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Crises dolorosas na doença falciforme

Painful episodes in sickle cell disease

Resumos

A doença falciforme é a enfermidade genética mais prevalente em todo o mundo. No Brasil, ela ocorre em um a cada 1.200 nascimentos. Por essa alta prevalência, ela representa, em nosso país, um importante problema de saúde pública. Além da hemólise, a vasoclusão é o achado central da doença e responsável pelas crises dolorosas, que correspondem à principal causa de internação nos adultos. Alguns pacientes evoluem com seis ou mais episódios dolorosos por ano. As crises graves e persistentes constituem, nesses pacientes, fator de mau prognóstico e um fator preditivo para morte precoce. Este artigo enfoca as abordagens terapêuticas das crises vasoclusivas nos pacientes de doença falciforme.

Doença falciforme; crises dolorosas


Sickle cell disease (SCD) is the most prevalent genetic disease in the world. In Brazil it occurs in one in every 1200 births. This high prevalence makes SCD a very important public health problem in Brazil. Vaso-occlusion and hemolysis are the hallmarks of the disease. Vaso-occlusion results in painful episodes which are the main cause of hospitalization among adults with SCD. Some patients experience episodes as often as 6 times per year. Persistent, severe sickle cell pain is a poor prognostic sign and a predictor for early death. The management of vaso-occlusion episodes is discussed here, as well as the related complications.

Sickle cell disease; painful episodes


ARTIGO ARTICLE

Crises dolorosas na doença falciforme

Painful episodes in sickle cell disease

Clarisse LoboI; Vera Neves MarraII; Regina Maria G. SilvaIII

IMédica hematologista, diretora geral do Hemorio, Rio de Janeiro, RJ

IILivre-docente em Hematologia e diretora técnica do Hemorio, Rio de Janeiro, RJ

IIIMédica anestesiologista e especialista em Tratamento de Dor Crônica do Hemorio, Rio de Janeiro, RJ. Membro da International Association of Study of Pain

Correspondência Correspondência: Clarisse Lopes de Castro Lobo Hemorio Rua Frei Caneca, 8 sala 310 - Centro 20211-030 - Rio de Janeiro-RJ E-mail: diretoria@hemorio.rj.gov.br

RESUMO

A doença falciforme é a enfermidade genética mais prevalente em todo o mundo. No Brasil, ela ocorre em um a cada 1.200 nascimentos. Por essa alta prevalência, ela representa, em nosso país, um importante problema de saúde pública. Além da hemólise, a vasoclusão é o achado central da doença e responsável pelas crises dolorosas, que correspondem à principal causa de internação nos adultos. Alguns pacientes evoluem com seis ou mais episódios dolorosos por ano. As crises graves e persistentes constituem, nesses pacientes, fator de mau prognóstico e um fator preditivo para morte precoce. Este artigo enfoca as abordagens terapêuticas das crises vasoclusivas nos pacientes de doença falciforme.

Palavras-chave: Doença falciforme; crises dolorosas.

ABSTRACT

Sickle cell disease (SCD) is the most prevalent genetic disease in the world. In Brazil it occurs in one in every 1200 births. This high prevalence makes SCD a very important public health problem in Brazil. Vaso-occlusion and hemolysis are the hallmarks of the disease. Vaso-occlusion results in painful episodes which are the main cause of hospitalization among adults with SCD. Some patients experience episodes as often as 6 times per year. Persistent, severe sickle cell pain is a poor prognostic sign and a predictor for early death. The management of vaso-occlusion episodes is discussed here, as well as the related complications.

Key words: Sickle cell disease; painful episodes.

Introdução

O termo doença falciforme engloba um grupo de anemias hemolíticas hereditárias que têm em comum a presença de hemoglobina S dentro da hemácia. Representa a enfermidade hereditária mais prevalente no mundo.1,2 Está presente, notadamente, na África tropical e em todos os países em que existe a contribuição do africano na formação étnica da população. Na Europa, está limitada à comunidade africana das antigas colônias, sendo encontrada ainda em algumas regiões da Itália onde mapeia as correntes migratórias da região de Benin, na África. Sua prevalência em vários países é estimada prospectivamente pelos resultados de programas de triagem neonatal.3,4 Por causa da grande miscigenação, no Brasil a prevalência é fortemente relacionada ao percentual de afro-descendentes em cada região e varia de um caso novo para cada quinhentos nascidos vivos (Bahia) até um caso novo para cada 8 mil nascidos vivos (Rio Grande do Sul). Os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais apresentam números intermediários com um caso novo para cada 1.200 nascimentos.5

A hemoglobina S, quando desoxigenada, sofre interações hidrofóbicas, o que compromete a solubilidade e acarreta formação de um polímero de moléculas de hemoglobina, o que resulta em dano celular irreversível, traduzido clinicamente pelo surgimento dos sinais e sintomas da doença.

A dor é o resultado da obstrução da microcirculação causada pelo afoiçamento das hemácias. Este é o mais dramático quadro da doença, pois as crises álgicas ocorrem inesperadamente, muitas vezes sem pródromos e impactam diretamente a qualidade de vida do paciente. A crise dolorosa ocorre, às vezes, após episódio infeccioso, sugerindo que febre, desidratação e acidose podem desencadear a vasoclusão. A dor também pode se instalar após o resfriamento súbito da pele ou exposição à estresse físico ou emocional.6

A subjetividade da dor representa um fator complicante para o seu tratamento, no entanto a já comprovada correlação entre a dor persistente e o maior risco de morte súbita justifica o destaque do tema para uma análise mais pormenorizada, focalizando os fatores envolvidos na sua fisiopatologia e, sobretudo, no tratamento a ser adotado.

Aspectos fisiopatológicos

Para melhor compreensão dos fenômenos que ocorrem na doença falciforme deve-se entendê-los como decorrentes da hemólise das células afoiçadas ou como secundários aos episódios de vasoclusão residindo, aí, as bases fundamentais de todo o curso clínico da doença (Figura 1).


