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Aumento de ferro, hemocromatose hereditária e defeitos no gene HFE: o que conhecemos na população brasileira?

Iron increases, hereditary hemochromatosis and HFE gene disorders: what do we know of the Brazilian population?

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Aumento de ferro, hemocromatose hereditária e defeitos no gene HFE. O que conhecemos na população brasileira?

Iron increases, hereditary hemochromatosis and HFE gene disorders: what do we know of the Brazilian population?

Claudia R. Bonini-Domingos

Correspondência Correspondência: Claudia Regina Bonini-Domingos Professora doutora pela Unesp. Departamento de Biologia Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas São José do Rio Preto, SP E-mail: bonini@ibilce.unesp.br

O ferro, elemento essencial para múltiplos processos metabólicos na maioria dos organismos, atua como cofator para inúmeras enzimas, participa do transporte de oxigênio, síntese de DNA e transferência de elétrons, fundamentados nas propriedades químicas de óxido-redução. O acúmulo de ferro no organismo tem sido associado ao desenvolvimento e progressão de várias condições patológicas. Em termos de toxicidade, o depósito crônico de ferro geralmente está associado a hemocromatose hereditária, consumo excessivo de ferro através da dieta e freqüentes transfusões sangüíneas, requeridas para o tratamento de alguns tipos de anemias.1

A hemocromatose hereditária é uma doença autossômica recessiva caracterizada pela sobrecarga de ferro em alguns tecidos, como coração, fígado, pâncreas, hipófise e articulações. É a desordem genética mais comum em caucasóides do Norte da Europa, acometendo um em cada duzentos a trezentos indivíduos.1 A expressão da hemocromatose hereditária é mais grave em homens do que em mulheres, em que a ocorrência de sintomas mais brandos é particularmente atribuída aos efeitos protetores da perda do sangue menstrual e à gravidez.2 Muitas mulheres podem exibir expressão fenotípica completa, com a presença de fadiga e hiperpigmentação da pele, ao passo que os homens usualmente apresentam cirrose hepática e diabete. Acredita-se que a freqüência de hemocromatose hereditária na população mundial esteja subestimada, já que a maioria dos indivíduos é assintomática.2

A sintomatologia mais freqüente, nos casos clínicos, é a fadiga e a hepatomegalia; no entanto, também podem ocorrer hiperpigmentação da pele, artrite, cardiopatia, cirrose hepática, diabete mellitus, hipotiroidismo e, em casos mais raros, carcinoma hepatocelular.3 Os sintomas clínicos apresentam-se mais evidentes após a quarta década de vida, sendo, antes disso, bastante heterogêneos, fato que dificulta o diagnóstico precoce da doença

O gene da hemocromatose hereditária (HFE) está localizado no braço curto do cromossomo 6, associado ao complexo de histocompatibilidade.4 A função da proteína produzida pelo gene HFE ainda é objeto de estudo e existem evidências de que seja responsável por parte dos mecanismos de regulação dos níveis de ferro no organismo.5

Dois tipos de mutação no gene HFE são freqüentemente relatados, C282Y e H63D. A mutação C282Y caracteriza-se por apresentar transição de G para A no nucleotídeo 845 do gene, substituindo uma tirosina por uma cisteína no aminoácido 282 da proteína, com freqüência alélica, na população caucasiana, de 5% a 10%. A mutação H63D é originada pela transversão de C para G no nucleotídeo 187, determinando a substituição de ácido aspártico por histidina no aminoácido 63, freqüência alélica de 16% na população européia e com expressão fenotípica branda.2,3 A expressão fenotípica pode ser influenciada também por fatores ambientais e epigenéticos que interferem no metabolismo do ferro e no curso clínico da doença. O número reduzido de doentes frente à elevada freqüência dos mutantes sugere hipótese de penetrância incompleta para o gene.

A freqüência dos mutantes C282Y e H63D ainda é alvo de estudos na população brasileira, porém sabe-se que eles estão presentes em 2/3 dos pacientes brasileiros com hemocromatose hereditária, indicando, provavelmente, outras mutações no gene HFE ou que outros genes possam estar envolvidos na regulação metabólica do ferro.

Nesse número da Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia encontramos uma importante contribuição para o entendimento das manifestações clínicas da sobrecarga de ferro associada aos mutantes mais freqüentes do gene HFE, incluindo-se o S65C, em que foram estudados cinqüenta indivíduos com sobrecarga de ferro, constatada por métodos usuais, e os mutantes rastreados por PCR. A avaliação de interferentes ambientais e genéticos evidencia a importância e cuidado dessa conduta na suspeita diagnóstica de hemocromatose hereditária e confirmam os dados da literatura internacional quanto à freqüência do mutante C282Y e sua importância na gravidade da hemocromatose hereditária. Os resultados obtidos com a análise molecular desses mutantes possibilitam a exclusão de falso-positivos e/ou falso-negativos decorrentes de outras condições ambientais.

Indivíduos com hemocromatose hereditária apresentam notada predisposição a certas infecções causadas por patógenos como Vibrio vulnificus, Listeria e vírus da hepatite C.6 Mecanismos causadores de prejuízos no metabolismo de ferro podem estar envolvidos na suscetibilidade a infecções bacterianas decorrentes de Vibrio vulnificus. Mutações no gene HFE podem interferir no prognóstico de doenças hepáticas em pacientes com hepatite crônica; além disso, pacientes com hemocromatose hereditária associada à hepatite C parecem ter uma maior sobrecarga de ferro, apresentando riscos no desenvolvimento de fibrose. O melhor conhecimento sobre a hemocromatose hereditária no Brasil permitirá uma instituição de tratamento precoce, prevenindo complicações.

Recebido: 22/11/2007

Aceito: 22/11/2007

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor

Conflito de interesse: não declarado

  • 1. Powell LW. Diagnosis of hemochromatosis. Semin. Gastrointest. Dis. 2002;13(2):80-8.
  • 2. Lyon E, Frank E.L. Hereditary hemochromatosis since discovery of the HFE gene. Clinical Chemistry. 2001;47(7):1147-56.
  • 3. Geier D, Hebert B, Potti A. Risk of primary non-hepatocellular malignancies in hereditary hemochromatosis. Anticancer Res., 2002;22(6b):3797-9.
  • 4. Bittencourt PL, Palacios SA, Couto CA, Cançado ELR, Carrilho FJ, Laudanna AA, et al Analysis of HLA-A antigens and C282Y and H63D mutations of the HFE gene in Brazilian patients with hemochromatosis. Brazilian Journal of Medical and Biological Research. 2002;35:329-35.
  • 5. Fraser DM, Anderson GJ. Iron Imports. Intestinal iron absorption and its regulation. Am J Physiol Gastrointest Liver Physio. 2006; 289:631-5.
  • 6. Gerhard GS, Levin KA, Goldstein JP, Wojnar MM, Chorney MJ, Belchis DA. Vibrio vulnificus septicemia in a patient with the hemochromatosis HFE C282Y mutation. Arquives of pathology and laboratory medicine. 2003;125(8):1107-9.
  • Correspondência:
    Claudia Regina Bonini-Domingos
    Professora doutora pela Unesp. Departamento de Biologia
    Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
    São José do Rio Preto, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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