Acessibilidade / Reportar erro

Estudo genético-epidemiológico da hemoglobina S em uma população do Sudeste do Brasil

Genetic-epidemiological study of hemoglobin S in a population from Southeastern Brazil

Resumos

A anemia falciforme, expressão clínica dos homozigotos do gene da hemoglobina S, é a doença hereditária mais freqüente no Brasil. Apesar disso, a metodologia genético-epidemiológica raramente é usada nos estudos brasileiros sobre essa alteração. No presente estudo foram analisados, por meio de um software específico, os dados de 817 heterozigotos do gene da HbS (513 homens e 304 mulheres), não consangüíneos, com idades entre 18 e 65 anos, detectados voluntariamente na cidade de Campinas, SP, Sudeste do Brasil. A constituição genômica caucasóide, negróide e indígena foi avaliada na amostra de portadores da hemoglobina S através do estudo das freqüências alélicas do sistema sangüíneo ABO e comparada com a observada na população geral da mesma cidade. A análise dos dados demonstrou que 52% dos portadores da HbS tiveram sua ancestralidade africana evidenciada pelo seu fenótipo e que 36% dos indivíduos eram procedentes do Nordeste do Brasil, sobretudo da Bahia (15%). Essa imigração interna tende a diminuir a proporção do haplótipo Bantu da hemoglobina S (mais grave) na região de Campinas, aumentando a proporção do haplótipo Benin (mais benigno). A amostra possui um componente gênico negróide de 45%, caucasóide de 41%, e indígena de 14%. Essa composição genômica é significativamente diferente da observada na população geral da mesma cidade, apresentando uma participação gênica maior de negróides e de indígenas (influência da imigração nordestina) e menor de caucasóides. A imigração nordestina e a miscigenação alteraram significativamente o perfil genético-epidemiológico dos portadores da hemoglobina S na região de Campinas, SP.

Hemoglobina S; constituição genômica populacional; genético-epidemiológica


Sickle cell anemia, the clinical expression of individuals homozygous for the hemoglobin S gene, is the most frequent hereditary disease in Brazil. Nevertheless, a genetic-epidemiological approach is rarely used in Brazilian studies related to this alteration. In the present study, using a specific computer program, data from 817 (513 males and 304 females) non-consanguineous individuals heterozygous for the hemoglobin S gene were studied. The participants, with ages varying from 18 to 65 years old, live from the region of Campinas, Southeastern Brazil. The Caucasoid, Negroid and native Indian genomic backgrounds of this sample were evaluated by a study of allelic frequencies for the ABO blood group system and compared with those observed in the general population from the same city. Data analysis showed that: 52% of the hemoglobin S carriers had African ancestry as shown by their phenotypes and that 36% of the subjects came from North-eastern Brazil, most from the state of Bahia (15%). This internal migration tends to decrease the proportion of the hemoglobin S Bantu (wild) haplotype in the region of Campinas, by increasing the proportion of the Benin haplotype (milder). The frequencies of this sample were Negroes 45%, Caucasians 41%, and native Indians 14%. This genomic constitution is significantly different from that observed in the general population from the same city with greater frequencies of Negroes and native Indians and a lower frequency of Caucasians. Migration from the northeastern and miscegenation have significantly altered the genetic-epidemiological profile of hemoglobin S carriers in the region of Campinas.

