz de identificar plasmócitos neoplásicos em cerca de 21% a 27% dos pacientes que têm imunofixação negativa.9,18 O PCR, por sua vez, identifica doença em 34% dos pacientes com imunofixação negativa.9,18 Classicamente, o nível de resposta ao tratamento é importante marcador prognóstico de sobrevida. Nesse contexto, tanto a citometria de fluxo quanto a pesquisa molecular de rearranjos IgH por PCR tornam-se, na atualidade, novas ferramentas de avaliação prognóstica pós-tratamento em mieloma múltiplo.

Os estudos que demonstram associação entre DRM e sobrevida ainda são escassos e com pequeno número de pacientes. Rawstron et al9 demonstraram que, em pacientes avaliados três meses após o transplante, todos com imunofixação negativa, a sobrevida livre de progressão foi maior naqueles e não se identificou a presença de plasmócitos neoplásicos residuais na MO por citometria (35 meses vs 20 meses; p=0,04).

Fenk et al,20 ao avaliarem 11 pacientes com MM pós-TMO autólogo através da técnica ASO-RQ-PCR para IgH, demonstraram que um índice IgH/ß2actina >0,03% foi capaz de predizer uma menor sobrevida livre de progressão, independente dos parâmetros clínicos de resposta. Bakkus et al21 revelaram que um nível de 0,015% no PCR quantitativo foi um excelente limite para subdividir grupos de bom e mau prognóstico em relação à sobrevida livre de progressão após TMO autólogo. Da mesma forma, Sarasquete et al18 demonstraram que tanto a citometria quanto o PCR podem ser utilizados para subdividir grupos com prognóstico diferente após o tratamento com autotransplantes.

Assim, a detecção de doença residual mínima no mieloma é importante para predizer o risco e pode identificar quais pacientes se beneficiariam de tratamentos adicionais em um estágio precoce pós-TMO autólogo. Apesar de ainda haver poucos estudos em pacientes submetidos a transplantes alogênicos, os resultados citados anteriormente podem ser extrapolados para esse contexto, balizando decisões terapêuticas como a retirada precoce de imunossupressão, infusão de linfócitos do doador, etc. O papel do chamado efeito "enxerto versus mieloma" no contexto de doença residual mínima também não foi adequadamente estudado até o momento.

Avaliar material colhido para TMO autólogo

Utilizando a técnica de PCR qualitativo, já foi demonstrado que praticamente todos os produtos de aférese, colhidos para autotransplantes, contêm células provenientes do clone neoplásico. Por isso, esforços vêm sendo realizados no intuito de reduzir o grau de contaminação nas bolsas de aférese, e o PCR quantitativo é capaz de medir com eficiência essa redução. O procedimento mais utilizado para essa descontaminação (purging) in vitro é a seleção positiva de células CD34 positivas, utilizando-se técnicas imunomagnéticas que conseguem induzir uma redução de 3-log na contaminação das bolsas.14

O valor de se quantificar a presença de plasmócitos neoplásicos nas bolsas de células-tronco colhidas por aférese ainda permanece questionável, uma vez que estudos demonstraram ausência de benefício para sobrevida global e livre de eventos nos pacientes em que foram utilizados produtos "descontaminados".

Assim, ainda não se sabe qual o grau de contribuição das células neoplásicas contaminantes reinfundidas para as recaídas pós-TMO. Por enquanto, não há evidências na literatura médica que permitam a utilização da descontaminação in vitro fora de estudos clínicos. Parece que a carga tumoral do paciente no momento do transplante é um fator muito mais importante do que o grau de contaminação das bolsas de aférese para predizer prognóstico.

Recebido: 02/08/2006

Aceito: 15/01/2007

O tema apresentado e o convite ao(s) autor(es) consta da pauta elaborada pelo co-editor.

Avaliação: Co-editor e um revisor externo.

Publicado após revisão e concordância do editor.

Conflito de interesse: não declarado.

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  • Correspondência:
    Roberto Passetto Falcão
    Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
    Campus Universitário - Monte Alegre
    14048-900 - Ribeirão Preto-SP - Brasil
    Tel: (16) 3602-2610
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Mar 2007

    Histórico

    • Revisado
      15 Jan 2007
    • Recebido
      02 Ago 2006
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