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Complicações hepáticas na doença falciforme

Hepatic complications in sickle cell disease

Resumos

Doentes falciformes podem apresentar alterações hepáticas agudas ou crônicas. As agudas são caracterizadas por dor no quadrante superior direito e icterícia. O diagnóstico diferencial inclui crise aguda de falcização hepática, seqüestro hepático, colestase intra-hepática, colelitíase, coledocolitíase, colecistite e hepatite viral aguda. Estas complicações devem ser diagnosticadas precocemente, através de história clínica, testes de função hepática e exames radiológicos, e o tratamento deve ser prontamente iniciado. Transfusão sangüínea é essencial para o tratamento das manifestações agudas causadas pelo processo de vaso-oclusão, como seqüestro hepático e colestase intra-hepática. As alterações hepáticas crônicas são freqüentemente causadas pela hemólise crônica e múltiplas transfusões. Para prevenção, diagnóstico precoce e orientação terapêutica da alteração hepática crônica, os doentes falciformes devem ser submetidos a exames de rotina: testes de função hepática, sorologia para hepatite B e C, dosagem sérica de ferritina e ultra-sonografia de abdômen. A biópsia hepática deve ser realizada em pacientes com hepatite viral e em pacientes com alterações hepáticas crônicas acentuadas e persistentes, afora das manifestações agudas.

Doença falciforme; alterações hepáticas


Patients with sickle cell disease may present acute or chronic hepatopathy. The acute syndrome is characterized by right upper quadrant abdominal pain and jaundice. The differential diagnoses include acute sickle hepatic crises, hepatic sequestration, sickle cell intrahepatic cholestasis, cholecystitis, choledocholithiasis and acute viral hepatitis. These alterations can be differentiated by a careful history, liver function tests and hepatobiliary imaging studies. The specific treatment must be promptly initiated. Red blood cell transfusion is essential for the treatment of the clinical syndromes caused by the sickling process such as hepatic sequestration and sickle cell intrahepatic cholestasis. Chronic liver disease is frequently caused by chronic hemolysis and multiple transfusions. In an attempt to prevent, early diagnosis and treatment of chronic liver disease, sickle cell disease patients must be routinely submitted to liver function tests, serologic tests for hepatitis B and C, serum ferritin levels and abdominal ultrasound. Liver biopsy may be indicated in patients with virus hepatitis and in patients with persistent and accentuated alterations in liver function tests, out of acute sickle cell hepatic crises.

Sickle cell disease; hepatopathy


ARTIGO ARTICLE

Complicações hepáticas na doença falciforme

Hepatic complications in sickle cell disease

Fabíola Traina, Sara T. O. Saad

Centro de Hematologia e Hemoterapia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Clínica Médica

Correspondência Correspondência: Sara T. O. Saad Rua Carlos Chagas, 480, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo, Caixa Postal: 6198 13083-970 - Campinas-SP - Brasil Fax: (55-19)3289-1089 E-mail: sara@unicamp.br

RESUMO

Doentes falciformes podem apresentar alterações hepáticas agudas ou crônicas. As agudas são caracterizadas por dor no quadrante superior direito e icterícia. O diagnóstico diferencial inclui crise aguda de falcização hepática, seqüestro hepático, colestase intra-hepática, colelitíase, coledocolitíase, colecistite e hepatite viral aguda. Estas complicações devem ser diagnosticadas precocemente, através de história clínica, testes de função hepática e exames radiológicos, e o tratamento deve ser prontamente iniciado. Transfusão sangüínea é essencial para o tratamento das manifestações agudas causadas pelo processo de vaso-oclusão, como seqüestro hepático e colestase intra-hepática. As alterações hepáticas crônicas são freqüentemente causadas pela hemólise crônica e múltiplas transfusões. Para prevenção, diagnóstico precoce e orientação terapêutica da alteração hepática crônica, os doentes falciformes devem ser submetidos a exames de rotina: testes de função hepática, sorologia para hepatite B e C, dosagem sérica de ferritina e ultra-sonografia de abdômen. A biópsia hepática deve ser realizada em pacientes com hepatite viral e em pacientes com alterações hepáticas crônicas acentuadas e persistentes, afora das manifestações agudas.

Palavras-chave: Doença falciforme; alterações hepáticas.