A dor, resultante da isquemia da microcirculação da medula óssea, pode ser muito intensa e progressiva. A hipóxia tecidual secundária à obstrução provoca lesão tecidual e percepção nociceptiva da dor. Componentes neuropáticos podem também participar do quadro ocasionando aparecimento de sensação de queimação ou dormência.

Existem evidências crescentes de que o estresse inflamatório no ambiente microvascular pode ter um papel importante na manutenção do evento. Estudos encontram-se em andamento sobre o envolvimento de mediadores imunológicos, como Proteína C reativa, Glicoproteína 1-6 e atransferrina 7, que estão significantemente elevadas durante o episódio doloroso. Altos níveis circulantes de citoquinas inflamatórias como o Fator de Necrose Tumoral a (FNTa), interleukina-1a (IL-1a), interleukina-6 (IL-6), histamina e leukotrieno B4 também têm sido descritos. 7

TNF-a e IL-8 são de grande interesse porque seus efeitos podem diminuir o fluxo sangüíneo e impedir a recuperação do episódio isquêmico por aumentar a adesão da hemácia falcizada ao endotélio. Este achado é consistente com dados de estudos anteriores, os quais têm concluído que a persistência do processo inflamatório em pacientes com dor e doença falciforme é influenciada por estes agentes.7

O neuropeptídeo Substância P (sP) é hoje considerado o maior mediador da dor neurogênica e da inflamação. A sP induz ainda a liberação de histamina dos mastócitos e promove secreção de várias citoquinas incluindo IL-1, IL-6, IL-8, e TNF-a , sendo ainda um potente fator quimiotáxico.7

Especula-se que antagonistas dos receptores deste neuropeptídeo poderiam ter um potencial terapêutico no tratamento da crise dolorosa.

Este neuropeptídeo encontra-se elevado em pacientes com doença falciforme, em crise de vasoclusão. sP é um conhecido estimulador da secreção do TNF-a e promove a liberação de interleucina-8 (IL-8), que também se encontra elevada nos indivíduos com doença falciforme. Estas citoquinas promovem a adesão dos leucócitos no endotélio e têm participação nos eventos vasoclusivos.

Níveis séricos de IL-8, TNF-a , e sP foram estudados em três grupos de crianças com idades entre 2 e 18 anos: 30 crianças sem crise, 21 em crise, e 20 sem doença falciforme utilizadas como grupo controle. O nível sérico de sP estava elevado em todos os pacientes e estava mais alto naqueles em crise.7 Em três crianças com doença falciforme, a sP foi mensurada em condições de base e novamente durante a crise. Nestes casos, o nível sérico durante a crise era mais elevado do que quando o paciente estava bem.

Pacientes com doença falciforme e com baixos níveis de hemoglobina fetal (HbF) apresentavam ainda altos níveis de GM-CSF e IL-3, e a relação inversa foi observada entre HbF e os valores de TNF-a. Esta observação sugere que sP pode também produzir resposta hematopoiética ao stress.7

O trabalho conclui que os níveis de sP são mais elevados em pacientes com doença falciforme e que aumentam durante a crise. Estes resultados demonstram que a sP tem um papel proeminente no processo inflamatório e, se mensurada laboratorialmente, funciona como um marcador dos episódios de vasoclusão.

Aspectos clínicos

O quadro álgico pode ser agudo, subagudo ou crônico e vir acompanhado de febre com edema e calor na área afetada. Os ossos mais acometidos são úmero, tíbia e fêmur; entretanto, o infarto ósseo pode ocorrer em qualquer local, sendo bem documentada a sua ocorrência nos ossos da face, em que pode vir acompanhado de oftalmoplegia e ptose palpebral. No joelho e cotovelo, o infarto pode ser confundido com artrite séptica e, nos demais ossos, com osteomielite. Os exames radiológicos, na maioria das vezes, não são conclusivos.

Trinta e sete por cento das pacientes falcêmicas apresentam crises de dor no período menstrual, o que pode ser atenuado com o uso de contraceptivos de uso contínuo para induzir a amenorréia.8

A mulher grávida pode experimentar dor, aguda ou crônica, em várias ocasiões e o tratamento apresenta peculiaridades que discutiremos oportunamente.

A crise de dor abdominal está relacionada ao infarto de pequenas veias mesentéricas e das vísceras abdominais. É caracterizada por dor abdominal intensa acompanhada de sinais de irritação peritoneal. Apesar de poder ser confundida facilmente com apendicite, a presença de peristalse, durante o quadro, afasta a hipótese cirúrgica. Recomenda-se a averiguação sistemática de causas infecciosas - por exemplo, infecções urinárias e colecistite.

Algumas intercorrências da doença podem provocar quadros de dor crônica; é o caso da osteonecrose da articulação coxofemoral e das extensas úlceras de perna.

Vale lembrar que o paciente falcêmico pode também ser acometido por quadro álgico não relacionado a processos vasoclusivos. Se o modelo de dor do paciente é diferente do usual, outras causas devem ser investigadas.9

Para auxílio no diagnóstico diferencial deve-se considerar que a febre decorrente da osteonecrose é geralmente baixa, que o leucograma, apesar da leucocitose, apresenta discreto desvio à esquerda e que o infarto ósseo é, no paciente falcêmico, cinqüenta vezes mais comum do que a osteomielite.9 O quadro 1 apresenta as formas mais freqüentes de crises vasoclusivas associadas à doença falciforme.10


Tipos de dor

Os quadros álgicos podem ser classificados de acordo com a sua origem. Quando a dor ocorre em conseqüência de lesão tecidual, secundária a um estímulo (calor, pressão, corte) ou provocado por uma doença, a dor é chamada de "nociceptiva". Neste caso, o fenômeno é associado à inflamação do tecido danificado e o sistema nociceptivo fica mais sensível. Com a resolução do dano tecidual, o estímulo termina. A crise álgica ou vasoclusiva está dentro do grupo de dores nociceptivas, que podem ser do tipo somática ou visceral.