Hemoglobin S; populational genomic constitution; epidemiological genetics


ARTIGO ARTICLE

Estudo genético-epidemiológico da hemoglobina S em uma população do Sudeste do Brasil

Genetic-epidemiological study of hemoglobin S in a population from Southeastern Brazil

Antonio S. RamalhoI; Tiago GiraldiII; Luís A. MagnaI

IProfessor Titular do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas-SP

IIGraduando do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas-SP; Bolsista do Programa PIBIC/ CNPq

Correspondência Correspondência: Antonio S. Ramalho Departamento de Genética Médica, Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas 13081-970 – Campinas-SP – Brasil Cx. Postal 6111 E-mail: sergiolena1@terra.com.br

RESUMO

A anemia falciforme, expressão clínica dos homozigotos do gene da hemoglobina S, é a doença hereditária mais freqüente no Brasil. Apesar disso, a metodologia genético-epidemiológica raramente é usada nos estudos brasileiros sobre essa alteração. No presente estudo foram analisados, por meio de um software específico, os dados de 817 heterozigotos do gene da HbS (513 homens e 304 mulheres), não consangüíneos, com idades entre 18 e 65 anos, detectados voluntariamente na cidade de Campinas, SP, Sudeste do Brasil. A constituição genômica caucasóide, negróide e indígena foi avaliada na amostra de portadores da hemoglobina S através do estudo das freqüências alélicas do sistema sangüíneo ABO e comparada com a observada na população geral da mesma cidade. A análise dos dados demonstrou que 52% dos portadores da HbS tiveram sua ancestralidade africana evidenciada pelo seu fenótipo e que 36% dos indivíduos eram procedentes do Nordeste do Brasil, sobretudo da Bahia (15%). Essa imigração interna tende a diminuir a proporção do haplótipo Bantu da hemoglobina S (mais grave) na região de Campinas, aumentando a proporção do haplótipo Benin (mais benigno). A amostra possui um componente gênico negróide de 45%, caucasóide de 41%, e indígena de 14%. Essa composição genômica é significativamente diferente da observada na população geral da mesma cidade, apresentando uma participação gênica maior de negróides e de indígenas (influência da imigração nordestina) e menor de caucasóides. A imigração nordestina e a miscigenação alteraram significativamente o perfil genético-epidemiológico dos portadores da hemoglobina S na região de Campinas, SP.

Palavras-chave: Hemoglobina S; constituição genômica populacional; genético-epidemiológica.

ABSTRACT

Sickle cell anemia, the clinical expression of individuals homozygous for the hemoglobin S gene, is the most frequent hereditary disease in Brazil. Nevertheless, a genetic-epidemiological approach is rarely used in Brazilian studies related to this alteration. In the present study, using a specific computer program, data from 817 (513 males and 304 females) non-consanguineous individuals heterozygous for the hemoglobin S gene were studied. The participants, with ages varying from 18 to 65 years old, live from the region of Campinas, Southeastern Brazil. The Caucasoid, Negroid and native Indian genomic backgrounds of this sample were evaluated by a study of allelic frequencies for the ABO blood group system and compared with those observed in the general population from the same city. Data analysis showed that: 52% of the hemoglobin S carriers had African ancestry as shown by their phenotypes and that 36% of the subjects came from North-eastern Brazil, most from the state of Bahia (15%). This internal migration tends to decrease the proportion of the hemoglobin S Bantu (wild) haplotype in the region of Campinas, by increasing the proportion of the Benin haplotype (milder). The frequencies of this sample were Negroes 45%, Caucasians 41%, and native Indians 14%. This genomic constitution is significantly different from that observed in the general population from the same city with greater frequencies of Negroes and native Indians and a lower frequency of Caucasians. Migration from the northeastern and miscegenation have significantly altered the genetic-epidemiological profile of hemoglobin S carriers in the region of Campinas.

Key words: Hemoglobin S; populational genomic constitution; epidemiological genetics.