ABSTRACT

Patients with sickle cell disease may present acute or chronic hepatopathy. The acute syndrome is characterized by right upper quadrant abdominal pain and jaundice. The differential diagnoses include acute sickle hepatic crises, hepatic sequestration, sickle cell intrahepatic cholestasis, cholecystitis, choledocholithiasis and acute viral hepatitis. These alterations can be differentiated by a careful history, liver function tests and hepatobiliary imaging studies. The specific treatment must be promptly initiated. Red blood cell transfusion is essential for the treatment of the clinical syndromes caused by the sickling process such as hepatic sequestration and sickle cell intrahepatic cholestasis. Chronic liver disease is frequently caused by chronic hemolysis and multiple transfusions. In an attempt to prevent, early diagnosis and treatment of chronic liver disease, sickle cell disease patients must be routinely submitted to liver function tests, serologic tests for hepatitis B and C, serum ferritin levels and abdominal ultrasound. Liver biopsy may be indicated in patients with virus hepatitis and in patients with persistent and accentuated alterations in liver function tests, out of acute sickle cell hepatic crises.

Key words: Sickle cell disease; hepatopathy.

Introdução

Alterações hepáticas são freqüentes em doentes falciformes, ocorrendo predominantemente em pacientes homozigotos para anemia falciforme e em menor freqüência em indivíduos com hemoglobinopatia SC ou Sß talassemia. Os doentes falciformes podem apresentar alterações hepáticas agudas, que exigem tratamento e suporte imediato, ou alterações hepáticas crônicas. Estudos sobre incidência e etiologia das alterações hepáticas crônicas em doentes falciformes vivos são raros e limitados a um pequeno número de doentes.1-4 Somente quatro estudos com detalhamento clínico, bioquímico, sorológico e histopatológico em pacientes vivos com diagnóstico de hepatopatia e doença hepatobiliar são descritos.1-4 Três destes estudos1,2,4 sugeriram que disfunção hepática está principalmente relacionada a causas não vasculares, como hepatite viral ou obstrução crônica de trato biliar. Entretanto, um destes estudos sugeriu que as lesões hepáticas são principalmente causadas por alterações vasculares secundárias à falcização presente na doença falciforme.3

A avaliação de setenta pacientes com doença falciforme em acompanhamento ambulatorial no Hemocentro da Unicamp revelou a ocorrência de Hepatite viral em 13 pacientes (dez hepatite C, dois hepatite C e B e um hepatite B); colelitíase em 13 pacientes e antecedente de colecistectomia em 27 pacientes. Alterações hepáticas à ultra-sonografia foram detectadas em 26 indivíduos, sendo esteatose em cinco indivíduos, hepatomegalia em 19 e cirrose em três. Elevação de ferritina (> 500 ng/dL) associada a transfusões crônicas foi observada em 13 indivíduos e elevação de ALT em nove pacientes. Biópsia hepática foi obtida em vinte pacientes com alterações hepáticas crônicas. Não ocorreram complicações associadas ao procedimento. Dezenove das vinte biópsias obtidas apresentaram algum grau de lesão vascular. Outros achados histológicos encontrados estavam associados a hemossiderose ou hepatite B ou C, incluindo inflamação portal, hepatite crônica ou cirrose.

Alterações hepáticas secundárias ao processo de falcização

Doentes falciformes podem apresentar alterações agudas causadas pelo processo de falcização caracterizadas por dor no quadrante superior direito e icterícia. O diagnóstico diferencial inclui crise aguda de falcização hepática, seqüestro hepático e colestase intra-hepática. Outras manifestações que devem ser consideradas no diagnóstico diferencial são as manifestações clínicas agudas como colelitíase e coledocolitíase com obstrução do ducto biliar comum, colecistite e hepatite viral aguda.5,6

Crise aguda de falcização hepática

Pacientes apresentam-se com dor no quadrante superior direito, náusea, hepatomegalia dolorosa, febre e icterícia. aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT) raramente excedem 300 IU/L. Bilirrubina sérica eleva-se em torno de 15mg/dL. O processo é autolimitado e reverte-se em 3 a 14 dias com analgesia e hidratação.5

Seqüestro hepático

O seqüestro hepático caracteriza-se por dor no quadrante superior direito, hepatomegalia, queda no hematócrito, aumento dos reticulócitos e pouca alteração das enzimas hepáticas. Ultra-sonografia e tomografia computadorizada de abdômen revelam apenas hepatomegalia.7 A reversão do seqüestro hepático com conseqüente liberação de hemácias à circulação sangüínea pode resultar em um aumento dos níveis de hemoglobina, hipervolemia e hiperviscosidade.8 O tratamento do seqüestro hepático deve ser feito com transfusão de troca. A transfusão simples é uma opção terapêutica, mas deve ser utilizada com cautela pelo risco de hipervolemia.5