A dor neuropática ocorre quando os axomas sensoriais ou as células nervosas estão danificados, causando uma mudança no sistema nervoso e isto se traduz por hipersensibilidade, seja na área lesada ou no tecido circundante. A dor, nestes casos, tem característica de queimação ou choque.

A dor neuropática ou de deaferentação, rara na doença falciforme, responde inadequadamente ao uso de opióides, apresentando melhor resposta aos antidepressivos tricíclicos. O quadro 2 sistematiza os tipos de dor.


Aspectos terapêuticos

A Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe a utilização de analgésicos através de uma escada de três degraus:

1º Degrau - Analgésico não opiáceo/AINES ± Adjuvante

2º Degrau - Opióide fraco ± Analgésico não opiáceo / AINES ± Adjuvante

3º Degrau - Opióide potente ± Analgésico não opiáceo / AINES ± Adjuvante

O quadro 3 apresenta, por grupo farmacológico, os principais tipos de analgésicos usados na prática clínica.


O aumento superior à dose máxima de drogas ou a associação com outra droga do mesmo grupo trará apenas um incremento dos efeitos adversos, sem prover a analgesia satisfatória. Sempre que não obtivermos analgesia adequada, é necessário passar ao degrau seguinte da escada analgésica.

A analgesia com a utilização de opióides e antiinflamatórios não esteroidais é necessária freqüentemente em pacientes com doença falciforme com dores do tipo somático e visceral. A dor tende a responder bem ao tratamento com antiinflamatório e opióide.

Vários fatores podem influenciar os resultados do tratamento da dor na doença falciforme:

Medo da dependência psíquica

O profissional de saúde teme que o paciente se torne dependente psíquico se o analgésico opióide for prescrito. Sabe-se, contudo, que instituir subdoses de analgésicos, devido ao medo de desenvolver dependência predispõe os pacientes a adotar o comportamento de "buscador de medicação". Neste comportamento, a procura do medicamento é movida pelo medo de sentir dor e não ter o medicamento à mão. Poderia também ser chamada de comportamento de evitar a dor, no lugar de comportamento de buscar a droga.11

Desconfiança quanto à intensidade da dor

Muitos pacientes, embora sintam dor severa, mantêm atividades que parecem incompatíveis com a imagem esperada do paciente com dor intensa, como assistir televisão ou falar ao telefone. Isso, freqüentemente é percebido como um exagero na dor que é informada. Entretanto, o exercício dessas atividades representa um mecanismo de distração adotado com a finalidade de suportar melhor essa condição que acompanha o paciente ao longo de sua vida.

Da mesma forma, o fato do paciente dormir mesmo com dor pode confundir o profissional de saúde. Neste caso, dois pontos precisam ser entendidos. Primeiro isto se deve em parte ao efeito sedativo do opióide usado para analgesia. Segundo, pacientes com dor também precisam dormir. É, portanto, impróprio usar esta situação para definir se o paciente sente ou não dor.

A despeito da preocupação dos profissionais de saúde, a porcentagem de dependência psíquica em pacientes de doença falciforme é de apenas 1%-3%.11

Abordagem multidisciplinar

O tipo de instituição que promove o cuidado do paciente com doença falciforme também influencia no tratamento da dor.

Um trabalho que seguiu pacientes durante a internação hospitalar, em unidades sem capacitação específica, observou que a forma de abordagem utilizada estimulava a dependência e desencorajava o autocuidado.

Nestas instituições, cada médico promove o atendimento da crise, de um modo diferente, o que resulta em níveis diferentes de atenção. É importante que a abordagem da dor em paciente crônico utilize o grupo multidisciplinar que acompanha o paciente continuamente. A garantia do acesso ao medicamento de forma adequada melhora a relação do paciente com a equipe de saúde e propicia o cuidado baseado na história de cada indivíduo.

A implantação de um atendimento em programa de assistência hospitalar tipo hospital-dia, especializado em atendimento de intercorrências agudas da doença falciforme, em especial a crise de vasoclusão, tem sido recomendada.11 Em uma das instituições que participaram de um projeto piloto, foi observado que 80% dos pacientes passaram a ser liberados após quatro a cinco horas de tratamento. O percentual de pacientes que necessitaram admissão hospitalar foi de apenas 3%. Se compararmos esse com o percentual de 42,7% de internação, antes da implantação do serviço, podemos concluir que este tipo de abordagem representa um avanço no tratamento desta intercorrência.11

Com a abordagem multidisciplinar promovendo a orientação correta, a maioria dos episódios dolorosos pode ser tratada no domicílio.

Orientação e informação

O paciente deve conhecer as medidas a serem adotadas em cada episódio doloroso e identificar com clareza os sinais e sintomas que impõem a sua ida ao hospital.

O médico deve comunicar-se adequadamente com o paciente e seus familiares e discutir as diretrizes do tratamento. Relutância em oferecer a explicação de forma clara, sem a garantia do entendimento da linguagem utilizada, cria um tipo de comportamento que perpetua a falta de confiança e a dificuldade de adesão ao tratamento. A educação, o aconselhamento e o estabelecimento de confiança mútua entre o cuidador e o paciente são imperativos para o funcionamento deste processo.12

Recomenda-se o uso de manuais explicativos escritos com linguagem acessível, além de toda e qualquer outra forma capaz de garantir o entendimento por parte dos pacientes e familiares, tendo em vista suas necessidades específicas. O uso de agenda de anotações é também outro instrumento valioso para o acompanhamento da dor do paciente de doença falciforme.

Capacitação da equipe

Os profissionais de saúde devem ter capacitação especializada e acreditar no uso de medicamento contra dor, em especial os opióides, para que possam prover o tratamento adequado a cada caso. A equipe de saúde da emergência também precisa estar treinada quanto às medidas a serem tomadas em cada caso.