Introdução

A anemia falciforme, expressão clínica dos homozigotos do gene da hemoglobina S, é a doença hereditária monogênica mais freqüente no Brasil, constituindo um problema de saúde pública.1,2 Ela é encontrada em todas as regiões do país, e, por isso, considerada como uma das doenças genéticas mais importantes no cenário epidemiológico brasileiro. A sua importância em saúde pública foi reconhecida pelo Ministério da Saúde, que incluiu a sua triagem obrigatória no Programa Nacional de Triagem Neonatal, com a expectativa de exame de todos os recém-nascidos brasileiros.3,4

Apesar da importância da hemoglobina S em nosso país, ainda não dispomos de estudos genético-epidemiológicos bem estruturados, que analisem vários aspectos relevantes dessa hemoglobinopatia nas populações brasileiras. Isso se deve ao fato de a epidemiologia genética ainda não ser uma prática consolidada no Brasil, por exigir uma metodologia que, apesar de conhecida nos meios universitários especializados, ainda não atingiu a rotina dos programas de saúde pública.5

Como comenta Beiguelman,6,7 quando as moléstias infecto-contagiosas predominam, as práticas epidemiológicas orientam-se, evidentemente, no sentido da investigação dos agentes de doenças que se transmitem por contato, e cujo período de latência é, de maneira geral, relativamente curto. Entretanto, quando essas doenças ocupam plano menos relevante, os problemas dos epidemiologistas tornam-se bastante distintos. O agente da doença passa a estar ligado à relação reprodutiva entre os membros da família e da comunidade, e não mais à contigüidade dos comunicantes com o foco. Nesse caso, vários fatores devem ser considerados, como a composição genômica populacional e a dinâmica dos genes nas famílias e nas populações.

Estudos moleculares pioneiros de Kan e Dozy8 já haviam demonstrado que a mutação que originou o gene da hemoglobina S não foi um evento único, mas ocorreu em diversos locais e em diferentes épocas, dentro e fora do continente africano. Isso foi confirmado posteriormente pela determinação dos haplótipos do agrupamento gênico β-S, o que acrescentou um maior valor genético-antropológico à hemoglobina S, ao associar cada haplótipo à região geográfica onde ele é mais freqüente (Bantu, Benin, Senegal, Camarões, Índia, Arábia Saudita, etc.).9

A hemoglobina S foi trazida às Américas pela imigração forçada dos escravos africanos. No Brasil, ela se distribuiu heterogeneamente, sendo mais freqüente onde a proporção de antepassados africanos da população é maior.10 Tendo em vista a dimensão continental do país, é evidente, portanto, que cada região do Brasil merece um estudo genético-epidemiológico específico sobre a hemoglobina S. É importante ressaltar, por outro lado, que vários fatores, como a imigração interna e externa; a diminuição das taxas de casamentos consangüíneos, pela dissolução das comunidades rurais e dos isolados, em decorrência do processo de urbanização; o aumento da miscigenação, pelas facilidades de locomoção e comunicação, que propiciaram maior contato entre pessoas de origem diversa, etc, tornaram o problema da hemoglobina S extremamente dinâmico em nosso país.

O estado de São Paulo (Sudeste do Brasil) é um local onde o estudo genético-epidemiológico da hemoglobina S reveste-se da maior importância, por vários motivos, tais como: participação relevante do elemento afro-descendente na composição étnica da população; presença de imigrantes italianos, portugueses, espanhóis, árabes, entre outros, que também colaboraram para a introdução do gene da hemoglobina S no estado, onde chegaram, em grande quantidade, a partir da segunda metade do século XIX, e recebimento de grande contingente de imigrantes do Nordeste do Brasil, entre os quais, como será discutido adiante, a composição haplotípica em relação ao gene da hemoglobina S (Bantu/Benin), que difere da observada originalmente na população paulista. É importante lembrar que os diferentes haplótipos possuem significados clínicos distintos, uma vez que o haplótipo Bantu está associado a uma forma clinicamente mais grave da anemia falciforme, e o haplótipo Benin, a uma forma mais moderada da doença.11