Colestase intra-hepática

A colestase intra-hepática resulta de um processo de falcização intra-sinusoidal, hipoxemia e isquemia dos hepatócitos com conseqüente edema dos hepatócitos e colestase intracanalicular. As manifestações clínicas são semelhantes à crise aguda de falcização hepática, com dor no quadrante superior direito, náusea, vômito, hepatomegalia dolorosa, febre e leucocitose. Entretanto, ocorre um aumento acentuado da bilirrubina, acompanhado de insuficiência renal, coagulopatia e encefalopatia hepática.5,9

A dosagem sérica de ALT varia de 34 a 3070 IU/L, a dosagem sérica de AST varia de 100 a 6680 IU/L. Achado característico é a acentuada elevação da bilirrubina, com predomínio de bilirrubina conjugada na maioria dos casos. A elevação da bilirrubina ocorre como conseqüência da hemólise, colestase intra-hepática e alteração renal. A dosagem sérica de lactato desidrogenase está normalmente elevada (660 - 7760 IU/L). São freqüentes o prolongamento do tempo de protrombina (TP) e tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA), elevação da uréia e creatinina, trombocitopenia e acidose lática.5,9

O tratamento da colestase intra-hepática deve ser realizado com transfusão de troca e transfusão de plasma fresco congelado para controle da coagulopatia.10,11

Alterações hepáticas secundárias à hemólise crônica e múltiplas transfusões

Colelitíase e coledocolitíase

A elevada excreção constante de bilirrubina resulta em formação freqüente de cálculos biliares. A colelitíase é mais freqüente em indivíduos homozigotos para anemia falciforme (58%) se comparados a indivíduos com hemoglobinopatia SC ou Sß talassemia (17%) e a prevalência aumenta com a idade. Coledocolitíase tem sido descrita em 18% dos pacientes submetidos à colecistectomia.12

Colecistectomia deve ser realizada em pacientes com sintomas decorrentes de colelitíase para prevenir sintomas recorrentes e evitar dúvidas no diagnóstico diferencial entre outras complicações hepáticas e cólica biliar ou colecistite. O procedimento deve ser realizado após a ocorrência de uma crise de cólica biliar, mas não no episódio agudo de dor. O adiamento da cirurgia por tempo prolongado pode favorecer a inflamação crônica da vesícula biliar e dificultar o procedimento cirúrgico.

A indicação de colecistectomia profilática, na presença de colelitíase e ausência de sintomas clínicos, ainda é controversa. O procedimento cirúrgico está associado ao risco de síndrome torácica aguda (10%) e crises álgicas (5%). A freqüência de complicações é semelhante entre o preparo pré-operatório realizado com transfusão simples para elevação da hemoglobina para 10 g/dL ou transfusão de troca para redução da HbS < 30 %.13,14

A indicação de colecistectomia por laparotomia ou laparoscopia deve ser individualizada. A colecistectomia laparoscópica apresenta as vantagens de menor incisão abdominal, redução no período de internação, redução no período de analgesia e redução na morbidade peri-operatória. Desvantagens potenciais do procedimento laparoscópico incluem a necessidade do uso de dióxido de carbono que pode favorecer a falcização, compressão do diafragma dificultando a respiração, redução do volume cardíaco devido à compressão da veia cava inferior, dificuldade na detecção de sangramento e cálculos no ducto biliar.15 Colangiopancreatografia retrógrada endoscópica seguida de colecistectomia endoscópica é uma boa opção para pacientes com coledocolitíase e colelitíase.16

Elevados níveis séricos de bilirrubina indireta e colelitíase têm sido observados em doentes falciformes homozigotos para a Síndrome de Gilbert se comparados aos heterozigotos ou normais.17,18 Dessa forma, a Síndrome de Gilbert é um fator de risco para a ocorrência de colelitíase em doentes falciformes.