Tratamento domiciliar

Não existe forma objetiva para a mensuração da intensidade da dor. Logo, a terapia a ser iniciada deve ser norteada pela percepção do paciente. Para isso é utilizada a escala analógica da dor. Essa escala é quase sempre numerada de 0 a 10 (Figura 2), podendo conter também desenhos de faces para orientar familiares e equipe de saúde no tratamento de crianças. Após a identificação da intensidade do processo doloroso, a analgesia é iniciada contemplando três níveis:


Nível 1: dor quantificada na escala de 1 a 3 - Iniciar primeiro degrau respeitando-se os intervalos recomendados para cada fármaco;

Nível 2: dor quantificada na escala de 3 a 6. Acrescentar antiinflamatório não-esteróide ao esquema, alternando os dois fármacos em intervalo de oito horas para cada medicamento. Utiliza-se, desta forma, um medicamento a cada quatro horas alternadamente;

Nível 3: dor quantificada na escala de 6 a 10. Acrescentar codeína (opióide fraco) a cada quatro horas. Com a implementação dessa estratégia o paciente estará, nesse momento, utilizando três analgésicos intercalados. Dipirona e antiinflamatório não-esteróide a cada oito horas e codeína a cada quatro horas. Utilizar-se-á, dessa forma, um medicamento a cada duas horas alternadamente.

Em todos os estágios, o tratamento deve ser monitorado com a escala analógica da dor e mantido até o desaparecimento do sintoma. Os fármacos devem ser então retirados, um de cada vez, a cada 24 horas.

Após 24 horas do início do tratamento apropriado, em caso de piora ou ausência de controle do sintoma, o paciente deve procurar atendimento médico hospitalar.

Durante as crises, deve-se estimular a ingestão de líquidos (60 ml/kg/24h para adultos). Quando o paciente faz uso de opióide, devem-se ainda administrar laxantes devido à constipação intestinal.

Exercícios respiratórios devem ser realizados por todo paciente com dor, pois diminuem o risco de complicações pulmonares durante a crise. O procedimento é simples e deve ser realizado tanto no domicílio quanto durante os períodos de hospitalização.13

É muito importante lembrar que um episódio de dor intensa ou múltiplos episódios de dor aguda não tratados ou tratados incorretamente podem levar ao desenvolvimento de dor crônica.

Tratamento hospitalar

Caso haja necessidade de hospitalização, deve ser feita anamnese cuidadosa e a reavaliação da intensidade da dor, utilizando-se a escala analógica da dor. A informação sobre os medicamentos já utilizados no domicílio merece atenção especial.

A instalação de hidratação venosa é recomendada tanto para o ajuste hídrico quanto para a infusão de medicação analgésica. O paciente não deve ser hiper-hidratado pelo risco de sobrecarga cardíaca, entretanto, a hipostenúria, presente desde a infância, faz com que haja necessidade de monitoramento cuidadoso do balanço hídrico e da reposição de sódio.

Todos os pacientes devem realizar hemograma e reticulócitos no momento da admissão. Febre e dor torácica impõem a necessidade de realização de hemocultura e estudo radiológico do tórax.14 A crise álgica arrastada ou localizada na região torácica deve ser monitorada com radiografias seriadas e oximetria de pulso, visto a possibilidade de instalação rápida de complicações pulmonares, maior causa de mortalidade no adulto.15 Oxigênio deve ser administrado sempre que a oximetria de pulso sinalizar saturação abaixo de 92%.

Não valorizar a dor e abordar o sintoma de maneira imprópria pode resultar em insegurança do paciente, que passa a demonstrar os sintomas de forma exacerbada. Isto pode ser confundido pela equipe como manifestação de dependência. Esse fenômeno é descrito como pseudodependência e mede, de forma indireta, a qualidade da assistência que está sendo prestada.16,17

Assim como no tratamento domiciliar, a administração concomitante de opióides com os outros analgésicos da escala da OMS, por exemplo, dipirona e antiinflamatórios, é recomendada. Seu uso potencializa o efeito analgésico da morfina.

A utilização de protocolos para o tratamento da dor, apesar de necessária, não deve impedir que alguns pacientes sejam tratados com abordagens individualizadas.

O médico-assistente deve disponibilizar o protocolo no prontuário, de modo que o paciente possa ser tratado de forma preestabelecida, evitando sofrimento desnecessário.

O uso crônico de opióides requer, como referido anteriormente, equipe altamente treinada. O paciente deve ser orientado por meio de consentimento informado sobre os riscos e benefícios do uso do fármaco.18 Em casos de dor crônica, medidas diretamente relacionadas com a correção do evento, como o tratamento cirúrgico de uma necrose coxofemural, devem ser tomadas.

Além do tratamento medicamentoso, as estratégias adjuvantes são úteis no tratamento da crise de dor. Estimulação nervosa transcutânea (TEEN) e acupuntura podem apresentar resultados positivos. Medidas educativas, técnicas de auto-ajuda e hipnose também podem ser utilizadas.

Existem evidências que a simetria freqüentemente observada no episódio de vasoclusão pode ser mediada por um reflexo central que dirige o fluxo sangüíneo para longe da medula óssea em resposta a um resfriamento da temperatura da pele. Este reflexo ocorre em ambos os lados do corpo, simultaneamente. Este achado explica o alívio que alguns pacientes referem quando aquecem o local acometido. O efeito benéfico pode ser potencializado se orientarmos estes pacientes a aquecerem os dois lados do corpo, simétricos ao local afetado.19

Após o controle da crise, o paciente deverá ter alta hospitalar, com esquema medicamentoso do tratamento ambulatorial, sendo necessárias orientações de manutenção e retirada dos medicamentos, como já descritas no tópico "tratamento domiciliar".

Abordaremos a seguir, os analgésicos mais utilizados no controle da dor em doença falciforme:

Analgésicos, antiinflamatórios e antipiréticos

Estão indicados em todo tipo de dor aguda, excetuando a dor neuropática. Nas dores de natureza primariamente inflamatória, de intensidade branda a moderada devem ser o primeiro agente. Deve-se utilizar preferencialmente a via oral - a via parenteral está indicada quando se deseja alcançar concentrações plasmáticas mais rapidamente.