O presente trabalho tem por objetivos estimar os percentuais da composição genômica negróide, caucasóide e indígena em uma grande amostra de indivíduos portadores da hemoglobina S diagnosticados em uma cidade do estado de São Paulo, comparando-os com os da população geral da mesma cidade; determinar o percentual desses indivíduos nos quais a ancestralidade africana é evidenciada pelas suas características fenotípicas; investigar o percentual de indivíduos originários do Nordeste do Brasil; avaliar se a imigração nordestina, sobretudo de indivíduos originários do estado da Bahia, teve algum efeito na proporção dos haplótipos da hemoglobina S (Bantu/Benin) e, por fim, investigar o grau de escolaridade desses indivíduos, que é uma forma indireta de avaliar a sua inserção socioeconômica e a sua capacidade de acesso a serviços médicos especializados, incluindo o aconselhamento genético. Pretende-se, com isso, avaliar o perfil genético-epidemiológico atual da hemoglobina S em uma população paulista miscigenada e, eventualmente, corrigir antigos estereótipos sobre essa hemoglobinopatia, que talvez ainda sejam bastante disseminados em nosso meio. Dentre eles, destaca-se a idéia de que a hemoglobina S ainda seja um problema quase exclusivo da fração da população brasileira na qual a ascendência africana seja evidente pelas suas características fenotípicas, sobretudo pela cor da pele.

Casuística e Método

O projeto deste estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Parecer nº 587/2003) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde (Parecer nº 556/2004).

Foram organizados em um software específico os dados de 817 indivíduos heterozigotos do gene da hemoglobina S (513 homens e 304 mulheres), não consangüíneos, com idades entre 18 e 65 anos (média de 31,62 anos e desvio-padrão de 9,81 anos), detectados voluntariamente entre doadores de sangue do Hemocentro da Unicamp, em Campinas, estado de São Paulo. Dentre esses indivíduos, 282 (34,5%) eram solteiros, 492 (60,2%) casados ou amasiados, 33 (4,1%) separados e 10 (1,2%) viúvos.

O diagnóstico laboratorial do traço falciforme foi estabelecido mediante a eletroforese de hemoglobinas, pH alcalino, em fitas de acetato de celulose.1 As fichas clínicas padronizadas foram preenchidas pelos próprios autores da pesquisa durante o atendimento genético-clínico de aconse-lhamento genético, que foi oferecido em caráter opcional aos portadores do traço falciforme.

Além dos dados de identificação, que foram substituídos no software por números, garantindo o anonimato dos indivíduos, constavam da ficha informações sobre os seus dados étnicos fenotípicos (cor da pele, tipo de cabelo, características faciais), naturalidade, escolaridade e tipo sangüí-neo ABO.

Para estimar as contribuições gênicas dos caucasóides, negróides e indígenas na formação da população miscigenada de indivíduos portadores da hemoglobina S (constituição genômica da população), usou-se a metodologia recomendada por Beiguelman12 para o estudo de populações tri-híbridas, ou seja, a análise do sistema sangüíneo ABO. Assim sendo, as freqüências dos genes do sistema ABO calculadas na amostra de indivíduos com a hemoglobina S foram comparadas com as descritas em europeus latinos, negros africanos e indígenas brasileiros, utilizando-se as fórmulas de genética de populações indicadas por aquele autor. Este método foi elaborado por Beiguelman,13 partindo do princípio de que se as freqüências de um determinado alelo em duas populações distintas que se miscigenam forem designadas por p1 e p2 e as proporções em que tais populações entrarem na composição da nova população forem designadas por x1 e x2, a freqüência final desse alelo (r) na população miscigenada poderá ser calculada por: ρ = x1ρ1 + x2ρ2.

Na estimativa da constituição genômica caucasóide, negróide e indígena da população geral de Campinas, SP, foram utilizadas as freqüências dos genes do sistema ABO estimadas por Venturelli e Baena de Moraes14 em uma grande amostra de indivíduos dessa cidade.

A naturalidade dos portadores da hemoglobina S foi classificada de acordo com seu estado de origem.