Hemocromatose

O nível sérico de ferritina pode estar elevado na presença de crise de falcização, inflamação ou doença crônica.19 A ferritina sérica persistentemente elevada em doente falciforme fora da crise aguda de falcização pode correlacionar-se com o número de concentrado de hemácias transfundidos e depósito hepático de ferro.20 Ressonância nuclear magnética é útil na quantificação do depósito hepático de ferro e pode ser utilizada em substituição da biópsia hepática na quantificação do ferro hepático.21 Quelação de ferro com desferoxamina resulta em um aumento da excreção urinária e biliar de ferro, com conseqüente redução nos níveis de ferritina e ALT.22 O uso de eritocitaférese, em substituição à transfusão simples, retarda o acúmulo de ferro em doentes falciformes.23

Hepatite viral

Hepatite viral tem a mesma apresentação clínica em doentes falciformes e na população geral, exceto pelo elevado nível de bilirrubina decorrente da hemólise crônica no doente falciforme. A incidência de hepatite B está relacionada à epidemiologia da doença viral. A incidência da hepatite C está associada às transfusões sangüíneas.24-26 A hepatite C crônica está associada a manifestações extra-hepáticas que incluem vasculite, crioglobulinemia, púrpura, artralgia e glomerulonefrite.

Todos os doentes falciformes devem ser submetidos a testes sorológicos de rotina para hepatite B e C. Os doentes falciformes negativos para hepatite B devem ser submetidos à vacinação. Os doentes falciformes com sorologia positiva para hepatite B ou C devem ser encaminhados a infectologistas e gastroenterologistas para definição da necessidade de biópsia hepática e tratamento específico. O tratamento da hepatite não deve ser contra-indicado em função da anemia ou hemólise. O hematologista deve acompanhar o tratamento junto com o infectologista ou gastroenterologista e transfundir o paciente se necessário.

A hepatite auto-imune deve ser considerada no diagnóstico diferencial de hepatite no doente falciforme. As manifestações clínicas observadas podem ser alteração persistente de enzimas hepáticas, gamopatia policlonal e manifestações extra-hepáticas como artropatia e rash cutâneo. O diagnóstico é confirmado através de biópsia hepática. O tratamento com imunossupressor pode reverter o processo auto-imune.27

Investigação de doença hepática

Exames laboratoriais para avaliação hepática

Em doentes falciformes, testes de função hepática podem apresentar alterações agudas importantes, caracterizando diferentes complicações hepáticas conforme detalhado na descrição das alterações hepáticas agudas. Os testes de função hepática tradicionais podem estar cronicamente alterados, entretanto a alteração crônica destes testes pode ser causada por doença não hepática.5,28 Elevação de bilirrubinas, LDH e AST podem ser atribuídas ao processo de hemólise que ocorre nos doentes falciformes,1 a elevação da fosfatase alcalina pode ser de origem óssea e não hepática29 e a elevação da gama-glutamiltransferase pode estar associada ao uso de álcool e drogas.30 Desta forma, níveis plasmáticos de ALT são os melhores indicadores laboratoriais de lesão hepática crônica em doentes falciformes.

Exames radiológicos para avaliação hepática

A ultra-sonografia de abdômen é útil na avaliação hepática de hepatomegalia, cirrose hepática e coletitíase. A hepatomegalia detectada à ultra-sonografia pode ser conseqüência da expansão do sistema reticuloendotelial hepático secundário à hemólise crônica.31 A ultra-sonografia de abdômen deve ser realizada a cada 12 ou 24 meses como exame de rotina. A tomografia computadorizada de abdômen deve ser indicada em casos específicos para o diagnóstico diferencial da dor no quadrante superior de abdômen, podendo detectar hepatomegalia, abscessos hepáticos, infarto hepático, sangramentos e alterações pulmonares em base direita.32 A ressonância nuclear magnética pode ser útil para avaliação do depósito hepático de ferro e deve ser realizada quando disponível.21

Biópsia hepática

Um estudo recente descreve que biópsia hepática confere um risco a pacientes com alterações hepáticas agudas, mas são úteis na avaliação de alterações hepáticas crônicas.33 Os achados histológicos primariamente causados pelo processo de falcização têm sido reafirmados em vários estudos2-4,34 e incluem falcização intrasinusoidal, hiperplasia das células de Kupffer, eritrofagocitose e dilatação sinusoidal proximal. Não é descrita correlação entre intensidade de falcização intrasinusoidal e níveis de AST e ALT. Outros achados histológicos freqüentes estão associados a hemossiderose, hepatite B ou C, incluindo inflamação portal, hepatite crônica ou cirrose. Dessa forma, biópsia hepática pode contribuir para o manejo clínico dos pacientes com doença falciforme.33 A biópsia hepática deve ser realizada em pacientes com hepatite viral, quando indicada pelo infectologista ou gastroenterologista para guiar o tratamento, e em pacientes com alterações hepáticas crônicas acentuadas e persistentes.