Nas dores brandas a moderadas devemos utilizar antiinflamatórios não esteroidais (AINES) de meia vida curta, como aspirina, cetoprofeno e paracetamol.

Nas dores subagudas, ósteoarticulares, que podem perdurar por período de cerca de dez dias, podemos prescrever derivados de ação longa, entretanto estes só atingem concentração plasmática estável em cerca de quatro dias.

Os fármacos devem ser utilizados em esquema regular, observando-se a meia vida de cada grupo farmacológico. A associação com opióides deve ser sempre considerada quando a dose máxima é atingida, sem que se tenha obtido analgesia satisfatória. Se for prescrito por mais de 15 dias, deve-se proteger a mucosa digestiva com drogas antagonistas dos receptores H2 ou bloqueadores de bomba de prótons.

O quadro 4 resume as doses dos principais analgésicos, antiinflamatórios e antipiréticos a serem adotadas.


Antiinflamatórios não-esteroidais (AINES)

Os antiinflamatórios não-esteróides agem primariamente em nível de nociceptores no local do surgimento da dor. Por isso são conhecidos como analgésicos de ação periférica. Eles exercem este efeito inibindo as enzimas COX e diminuindo a produção de prostaglandinas.18

Os efeitos adversos desse grupo, como dispepsia, náuseas, vômitos e epigastralgia, parecem estar relacionados ao perfil de acidez da droga e à sua meia vida. Drogas de meia vida mais curta, como a aspirina e a indometacina, encontram-se mais relacionadas a estes efeitos adversos.

Ulceração gástrica e sangramento digestivo não apresentam relação com o grau de acidez da droga. São efeitos tardios e resultam da inibição da síntese de prostaglandinas que, utilizada por tempo prolongado, produz um muco mais fluido, com menor quantidade de mucina, portanto com menos efeito protetor da mucosa. O resultado final é a hipercloridria por inibição do reflexo de controle da liberação de acetilcolina nas terminações vagais no estômago. Este efeito pode ocorrer com qualquer derivado, porém é mais freqüente com as drogas de ação mais prolongada.

Nefrite e insuficiência renal, podem ocorrer com tratamento a longo prazo, principalmente em pacientes com doença renal prévia. A droga mais relacionada a este efeito é o paracetamol.

Reações anafiláticas, principalmente asma e reações dermatológicas, podem ocorrer por inibição da cicloxigenase, causando acúmulo de seus metabólitos, como leucotrienos, resultando em espasmo da musculatura lisa dos brônquios. Havendo reação anafilactóide, esta ocorrerá com as outras drogas do grupo, excetuando o paracetamol.

O aumento do tempo de sangramento ocorre mais freqüentemente com os fármacos que inibem permanentemente a ciclooxigenase, como a aspirina. Alterações hepáticas e da medula óssea são raras.

O quadro 5 exibe as doses usuais dos antiinflamatórios não esteróides (AINES):


Opióides

Os opióides compõem um grupo de analgésicos que não têm dose teto, apenas os efeitos adversos servem de guia para o estabelecimento da dose necessária para cada paciente.20 Foi observada relação entre eficácia terapêutica e ativação metabólica promovida por uma enzima específica do grupo P450 a CYP2D6. Esta enzima está no grupo que apresenta polimorfismo genético clinicamente relevante. Pacientes que apresentam taxas de metabolização baixas de opióide apresentam baixa atividade enzimática, o que resulta em diminuição da produção de opióide clinicamente ativo.21

Os opióides mais utilizados na prática clínica são os agonistas opióides, como codeína, morfina, metadona, fentanil, oxicodona, hidromorfina (ainda não disponível no Brasil). O quadro 6 contém os opióides e as doses mais freqüentemente utilizadas.


Segundo Portenoy, algumas recomendações justificam o uso de opióides em pacientes com dor crônica não oncológica;22

• A dor deve ceder com o uso do opióide, quando usado na dose e intervalos certos;

• O médico deve utilizar um método de avaliação mais objetivo possível. A ausência de resultados justifica encerrar o tratamento;

• O uso do opióide deve produzir melhora evidente na capacidade funcional do paciente;

• A prescrição deverá ser feita por um tempo limitado (a cada 10-15 dias) e com o controle constante de possíveis efeitos colaterais.

Com todos os preceitos de Portenoy atendidos, nas crises vasoclusivas da doença falciforme, a medicação mais utilizada para o controle da dor que requer internação é a morfina. O fármaco pode ser utilizado em infusão venosa ou subcutânea na dose de 0,1 a 0,2 mg/kg e deve ser instituído imediatamente após a análise inicial. Após 15 minutos, caso não tenha havido melhora da dor, metade da dose deve ser repetida até que haja o controle do sintoma. A partir desse momento, o medicamento deve ser utilizado regularmente, devendo ser evitada a formulação "SOS"(quando necessário). Quando necessárias essas doses de resgate, que funcionam como doses extras, serão somadas à dose total e incorporadas à posologia do dia anterior.

O uso de meperidina está contra-indicado para controle da dor não oncológica em pacientes que poderão potencialmente utilizar analgésico opióides várias vezes durante a vida, como os indivíduos com doença falciforme, em virtude do rápido aparecimento de dependência física com o fármaco.14 Surgimento de tremores, mioclonia, agitação e tonteiras são também freqüentes e devem-se ao acúmulo no organismo do principal metabólico da meperidina, a normeperidina.

Os efeitos colaterais dos opiódes são bem conhecidos e incluem prurido, náuseas, vômitos, sedação, depressão respira tória e crise de abstinência. Todos podem ser controlados por medicação específica. A morfina deve ser utilizada com cautela no paciente com insuficiência renal, pois seus metabólitos são excretados pelo rim.18

Os opióides podem ser classificados de acordo com o quadro 7.