Para avaliar o eventual impacto da imigração nordestina na proporção dos haplótipos da hemoglobina S (Bantu/Benin) foi necessário, em uma primeira etapa, verificar, através da literatura, a composição haplotípica atual dos portadores da hemoglobina S no estado de São Paulo e no Nor-deste do Brasil. Os estudos realizados em ambas as regiões, no entanto, analisaram casuísticas relativamente pequenas de pacientes com hemoglobina S, com grande probabilidade de variação nas freqüências observadas. Como será apresentado no próximo item, a melhor alternativa encontrada foi realizar uma somatória das casuísticas e dos resultados verificados nos estudos realizados no estado de São Paulo e na Bahia. Uma vez estimadas as composições haplotípicas atuais observadas no estado de São Paulo e na Bahia, bem como a proporção de indivíduos originários da Bahia na amostra de portadores da hemoglobina S, foi fácil estimar, pela metodologia da genética de populações,12 a composição haplotípica original do estado de São Paulo antes da imigração interna.

Resultados

Os grupos sangüíneos do sistema ABO apresentaram as seguintes freqüências na amostra de indivíduos com a hemoglobina S: A: 30,9%; B: 13,7%; AB: 4,2% e O: 51,2%. A partir dessas freqüências fenotípicas, foi possível estimar as seguintes freqüências gênicas: alelo A: 19,5%; alelo B: 9,4% e alelo O: 71,2%.

Tendo por base tais freqüências alélicas, bem como as freqüências gênicas dos alelos do sistema ABO descritas em caucasóides europeus latinos, negros africanos e indígenas brasileiros, conforme Beiguelman,12 estimou-se a participação de cada um desses componentes na amostra de indivíduos com a hemoglobina S da região de Campinas, chegando-se às seguintes proporções:

• Componente negróide: 0,4466, ou 45%.

• Componente caucasóide: 0,4104, ou 41%.

• Componente indígena: 0,1430, ou 14%.

Tal composição genômica é significativamente diferente da composição genômica da população geral de Campinas, estimada a partir de dados sobre o sistema sangüíneo ABO coletados por Venturelli e Baena de Moraes,14 ou seja: componente caucasóide: 83%, componente negróide: 13%, e componente indígena: 4% (χ2 = 353,06; GL = 2; p << 0,001).

A classificação étnica fenotípica dos portadores da hemoglobina S (52,3% negróides e 47,7% caucasóides) permitiu avaliar que apenas cerca de 50% dos portadores dessa característica genética diagnosticados na cidade de Campinas demonstram ancestralidade africana evidenciada pelas suas características fenotípicas.

A naturalidade dos portadores do traço falciforme foi identificada em 696/817 indivíduos, ou seja, em 85% da casuística. Dentre eles, 381 (54,7%) nasceram no estado de São Paulo, 160 (23%) nasceram em estados do Nordeste, principalmente na Bahia (105, ou 15%), e 155 (22,3%) procederam de outros estados do País. Apenas um indivíduo (0,1%) havia nascido fora do Brasil (Angola).

Analisando os principais trabalhos realizados no estado de São Paulo sobre os haplótipos da hemoglobina S,15 -19 e somando suas casuísticas e resultados, chegou-se às seguintes freqüências: Bantu: 63,8%, Benin: 32% e outros haplótipos: 4,2%. Procedendo da mesma forma em relação aos estudos realizados no estado da Bahia,16,17,18 as freqüências obtidas foram: Bantu: 49%, Benin: 47% e outros haplótipos: 4%. Tomando por base essas freqüências atuais do haplótipo Bantu nos estados de São Paulo e na Bahia, bem como a proporção de indivíduos procedentes da Bahia na amostra de portadores da hemoglobina S foi possível estimar, por intermédio da fórmula clássica usada no estudo de populações miscigenadas,12 que a freqüência inicial do haplótipo Bantu no estado de São Paulo, antes da imigração interna, deveria ser da superior a 67%.

