Acessibilidade / Reportar erro

Aconselhamento genético do paciente com doença falciforme

Genetic counseling in the sickle cell disease

Resumos

O aconselhamento genético é um componente importante da conduta médica na doença falciforme, apresentando relevantes implicações médicas, psicológicas, sociais, éticas e jurídicas. No presente trabalho são apresentadas as considerações sobre esse processo, elaboradas pelo Serviço de Aconselhamento Genético em Hemoglobinopatias da Unicamp, mediante solicitação do Programa Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias do Ministério da Saúde.

Doença falciforme; hemoglobina S; aconselhamento genético


Genetic counseling is a major component of medical conduct in sickle cell disease with relevant medical, psychological, social, ethical and judicial implications. In the current work considerations of this process elaborated by the Genetic Counseling Service on Hemoglobinopathies of Unicamp at the request of the National Program of Comprehensive Care to Sufferers of Sickle Cell Disease and other Hemoglobinopathies, of the Brazilian Ministry of Health, are presentedl.

Sickle cell disease; hemoglobina S; genetic counseling


ARTIGO ARTICLE

Aconselhamento genético do paciente com doença falciforme

Genetic counseling in the sickle cell disease

Antonio Sérgio Ramalho; Luís Alberto Magna

Professor titular do Departamento de Genética Médica da Unicamp, responsável pelo Serviço de Aconselhamento Genético em Hemoglobinopatias

Correspondência Correspondência: Antonio Sergio Ramalho Caixa Postal 6111 13.081-970 - Campinas-SP E-mail: genetica@fcm.unicamp.br

RESUMO

O aconselhamento genético é um componente importante da conduta médica na doença falciforme, apresentando relevantes implicações médicas, psicológicas, sociais, éticas e jurídicas. No presente trabalho são apresentadas as considerações sobre esse processo, elaboradas pelo Serviço de Aconselhamento Genético em Hemoglobinopatias da Unicamp, mediante solicitação do Programa Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias do Ministério da Saúde.

Palavras-chave: Doença falciforme; hemoglobina S; aconselhamento genético.

ABSTRACT

Genetic counseling is a major component of medical conduct in sickle cell disease with relevant medical, psychological, social, ethical and judicial implications. In the current work considerations of this process elaborated by the Genetic Counseling Service on Hemoglobinopathies of Unicamp at the request of the National Program of Comprehensive Care to Sufferers of Sickle Cell Disease and other Hemoglobinopathies, of the Brazilian Ministry of Health, are presentedl.

Key words: Sickle cell disease; hemoglobina S; genetic counseling.

Introdução

O Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp mantém, há 35 anos, um Serviço de Aconselhamento Genético em Hemoglobinopatias (ambulatórios e programas de genética comunitária). Tomando por base a experiência desse grupo de trabalho, o Programa Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias do Ministério da Saúde solicitou-lhe, em 2006, a elaboração de um documento sobre o aconselhamento genético na doença falciforme. Esse documento foi submetido a uma discussão inicial durante o I Simpósio Nacional de Aconselhamento Genético em Doença Falciforme (Salvador, BA, 18 de agosto de 2006), da qual também participaram representantes da Federação Nacional de Anemia Falciforme, Secretaria Especial de Expansão da Política de Igualdade Racial, Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (Apae), Política Nacional de Atenção á Saúde em Genética Clínica no SUS e vários grupos de trabalho estaduais diretamente envolvidos com a doença falciforme.

Tendo em vista a realização do 1.º Encontro Brasileiro de Doenças Falciformes (São Paulo, SP, 4 e 5 de maio de 2007), os autores julgaram oportuno estender essa discussão a outros grupos interessados no tema, sobretudo a Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e o Colégio Brasileiro de Hematologia.

As modalidades do aconselhamento genético

O aconselhamento genético apresenta três modalidades básicas, que dependem do grau de envolvimento pessoal do aconselhando com a condição genética, bem como da sua necessidade de tomar uma decisão reprodutiva no momento, ou seja:

• Aconselhamento genético propriamente dito ou consultoria genética: os aconselhandos (geralmente um casal) apresentam um risco real, já estabelecido por vínculo reprodutivo estável, de gerar filhos com doença falciforme relevante (homozigoto ou heterozigotos duplos). Esses casais, geralmente constituídos por dois heterozigotos, são impropriamente chamados de "casais de risco", o que deve ser evitado, pois implica uma rotulação indesejável desses indivíduos. Da mesma forma, a designação de "transmissores de genes" deve ser evitada. O aconselhamento genético ideal é aquele solicitado espontaneamente pelos clientes. A situação mais freqüente, no entanto, é aquela em que o casal é encaminhado (por algum programa de triagem, por um profissional de saúde, por algum familiar, etc.) para receber o aconselhamento genético. Nesse caso, os indivíduos devem ser informados antes a respeito dos objetivos e do caráter opcional (para o cliente) do aconselhamento genético;