O tramadol não é considerado um opióide por alguns autores; isto se deve ao fato de o fármaco apresentar efeito de inibição na recaptação de serotonina e norepinefrina (efeito antidepresivo-like). Entretanto ele atua principalmente em nível central, como um agonista fraco dos receptores m,23 portanto será considerado neste grupo. Apesar de não ser utilizado rotineiramente, o tramadol está indicado em algumas situações clínicas, como no priapismo, onde o uso de opióides está contra-indicado.

Para o manuseio de opióides, é indispensável a revisão de certos conceitos relatados a seguir.

Dose resgate (Breakthrough Pain)

É a dose que pode ser administrada em caso de dor incidental entre as doses regulares prescritas. O paciente deve ser informado detalhadamente da existência da dose resgate, pois é um importante componente da estratégia de controle da dor. Regularmente, a dose representa 5% a 20% da dose total das 24 horas. Pode ser utilizada, quando necessário, em intervalos de uma hora.

Cuidados especiais para evitar a dependência

Para evitar a dependência física, a retirada do opióide deverá ser gradual, se tiver sido administrado por mais de duas semanas e da seguinte forma: após a resolução da dor (por exemplo, na crise de vasoclusão), a dose total diária será diminuída em 20%-25% a cada dia, até que chegue à dose mínima de 5 mg, a cada quatro horas. A seguir, deve-se aumentar o intervalo para 6/6h, 8/8h, 12/12h, até a retirada total. Dependendo do tempo de uso, a retirada pode ser mais rápida ou mais lenta, usando como guia os sintomas da síndrome de abstinência.

O médico deve supervisionar e fornecer a medicação, conforme o resultado funcional e psicológico do paciente. Deve controlar o número de comprimidos e sobretudo estar atento aos primeiros sinais de dependência. Deve ser indicada fisioterapia, psicoterapia e terapia ocupacional para melhora da capacidade funcional, sendo que a ausência da adesão do paciente justifica a interrupção do tratamento.

O que evitar em pacientes crônicos não-oncológicos

Meperidina: o uso crônico leva ao acúmulo de metabólico que é neurotóxico, e causa delirium e convulsão.

Agonista parcial (ex: buprenorfina): tem menos efeito no receptor opióide que o agonista puro e tem efeito teto.

Agonista-antagonista (nalbufina, pentazocina): eles bloqueiam ou são neutros em um tipo de receptor opióide enquanto ativam outro receptor, têm alta incidência de efeitos psicomiméticos e podem causar síndrome de abstinência.

Especificidades dos opióides

Codeína: Quando em associação com acetaminofen, a dose máxima é de 360 mg/dia (seis tomadas de 60 mg), para não ultrapassar a dose máxima de acetaminofen, que pode ser danosa à função renal.23

Cloridrato de tramadol: Apresenta efeito analgésico por cerca de seis a oito horas. Por via parenteral, injetam-se 100 mg intramuscular ou 100 mg por via intravenosa, lentamente, diluídos em solução salina ou soro glicosado. Para manutenção do efeito, devem-se diluir duas ampolas de 100 mg de cloridrato de tramadol em 500 mL de soro glicosado ou fisiológico, mantendo o gotejamento em 10 a 20 gotas/minuto ou em bomba de infusão 30 a 60 ml/hora. O fármaco encontra-se disponível em cápsula (50 mg), gotas (100 mg/ml), supositório e (100 mg) e ampola (50 e 100 mg).

Morfina: É um agonista puro, não apresenta efeito teto, o aumento da dose implica um aumento na analgesia. Deve ser prescrita quando os dois primeiros degraus da escada analgésica proposta pela OMS se mostrarem ineficazes. Deve-se prescrever sempre em horário predeterminado (geralmente a cada quatro horas e eventualmente em intervalos menores). A posologia depende dos efeitos. O limite inferior é a presença de dor leve (até o valor de 3 na escala analógica) por mais de cinco horas durante o dia.

Define-se por "leve" aquela dor suportável por pelo menos uma hora antes da próxima dose. O limite superior está presente quando aparecem efeitos colaterais como sonolência, vômitos e constipação, tornando-se necessária, algumas vezes, a prescrição de medicação adjuvante, como antidepressivos, tricíclicos ou neurolépticos. Após cerca de dez dias de utilização da morfina, acredita-se já haver dependência física para a droga.16 A tolerância se desenvolve também de forma individualizada.

A descontinuação abrupta da morfina levará à síndrome de abstinência, cuja prevenção se faz com a retirada gradual do fármaco.

O período de detoxificação depende do tempo de utilização da droga. Por exemplo, para um paciente que utilizou morfina por um ano, o período de detoxificação deverá ser de duas a quatro semanas. Se for usado por dois meses, em aproximadamente uma semana conseguiremos a detoxificação.

Metadona: É um opióide sintético, agonista dos receptores m e d, e antagonista dos receptores NMDA. Tem a meia-vida plasmática mais longa e variável entre os opióides e sua farmacocinética é individual, podendo variar de 12 a 15 horas. O estado de equilíbrio só é atingido após cinco a sete dias de uso contínuo do medicamento.

A metadona não possui metabólitos ativos. O fármaco é eliminado pelo rim e metabolizado pelo fígado, podendo ter sua meia-vida prolongada por outras drogas como amitriptilina ou ter sua metabolização acelerada por drogas como a carbamazepina, rifampicina, fenitoína, espironolactona, dilacoron e estrogênios. Apresenta excelente absorção oral e retal, podendo levar até noventa horas para ser eliminada completamente.

Pacientes com doença falciforme parecem apresentar uma taxa de metabolização e eliminação aumentada, sobretudo durante a crise e precisam de doses maiores para ter analgesia. A dose noturna pode ser um pouco maior para garantir uma noite sem dor. Se forem observados sinais de sobredose, como sedação, náuseas ou vômitos, a dose seguinte deve ser diminuída em 50%.