Quanto ao nível de escolaridade dos portadores do traço falciforme analisados, foi possível obter informações sobre 802/817 indivíduos, ou seja, 98% da amostra. Dentre eles, 13 (1,62%) eram analfabetos, 374 (46,64%) haviam cursado no máximo o primeiro grau, 348 (43,39%) haviam cursado no máximo o segundo grau, e 67 (8,35%) possuíam nível universitário.

Discussão

A presente pesquisa permitiu o estudo genético-epidemiológico de uma grande amostra de portadores do traço falciforme (817 heterozigotos AS), diagnosticados aleatoriamente em uma população do Sudeste do Brasil (Campinas, SP). Trata-se, aliás, de uma das maiores amostras de por-tadores do traço falciforme adultos, não consangüíneos e não relacionados obrigatoriamente a doentes homozigotos, detectada em uma mesma região e analisada do ponto de vista genético-epidemiológico, fora do continente africano. Tendo em vista que a prevalência média de heterozigotos AS na população geral do Sudeste do Brasil é da ordem de 2%,10 essa casuística corresponde à triagem voluntária de cerca de 40.850 indivíduos da população.

Trata-se de uma casuística constituída, na sua maioria, por adultos jovens, casados ou amasiados e, portanto, reprodutivamente ativos. Como cada portador do traço falciforme tem a probabilidade de 50% de transmitir o gene da hemoglobina S a cada filho(a), a manutenção do gene na população está preservada. Aliás, estudos recentes sobre o efeito materno têm sugerido que, no caso específico da mulher heterozigota AS, a probabilidade de transmissão do alelo mutante à prole é estatisticamente superior a 50%.20,21 A maior proporção de homens na casuística examinada pode ser atribuída ao fato de a triagem ter sido realizada entre doadores de sangue, uma vez que o gene da hemoglobina S está localizado em um cromossomo autossômico, mais especificamente no cromossomo 11.

Um aspecto importante a ser discutido diz respeito à abordagem da comunidade a partir de doadores de sangue, lembrando-se que o processo atual de doação realizado nos hemocentros brasileiros favorece a heterogeneidade racial e socioeconômica dos doadores. De fato, a doação voluntária e não remunerada mudou o perfil social do doador, que não pertence mais quase exclusivamente às classes socioeconômicas menos privilegiadas, como acontecia há alguns anos atrás. Em um extenso levantamento realizado no próprio Hemocentro da Unicamp, constatou-se que o altruísmo é o maior motivador da doação de sangue, pertencendo os doadores a diversas classes socioeconômicas.22 Da mesma forma, a escolha dos portadores do traço falciforme, ou seja, dos heterozigotos assintomáticos do gene da hemoglobina S, é mais apropriada ao seu estudo genético-epidemiológico, uma vez que esses indivíduos não apresentam o viés metodológico dos homozigotos com anemia hemolítica crônica, sujeitos a importantes manifestações clínicas e impedimentos sociais, além de eventual redução do tempo de vida.1,2

As freqüências dos alelos do grupo sangüíneo ABO são tradicionalmente usadas na estimativa da participação dos caucasóides, negróides e indígenas na constituição de populações tri-híbridas brasileiras. A grande diferença entre as freqüências desses alelos nas populações originais, que constituíram a população miscigenada, ou seja, europeus latinos, negros africanos e indígenas brasileiros contribui muito para esse fato. Os índios brasileiros, por exemplo, do mesmo modo que outros índios sul-americanos, eram originalmente todos do grupo sangüíneo O.23 De acordo com Beiguelman,12 os dados obtidos por esse método não divergem muito dos obtidos pelo estudo de vários polimorfismos genéticos simultaneamente, o que, teoricamente, aumenta a precisão da estimativa da contribuição genômica das populações originais. É importante enfatizar que, apesar da existência atualmente de alguns bancos de dados de marcadores étnicos moleculares, as fórmulas clássicas da genética de populações continuam válidas e largamente utilizadas em genética epidemiológica, sobretudo em algumas situações específicas, como é o caso de uma população de porta-dores de hemoglobina S, por exemplo. Além disso, a análise direta do DNA não é a metodologia mais factível, tanto em termos técnicos quanto econômicos, nos grandes estudos populacionais exigidos pela genética epidemiológica.