• Orientação genética: o aconselhando está envolvido pessoalmente com a alteração genética, mas não necessita tomar uma decisão reprodutiva naquele momento. Na maioria das vezes, esse indivíduo apresenta um risco potencial de gerar filhos com doença falciforme, risco esse geralmente dependente do genótipo hemoglobínico de um futuro parceiro reprodutivo. Trata-se da situação mais comum nos programas voluntários de detecção de heterozigotos adultos, bem como entre familiares de pacientes;

• Informação genética: trata-se de processo de divulgação da doença falciforme para um público não necessariamente envolvido com esta doença (pelo menos em um primeiro momento). Tal processo educativo, realizado por meio de folders, cartazes, palestras, aulas, atuação na mídia, etc., é fundamental para que a forma ideal de aconselhamento genético, ou seja, o solicitado espontaneamente pelos indivíduos, possa ocorrer na população.

Do exposto, é evidente que a informação genética pode gerar uma orientação genética e esta, por sua vez, gerar um aconselhamento genético propriamente dito.

Os objetivos do aconselhamento genético na doença falciforme

O aconselhamento genético na doença falciforme tem o objetivo primordialmente assistencial e educativo, ou seja, o de permitir a indivíduos ou famílias a tomada de decisões consistentes e psicologicamente equilibradas a respeito da procriação.

Secundariamente, o aconselhamento genético também pode exercer uma função preventiva, que depende de opções livres e conscientes dos casais que apresentam a possibilidade de gerar filhos com doença falciforme. Os indivíduos são conscientizados da situação, sem serem privados do seu direito de decisão reprodutiva. O aconselhamento genético não se confunde com a eugenia.

O caráter não diretivo e não coercitivo do aconselhamento genético

É vedado ao profissional que fornece o aconselhamento genético recomendar, sugerir, indicar ou exigir condutas dos seus aconselhandos. As decisões tomadas por esses últimos devem ser absolutamente livres e pessoais, sendo isentas de qualquer influência ou procedimento externos, por parte de profissionais ou de instituições.

Os direitos dos aconselhandos

O oferecimento do aconselhamento genético é um componente importante e parte integrante da conduta médica, sendo a sua omissão considerada uma falta grave.

São direitos do aconselhando:

• Aceitar ou recusar livremente o recebimento do aconselhamento genético oferecido pelo profissional ou pela instituição. Para tal decisão, ele(s) deve(m) ser esclarecido(s) sobre os objetivos e procedimentos do aconselhamento genético. É fundamental a assinatura de um "termo de interesse";

• Receber todas as informações necessárias para que possam tomar as decisões conscientes a respeito da procriação. Além do risco genético em si, outras informações são necessárias, tais como o tratamento disponível e a sua eficiência, o grau de sofrimento físico, mental e social imposto pela doença, o prognóstico, a importância do diagnóstico precoce e as perspectivas terapêuticas futuras;

• Receber informações adequadas ao seu nível de instrução. Cabe a quem fornece o aconselhamento genético o desenvolvimento de técnicas de comunicação que possibilitem o fornecimento de informações completas e abrangentes, cujo entendimento independa do grau de instrução do aconselhando;

• Ser respeitado em sua realidade sociocultural e emocional. Aspectos como o estado conjugal, religião, etnia, outras práticas culturais e receptividade intelectual e emocional devem ser preservados;

• Receber documentação explicativa sobre a condição genética discutida no aconselhamento genético;

• Garantia do sigilo do diagnóstico. Tal procedimento é particularmente importante no que diz respeito às situações de ilegitimidade e adoção de filhos;

• Receber complementações do aconselhamento genético, sempre que sentir necessidade de novas informações;

• Receber tratamento médico e seguimento especializado para os filhos eventualmente afetados pela doença falciforme;

• Realizar opcionalmente a investigação laboratorial de hemoglobinopatias em seus familiares.