A metadona pode ser até dez vezes mais potente que a morfina. Devemos lembrar, contudo, que potência corresponde à dose equivalente para se obter o mesmo efeito, e que não significa efetividade.23

As grandes indicações da metadona são a neurotoxicidade com morfina, a dor neuropática (onde ela é até três vezes mais potente que a morfina), e as dores que respondem mal aos outros regimes usuais. Pode ser usada como primeira escolha ou em rodízio com outros opióides.

Cloridrato de nalbufina: Não é um agonista puro, apresenta também efeito antagonista análogo à naloxona. Deve ser prescrita a dose de 10 mg a cada três ou quatro horas, por via parenteral. Em crianças, a dose é de 0,1mg/kg, por via parenteral, a cada três ou quatro horas.

Cloridrato de buprenorfina: Apresenta efeito agonista e antagonista. É um agonista parcial. Tem efeito teto acima de 1,2 mg. Pode precipitar síndrome de abstinência em pacientes que usam cronicamente outro opióide.

Coeficiente para cálculo de doses

Para passar de um opióide para outro, deve-se usar uma escala de conversão com o objetivo de evitar a crise de abstinência e a emergência de novo episódio de dor.

• Determine a dose total de opióide usado nas 24 horas

• Respeite o intervalo de cada opióide

• Multiplique pelo fator de conversão da tabela. Utilizar 30%-50% a menos do novo opióide para evitar tolerância cruzada

• Divida a quantidade final pelo número de doses por dia, de acordo com o intervalo de cada opióide

• Estabeleça uma dose de resgate para dor incidental.

É muito importante conhecer a equivalência dos opióides para que se possa fazer a correta migração de um sal para outro. Contudo, deve-se lembrar que nenhuma conversão é efetiva para todos os pacientes; só uma freqüente e cuidadosa observação pode personalizar a dose para cada paciente. O quadro 8 exibe as bases de cálculo para troca entre as formulações oral e parenteral bem como entre diferentes opióides.


Efeitos adversos dos opióides

Constipação: Todos os pacientes em uso crônico de opióides apresentam constipação e devem usar algum tipo de anticonstipante. Devem fazer parte da prescrição as seguintes recomendações: (1) Estimular a ingesta hídrica, (2) fazer uso de fibras e de alimentos não constipantes.

Nas constipações mais leves, a dieta, hidratação e administração de fitoterápicos como Cassia angustifolia (Tamarine®), Pó de folhas de Sena, Cássia, Tamarindus e Coriandrum (Laxarine®) , Plantago e Cassia (Agiolax®) ou Hidróxido de Magnésio são suficientes, podendo ser feitos até três vezes ao dia.

Em casos mais graves, podemos usar catárticos como bisacodil, ou laxantes osmóticos, como lactulona, 15 ml-20 ml de uma até três vezes/dia. Deve-se evitar óleo mineral, pois pode causar síndrome disarbsortiva.

Náuseas ou vômitos: Menos de 50% dos pacientes têm náuseas ou vômitos ou apresentam esses sintomas apenas no início do tratamento. No caso da metadona esse quadro representa um sinal de sobredose e indica que a dose deve ser reduzida à metade ou deve-se aumentar o intervalo.

O antiemético de escolha é o haloperidol, em dose única pela manhã de 1 mg a 2 mg (10-20 gotas) associado a cinco gotas à noite, quando necessário. O haloperidol age direto no centro do vômito (exatamente como a morfina), tem longo tempo de ação e não causa hipotensão. A metoclopramida tem ação por apenas quatro horas e pode causar sonolência, agitação e sintomas extrapiramidais.

Sonolência e sedação: Ambos são mais freqüentes no início do tratamento de uso crônico, até que a tolerância se instale. Pacientes que não fazem uso regular de opióides podem apresentar esse efeito por até 7-10 dias. O risco de depressão respiratória é mínimo em paciente que em uso de morfina ainda apresenta dor.

No tratamento de crises álgicas episódicas, a sedação representa um sinal inicial de sobredose, que antecipa a depressão respiratória. Contudo, pode também significar apenas relaxamento por ter havido o alívio da dor depois de muitas horas de agonia. O uso contínuo e a experiência de médicos e enfermeiras vão ajudar no reconhecimento dos sintomas.

É importante excluir o uso de outras medicações que causam os mesmos efeitos adversos, como os antidepressivos, outro opióide, anticonvulsivante, benzodiazepínicos e anti-histamínicos. Hiponatremia, alterações do cálcio, hipertensão intracraniana ou agravamento da anemia também devem ser considerados no diagnóstico diferencial.

Hipotensão arterial: É mais freqüente com o uso da via peridural, se houver uso concomitante de anti-hipertensivo, diurético, antidepressivos, benzodiazepinico, fenotiazidicos ou ainda se houver um quadro de desidratação.

Sudorese abundante: Observada na síndrome de abstinência ou em pacientes com disfunção hepática. O uso de prednisona (5 mg-20 mg) auxilia no alívio do sintoma.

Dependência física, dependência psíquica e vício: Dependência física ocorre em pacientes que usam opióide cronicamente, por período superior a 15 dias, e se apresenta como uma reação abrupta com suores, midríase, dores intensas, contraturas musculares, diarréia, hipertermia e agressividade. Isso é devido a uma reação neurofarmacológica da medicação-receptor.

Dependência psíquica ou "vício" é causada por uma alteração de comportamento vinculada a uma predisposição familiar que torna um determinado indivíduo particularmente vulnerável ao desenvolvimento de dependências, podendo ser considerado um fenômeno neurofarmacológico e psicológico. Testes psicológicos desenvolvidos nos Estados Unidos buscam traçar um perfil do paciente, antevendo sua tendência à dependência psíquica. Ainda não estão disponíveis na maioria dos centros no Brasil. Na prática, devemos investigar a concomitância de outras dependências, como alcoolismo, tabagismo, uso de qualquer tipo de drogas ou evidência de outra forma de dependência.17

Existem três situações nas quais devemos considerar a necessidade de controle rígido durante o uso do opióides.

1 - Paciente sem história prévia de dependência que se torna dependente após o uso do opióide;

2 - Paciente que tem dependência psíquica e tem dor, necessitando do opióide para tratar a dor.

