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Anemia falciforme: objetivos e resultados no tratamento de uma doença de saúde pública no Brasil

Sickle cell disease: aims and results in the treatment of a health public disease in Brazil

EDITORIAIS/EDITORIALS

Anemia falciforme. Objetivos e resultados no tratamento de uma doença de saúde pública no Brasil

Sickle cell disease. Aims and results in the treatment of a health public disease in Brazil

Milton A. Ruiz

Editor da Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia

Correspondência Correspondência: Milton Arthur Ruiz Rua Profa. Carolina Ribeiro 165/112 - Vila Mariana Chácara Klabim 04516-020 - S.Paulo-SP - Brasil milruiz@yahoo.com.br

Neste fascículo organizado e conduzido pelo co-editor Rodolfo Delfini Cançado, produto de um evento de grande repercussão nacional sobre anemia falciforme, discutem-se as várias nuances clínicas e hematológicas sobre o tema.

A anemia falciforme, do ponto de vista histórico, é do conhecimento da humanidade desde os tempos imemoriais e constatadas como secular na África pelo hábito existente em diversas tribos do continente de tatuar os portadores e os pacientes para identificar a doença. O primeiro relato em relação à doença ocorreu nos Estados Unidos da América em necropsias de pacientes nos quais se identificou agenesia esplênica em afro-americano com antecedentes clínicos crônicos similares ao da anemia falciforme.1 O primeiro relato científico sobre a anemia falciforme foi descrita por Herrick, em 1910, em um estudante da Universidade das Índias Ocidentais, proveniente de Granada, na América Central, no qual se observou, à microscopia, o aspecto anômalo e alongado das hemácias.2

A introdução da hemoglobina S, responsável pela anemia falciforme no Brasil, deu-se através do tráfico de escravos de inúmeras tribos africanas, tráfico este iniciado em 1550 e suspenso oficialmente em 1850, para trabalho escravo na indústria da cana-de-açúcar do Nordeste e, posteriormente, para a lavra do ouro e extração de metais preciosos em Minas Gerais. A partir da abolição da escravatura, o fluxo migratório se expandiu para várias regiões do país e iniciou-se a panmixia racial, que hoje é uma característica do nosso país.

A contribuição da comunidade científica nacional no estudo da anemia falciforme e das hemoglobinopatias sempre foi um marco. Desde a definição da base genética realizada por Neel3 e Accioly4 independentemente, enfatizada por Azevedo5 em sua carta de retratação histórica, aos trabalhos de levantamento da freqüência da doença como o realizado em internados da Santa Casa de Misericórdia de Santos efetuado por Boturão.6

Nas décadas que se seguiram, vários estudos caracterizaram o perfil da anemia falciforme no Brasil, e o rastreamento da moléstia pode ser comprovado através das publicações e teses acadêmicas que se seguiram, realizadas nas diversas instituições brasileiras, o que atestou o engajamento científico da hematologia brasileira no estudo das hemoglobinopatias.7-10

Na seqüência reproduzo o texto de apresentação da tese "Prevalência de hemoglobinas anormais em recém-nascidos na cidade de Santos, São Paulo, de 1985":11

"Este trabalho foi realizado a partir de observações iniciais do amigo, já falecido, Carlos Zindell, obstetra da Casa de Saúde de Santos, que alertava sobre a incidência de processos infecciosos em gestantes negróides e da necessidade de se pesquisar hemoglobinopatia S.

Em 1980, o nosso interesse pela detecção precoce de hemoglobinopatias em berçários e em gestantes negróides se concretizou com a organização do presente trabalho.

A programação e as linhas gerais do trabalho foram apresentadas a inúmeros hospitais da cidade de Santos, recebendo plena receptividade e aceitação pelas diretorias dos hospitais contatados. Logo este entusiasmo desapareceu e a obtenção do sangue de recém-nascidos para análise sofreu inúmeros problemas e restrições. Constatamos então, durante todo este tempo, o desconhecimento acerca das doenças hereditárias mais freqüentes em nosso meio pela classe médica, além de uma visão social distorcida destes problemas.

O preconceito foi outro dos fatores que dificultaram a execução do trabalho pelo sentimento racial existente quanto à anemia falciforme. Todos os obstáculos existentes foram transpostos e, para tanto, contamos com o estímulo de nosso orientador, Celso Carlos de Campos Guerra, e do exemplo da incansável luta encetada durante todos este anos por Paulo César Naoum em divulgar as hemoglobinopatias hereditárias mais freqüentes em nossa população.

A visão social das hemoglobinopatias hereditárias, mais especificamente a anemia falciforme, assumiu caráter de doença de saúde pública e, para tanto, demonstramos a necessidade dela assim ser encarada.

Através de dados existentes em todo o mundo, e pelas características do nosso povo, postulamos a prevenção, orientação e a organização de programas de detecção de hemoglobinopatias hereditárias em berçários, maternidades e em medicina ocupacional".

Esta reprodução de 25 anos atrás divulga o pensamento do editor sobre o tema, em 1985, e que não se modificou; tem o propósito de expor aos leitores parte dos anseios da época, em que a perspectiva de vida dos pacientes era restrita e não ultrapassava as duas décadas. Não havia, também, tratamento de suporte e de chance de melhoria na qualidade de vida dos pacientes e, principalmente, possibilidade de cura, hoje factível, a determinados pacientes selecionados com o transplante de células-tronco hematopoéticas.

Finalizando, a Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, com mais este fascículo, cumpre o seu objetivo de educar, disseminar informações e orientações sobre um tema relevante e de importância para saúde pública do país.

  • 1. Hodenpyl E. A case of apparent absence of the spleen , with general compensatory lymphatic hyperplasia in Sergeant G, Sergeant B. Sickle cell before Herrick. Letter, Lancet. 1976;746.
  • 2. Herrick JB. Peculiar elongated and sickle shaped red blood corpuscles in a case of severe anemia. Arch Intern Med. 1910;6:517.
  • 3. Nell JV. The clinical detection of the genetic carriers of inherited disease. Medicine. 1947;26:115.
  • 4. Accioly J. Anemia falciforme. Arq. Univ. Bahia. 1947;1:169.
  • 5. Azevedo E. Historical note on inheritance of sickle cell anemia Jesse Accioly. The Am. J. Human Genetic. 1973;457.
  • 6. Boturão E, Boturão E. Incidência de drepanocitose na Santa Casa de Santos, Seara Médica. 1952;6:447.
  • 7. Araújo JT. Hemoglobinas anormais em S. Paulo. Métodos de Estudo. Incidência. J Bras. Med. 1965;9:1264.
  • 8. Zago MA, Costa FF, Freitas TC, Bottura C. Clinical hematological and genetic features of sickle cell anemia and sickle cell beta thalassemia in a brazilian population. Clinical Genetics. 1980; 18:58.
  • 9. Ramalho AS. Estudo médico dos polimorfismos genéticos de importância clínica no Brasil. Tese de Livre-docência, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, 1979.
  • 10. Naoum PC. Hemoglobinopatias no Estado de S. Paulo, Tese de Livre-docência, Unesp, Ibilce - São José do Rio Preto, S. Paulo. 1982.
  • 11. Ruiz MA. Prevalência de hemoglobinas anormais em recém-nascidos na cidade de Santos, São Paulo. Tese de mestrado, Escola Paulista de Medicina, Unifesp, São Paulo, 1985 .
  • Correspondência:
    Milton Arthur Ruiz
    Rua Profa. Carolina Ribeiro 165/112 - Vila Mariana
    Chácara Klabim
    04516-020 - S.Paulo-SP - Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2007
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