O profissional que fornece o aconselhamento genético

O aconselhamento genético não pode estar baseado em hipóteses diagnósticas, dependendo de um diagnóstico preciso da hemoglobinopatia em discussão. A distinção diagnóstica entre a anemia falciforme (homozigotos SS) e outras síndromes falciformes, como a S/ß0 talassemia (heterozigotos S/ß0 talassêmicos), a doença SC (heterozigose SC), etc., é particularmente relevante. O estabelecimento do diagnóstico preciso é responsabilidade de um médico, habilitado em hemoglobinopatias, por curso de especialização, pós-graduação ou residência médica. Estabelecido o diagnóstico, o aconselhamento genético poderá ser fornecido por profissional da saúde capacitado em hemoglobinopatias, por curso de especialização, capacitação ou pós-graduação, desde que sob supervisão médica. Tal situação é pragmaticamente aceitável nas hemoglobinopatias mais freqüentes, bem como na orientação genética de heterozigotos, em decorrência da sua alta freqüência populacional.

A responsabilidade das instituições que fornecem o aconselhamento genético

O aconselhamento genético apresenta importantes implicações médicas, psicológicas, sociais, éticas e jurídicas, acarretando um alto grau de responsabilidade às instituições que o oferecem (universidade, hospitais, hemocentros, clínicas médicas, secretarias estaduais e municipais de saúde). Cabe a tais instituições, portanto, a responsabilidade de que o aconselhamento genético seja fornecido por profissionais habilitados e com grande experiência, dentro dos mais rigorosos padrões éticos e científicos.

A metodologia do aconselhamento genético

• O aconselhamento genético deve ser fornecido de forma individualizada (indivíduos ou casais), resguardando-se a privacidade dos aconselhandos;

• Serão realizadas tantas sessões quantas necessárias para o total entendimento, pelos aconselhandos, dos vários aspectos abordados no aconselhamento genético;

• Vários aspectos da transferência de informações devem ser levados em consideração no aconselhamento genético, incluindo-se a receptividade, tanto emocional quanto intelectual, dos aconselhandos. Os conceitos abstratos, de difícil explicação, como transmissão de genes, dominância e recessividade, probabilidade, etc., devem ser trabalhados como elementos concretos e visualizáveis (cartões com letras referentes às hemoglobinas A, S, C, etc., elementos de cores diferentes, fichas ilustrativas, etc.), em um processo simples mas que traduza a verdade dos fatos;

• A assimilação de conceitos (avaliação cognitiva) por parte dos aconselhandos deve ser testada ao final da sessão de aconselhamento genético. Os indivíduos devem ser convidados a resolver algumas situações hipotéticas, trabalhando eles mesmos com os mesmos elementos didáticos utilizados no aconselhamento genético (por exemplo: como poderão ser os filhos de casais AS x AA, AS x AS, AS x SS, AA x SS, SS x SS, etc.);

• A sessão de aconselhamento genético deve ser complementada com o fornecimento de uma cartilha de reforço e documentação das informações, na qual a hemoglobinopatia em discussão é descrita em linguagem simples, com muitas ilustrações didáticas;

• Ao final da sessão de aconselhamento genético, o(s) aconselhando(s) deve(m) assinar um "termo de recebimento de aconselhamento genético". Caso tenha sido solicitada a investigação laboratorial de hemoglobinopatias aos familiares, tal fato deve ser mencionado nesse documento, especificando-se o caráter opcional e gratuito de tais exames.

Observação: o "termo de recebimento de aconselhamento genético" pode ser adicionado ao "termo de interesse" já mencionado no item D, resultando em um único documento.

Aspectos éticos do aconselhamento genético

O aconselhamento genético, como todos os outros procedimentos de genética humana, baseia-se em cinco princípios éticos básicos, quais sejam:

• Autonomia: os testes genéticos devem ser estritamente voluntários, levando ao aconselhamento apropriado e a decisões absolutamente pessoais;

• Privacidade: os resultados dos testes genéticos de um indivíduo não podem ser comunicados a nenhuma pessoa sem o seu consentimento expresso, com exceção dos seus responsáveis legais;

• Tutela: é garantida a proteção aos direitos de populações vulneráveis, tais como crianças, pessoas com retardamento mental, ou problemas psiquiátricos ou culturais especiais;

• Igualdade: o acesso aos testes deve ser igual para todos os indivíduos, independentemente da origem geográfica, cor ou classe socioeconômica;

• Qualidade: todos os testes genéticos oferecidos devem ter especificidade e sensibilidade adequadas, sendo realizados em laboratórios capacitados e com monitoração profissional e ética.