3 - Paciente que tem dependência psíquica e com dor, necessita do opióide para tratar a dor e divide sua medicação com outro dependente psíquico.

Em qualquer um dos casos, o paciente precisa ser tratado, pois a dor crônica pode levar à desestruturação psíquica do indivíduo contribuindo significativamente para o aumento do número de abandono de tratamento e até mesmo comprometimento da integridade física.24

Antagonista de opióides

O antagonista é a naloxona, que apresenta as seguintes características:

Início de ação: 1 a 2 minutos

• Pico: 5 a 15 minutos

• Duração da ação: 1 a 4 horas

• Dose para overdose ou depressão respiratória é de 0,1 mg a 2 mg, que podem ser escalonados a cada dois a três minutos, até a obtenção do efeito desejado.

• Máximo de 10 mg

• Na prática, deve-se diluir uma ampola para 20 mL (onde cada mL equivale a 0,02) e, se diagnosticada depressão respiratória por opióide, com freqüência respiratória menor que 5, iniciar com 5 ml (0,1).

• Estimular verbalmente o paciente a respirar fundo. Se não houver aumento da freqüência, fazer mais 1mL-2 mL.

• A injeção rápida de uma ampola pode levar a edema agudo de pulmão.

• Lembrar que a meia vida da naloxona é menor que a do opióide e que com o término do seu efeito pode haver retorno da depressão respiratória. O paciente deve, portanto, ficar monitorizado e sob vigilância.

• Pacientes em uso crônico de morfina podem ter síndrome de abstinência precipitada por esta medicação.

Medicamentos adjuvantes

Algumas vezes, os pacientes reclamam de dor como uma maneira de expressar uma outra forma de sofrimento como ansiedade e depressão. Nesses casos, uma abordagem psicossocial poderá ser mais efetiva que um analgésico. Isto fica bem claro quando se entende a influência da emoção no processo da dor. O trabalho multiprofissional é necessário para determinar um plano de cuidado tão específico quanto possível para a etiologia da dor.

Depressão, ansiedade e distúrbio do sono comumente ocorrem com a dor crônica demandando atenção e tratamento próprio. A dor é uma experiência sensorial e emocional e não se pode separar uma da outra.24 De acordo com a gravidade, freqüência e a alteração do humor associados com a dor, um tratamento com várias drogas pode ser a melhor escolha. Estas medicações potencializam efeitos analgésicos atuando ainda no centro do humor. Devemos levar em consideração que as doses dos antidepressivos tricíclicos usados para tratamento de dor crônica são inferiores às usadas para sua indicação usual. Os quadros 9 e 10 mostram de forma sistematizada esses medicamentos adjuvantes em adultos e crianças, respectivamente.



A acupuntura tem sido usada para tratar vários tipos de dor nos países orientais. Comparada com outros tratamentos complementares para dor, a acupuntura é o método mais aceito entre os médicos ocidentais. O mecanismo de ação do tratamento por técnica de acupuntura envolve a estimulação localizada, levando a mudanças eletrotérmicas, modificação da transmissão do sinal da dor e aumento da secreção de endorfinas.

Dor e gravidez

Durante a gravidez as mudanças que ocorrem no organismo alteram os processos farmacodinâmicos e farmacocinéticos.25 Estas modificações provocam o retardo na absorção gástrica e o aumento da ligação proteína-drogas no sangue. Devemos ainda levar em consideração que o metabolismo placentário é influenciado pelo tamanho da molécula e de sua liposolubilidade, fatores que modulam a quantidade da droga que será efetivamente passada para o feto.25

O uso crônico de aspirina está associado ao aumento da freqüência de aborto. Além disso, durante o primeiro trimestre aumenta o risco de malformações congênitas, como gastroschisis.26

O paracetamol parece ser mais seguro e não está associado ao aumento do índice de abortos. Mas cuidados devem ser tomados quanto à dose e ao tempo de tratamento.27

A exposição continuada aos oipiódes intra-útero aumenta a sensibilidade à dor e à tolerância no feto. Algumas mudanças psicológicas e comportamentais foram também observadas no recém nato. Existem evidências de down-regulation nos receptores m opióides durante o segundo e terceiro trimestres, mas as mudanças retornam ao normal após alguns meses de interrupção da administração do opióde.28

A metadona é o opióide mais usado e estudado em grávidas, sendo o mais fácil de manusear. Entretanto, o recém-nascido apresentará sinais de síndrome de abstinência, necessitando de tratamento específico.28

Considerações finais

É muito importante que os profissionais de saúde que prestam assistência ao paciente com doença falciforme reflitam sobre a efetividade do tratamento não só do ponto de vista técnico como também, sob a ótica do paciente, de sua família e da sociedade.

Deve-se partir da premissa que a doença é crônica, permeada por crises agudas e que ainda não pode ser curada. É também fundamental buscar conhecer e entender os processos pelos quais esses indivíduos são conduzidos a viver. Através dessa dimensão, percebemos narrativas de sofrimento intenso, com o estigma da doença, possibilidade de limitação, desabilitação definitiva, perda da capacidade de trabalho e sentimento de inutilidade.

Não há dúvida que apenas a abordagem técnica não nos permite resolver as questões centrais sem considerar a profundidade dos significados da doença e da dor para aquele indivíduo.

Desta forma, o modelo médico tradicional, no qual o paciente adota uma atitude passiva, deve ser rejeitado, dando lugar a uma relação mais igualitária, na qual o paciente passa a ser visto como parte ativa na tomada de decisões de seu tratamento.

Recebido: 10/04/2007

Aceito: 15/05/2007

O tema apresentado e o convite aos autores constam da pauta elaborada pelo co-editor, prof. Rodolfo Delfini Cançado.

Avaliação: Co-editor e um revisor externo.

Publicado após revisão e concordância do editor.

Conflito de interesse: não declarado.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      15 Maio 2007
    • Recebido
      10 Abr 2007
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