Outras modalidades terapêuticas

O aumento da sobrevida dos doentes falciforme associado a maior experiência dos procedimentos de transplante hepático propiciou a realização deste procedimento em alguns doentes falciformes. Entretanto, o procedimento esteve associado à alta morbidade e mortalidade relacionado principalmente a complicações vasculares da doença falciforme. O regime de transfusão regular para manter HbS < 20% não foi suficiente para evitar as complicações vasculares nos casos descritos.35,36 Dessa forma, até a presente data, o transplante hepático apresenta maus resultados no tratamento das complicações hepáticas crônicas da doença falciforme.

Recomendações finais

• As complicações hepáticas agudas devem ser diagnosticadas precocemente e o tratamento deve ser prontamente iniciado.

• O diagnóstico diferencial de dor no quadrante superior direito do abdômen inclui crise aguda de falcização hepática, seqüestro hepático, colestase intra-hepática, colelitíase, coledocolitíase com obstrução do ducto biliar comum, colecistite e hepatite viral aguda.

• Todos os pacientes com dor no quadrante superior direito do abdômen devem ser submetidos a exames laboratoriais incluindo hemograma completo, contagem de reticulócitos, TP, TTPA, dosagem de AST, ALT, bilirrubinas, uréia e creatinina. O exame de ultra-sonografia de abdômen auxilia no diagnóstico diferencial. As alterações características de cada manifestação clínica estão descritas no texto.

•A crise hepática aguda de falcização deve ser tratada com analgesia e hidratação.

• O seqüestro hepático deve ser tratado idealmente com transfusão de troca; a transfusão simples pode ser realizada com cautela para evitar a hipervolemia.

• A colestase intra-hepática aguda deve ser tratada com transfusão de troca, correção da coagulopatia com transfusão de plasma fresco congelado e suporte para as alterações renais.

• Os doentes falciformes devem ser submetidos a exame de ultra-sonografia de abdômen a cada 12 ou 24 meses para avaliação do parênquima hepático e presença de colelitíase.

• A colelitíase deve ser tratada com cirurgia. A colecistectomia deve ser realizada após um episódio de crise biliar, fora do episódio agudo. A indicação de laparotomia ou cirurgia laparoscópica deve ser individualizada, a depender das características do paciente e da experiência do serviço. O suporte transfusional pré-operatório pode ser realizado com transfusão simples para elevação da hemoglobina para 10 g/dL ou transfusão de troca para redução da HbS < 30%.

• Os doentes falciformes submetidos a transfusões crônicas de hemácias devem ser submetidos a exame de ferritina sérica trimestral. A hemocromatose hepática deve ser prevenida e tratada com quelação de ferro com desferoxamina, a qual deve ser iniciada quando ferritina sérica for > 1500 ng/mL. Deve-se preferir a transfusão de troca, que retarda o acúmulo de ferro.

• Todos os doentes falciformes devem ser submetidos a exames sorológicos periódicos para hepatite B e C. Os pacientes com sorologia negativa para hepatite B devem ser submetidos à vacinação para hepatite B. Os doentes com hepatite viral devem ser encaminhados a especialistas e tratados com interferon e/ou ribavirina, apesar do risco de piora da anemia.

• A biópsia hepática deve ser realizada em pacientes com hepatite viral, quando indicada pelo infectologista ou gastroenterologista para guiar o tratamento, e em pacientes com alterações hepáticas crônicas acentuadas e persistentes, fora da manifestação aguda de alteração hepática.

• A pesquisa da Síndrome de Gilbert deve ser realizada em todos os doentes falciformes, pois é um fator de risco para a ocorrência de colelitíase.

• Dosagem plasmática de ALT é o melhor indicador laboratorial de lesão hepática crônica em doentes falciformes. As alterações crônicas de AST, fosfatase alcalina, gama-glutamiltransferase e bilirrubinas podem ser secundárias à hemólise crônica e não representar doença hepática.

• Transplante hepático é uma modalidade terapêutica de alta morbidade e mortalidade ao doente falciforme.

Recebido: 11/04/2007

Aceito: 17/05/2007

O tema apresentado e o convite ao(s) autor(es) constam da pauta elaborada pelo co-editor, prof. Rodolfo Delfini Cançado.

Avaliação: Co-editor e um revisor externo.

Publicado após revisão e concordância do editor.

Conflito de interesse: não declarado.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      17 Maio 2007
    • Recebido
      11 Abr 2007
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