Os riscos do aconselhamento genético

O aconselhamento genético não é isento de riscos, que devem ser prevenidos, detectados e corrigidos, quais sejam:

• Rotulação: superposição do diagnóstico genético à identidade dos indivíduos;

• Estigmatização: discriminação racial do indivíduo por ser portador de alteração genética e, por isso, confirmar sua descendência étnica;

• Discriminação: privação de algum direito do indivíduo, em função do diagnóstico da condição genética;

• Invasão de privacidade: quebra do sigilo diagnóstico;

• Perda da auto-estima: problemas emocionais decorrentes do processo de aconselhamento genético, tais como depressão, ansiedade e sentimento de culpa.

A triagem populacional das hemoglobinopatias

• O diagnóstico neonatal das hemoglobinopatias, bem como o aconselhamento genético dos pais das crianças diagnosticadas como portadoras de alterações genéticas da hemoglobina, devem seguir as normas estabelecidas no Programa Nacional de Triagem Neonatal (Portaria do Ministério da Saúde nº 822/01);

• A triagem de alterações genéticas da hemoglobina em adultos deve ser estritamente voluntária e, em menores de idade, com autorização expressa dos pais ou responsáveis legais;

• A triagem de alterações genéticas da hemoglobina deve ser obrigatoriamente acompanhada do oferecimento do aconselhamento genético (opcional por parte dos interessados) e, caso necessários, seguimento médico regular e tratamento adequado.

Quando fornecer o aconselhamento genético

O aconselhamento genético deve ser fornecido, de preferência, sempre que solicitado pelos interessados. Como parte da responsabilidade médica, ele também pode ser oferecido em caráter opcional, sempre que houver a possibilidade de o indivíduo tomar uma decisão consciente a respeito da procriação, a partir das informações fornecidas.

Situações especiais

• Diagnóstico do traço falciforme na triagem de recém-nascidos: o diagnóstico deve ser comunicado à família, acompanhado da informação de que o traço falciforme não é uma doença. Deve-se evitar, portanto, o alarme desnecessário da família. O exame laboratorial optativo dos familiares é recomendado, podendo-se chegar, eventualmente, ao diagnóstico de outros casos clinicamente significativos (indivíduos SS, SC, etc.) ou a situações em que o aconselhamento genético é necessário (ambos os genitores heterozigotos);

• Ilegitimidade parental: o Programa Nacional de Triagem Neonatal tem detectado um percentual significativo de casos de ilegitimidade paterna, podendo-se chegar, em algumas regiões, a 10% dos casos. A privacidade da família deve ser, evidentemente, preservada. Uma forma simples de contornar o problema é convidar apenas a mãe para a primeira consulta, fornecendo-lhe, além das informações de ordem terapêutica (necessidade de penicilinoterapia profilática a partir dos 4 meses, por exemplo), as explicações sobre o risco de recorrência da doença falciforme na prole, em função da presença do traço falciforme no pai da criança. Caberá a ela a opção de trazer, ou não, o marido para exame laboratorial e aconselhamento genético. Informações errôneas atenuantes, como a possibilidade de uma "mutação nova", por exemplo, nunca devem ser fornecidas ao casal, pois, apesar de bem intencionadas, elas constituem um erro médico grave;

• Diagnóstico pré-natal: em termos terapêuticos, o diagnóstico pré-natal da doença falciforme não oferece qualquer vantagem adicional ao diagnóstico neonatal. É importante lembrar que a interrupção da gravidez não é contemplada, nesses casos, pela exclusão da ilicitude penal em nosso país. Alguns centros de reprodução humana brasileiros já oferecem a possibilidade do diagnóstico pré-implantação na doença falciforme. Tais recursos técnicos não dispensam, no entanto, o fornecimento do aconselhamento genético tradicional, sobretudo frente à realidade socioeconômica e cultural brasileira.

Recebido: 09/04/2007

Aceito: 15/08/2007

O tema apresentado e o convite aos autores constam da pauta elaborada pelo co-editor, prof. Rodolfo Delfini Cançado.

Avaliação: Co-editor e um revisor externo.

Publicado após revisão e concordância do editor.

Conflito de interesse: não declarado.

  • 1.Ramalho AS. Aconselhamento Genético, Orientação Genética e Informação Genética. Programa Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e Outras Hemoglobinopatias. Brasília, Ministério da Saúde. 2006. pp. 1-7.
  • Correspondência:
    Antonio Sergio Ramalho
    Caixa Postal 6111
    13.081-970 - Campinas-SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      15 Ago 2007
    • Recebido
      09 Abr 2007
    Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Terapia Celular R. Dr. Diogo de Faria, 775 cj 114, 04037-002 São Paulo/SP/Brasil, Tel. (55 11) 2369-7767/2338-6764 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: secretaria@rbhh.org