Analisando a casuística de portadores da hemoglobina S estudada no presente trabalho, é possível observar que, embora o componente genômico negróide prepondere (45%), refletindo a origem predominantemente africana do gene da hemoglobina S, o componente caucasóide também é grande (41%), traduzindo o alto grau de miscigenação e, em menor escala, a contribuição em termos de hemoglobina S fornecida por alguns imigrantes (portugueses, espanhóis, italianos do sul e árabes).15 Não é de estranhar, portanto, que apenas cerca de 50% dos indivíduos examinados tenham revelado a ancestralidade africana no exame das suas características fenotípicas, principalmente pela cor da pele.

A imigração nordestina é refletida principalmente pelo componente genômico indígena importante (14%), semelhante ao observado em algumas populações de origem predominantemente nordestina que passaram pela Hospedaria de Imigrantes de São Paulo.24

É importante ressaltar que a composição genômica da casuística de portadores do traço falciforme mostrou-se significativamente diferente da observada na população geral de Campinas, na qual o componente caucasóide mostrou-se maior, e os componentes gênicos negróide e, sobretudo, indígena, menores. Evidentemente, as contribuições genômicas menos significativas na constituição da população geral, tanto em termos quantitativos, quanto ao grau de miscigenação, não foram consideradas. Esse é o caso, por exemplo, dos descendentes de japoneses e de outros imigrantes não-latinos.

As diferenças entre as freqüências dos haplótipos da hemoglobina S observadas entre Brasil e os EUA e a América Central, bem como entre as regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, como conseqüências das diferenças dos padrões do tráfico de escravos, já foram bastante discutidas na litera-tura nacional, desde a década de 90.15-19 A contribuição original do presente trabalho foi demonstrar que a imigração interna, sobretudo a de indivíduos originários do estado da Bahia, tende a diminuir, na população paulista, a proporção do haplótipo Bantu, associado a uma forma mais grave da anemia falciforme, com conseqüente aumento da proporção do haplótipo Benin, relacionado com uma forma mais moderada da doença.11 Tal alteração haplotípica deve ser ainda mais acentuada no estado de São Paulo do que a observada no presente trabalho, uma vez que muitos indivíduos da amostra de portadores da hemoglobina S, embora nascidos no estado de São Paulo, certamente possuem ancestrais nascidos no estado da Bahia. É importante ressaltar que, embora a imigração nordestina para o estado de São Paulo tenha se intensificado nas últimas décadas, o sucesso do empreendimento cafeeiro promoveu uma verdadeira drenagem para esse estado, já nas primeiras décadas do século XIX, de escravos procedentes dos engenhos açucareiros da Bahia e de Pernam-buco.25

Como já foi comentado na parte introdutória do presente trabalho, a avaliação do nível de escolaridade dos indivíduos com a hemoglobina S teve como principal objetivo avaliar a sua capacidade de acesso às informações disponíveis sobre o assunto, bem como aos serviços médicos espe-cializados, incluindo o aconselhamento genético.

Em 1996, o Ministério da Saúde criou o Programa de Anemia Falciforme,26 com ênfase nas ações educativas, voltado não apenas às informações relativas à doença, mas também aos seus aspectos hereditários, com ampla distribuição de folhetos explicativos, o que foi amplamente reforçado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária a partir de 2002, com o guia do paciente, o guia do professor, o guia do médico, etc. De fato, a orientação genética dos portadores heterozigotos da hemoglobina S reveste-se de grande importância, uma vez que, do casamento desses indivíduos com outros portadores do traço falciforme, ou com portadores do traço de hemoglobina C ou do traço de talassemia β, que também são freqüentes na população, podem nascer, com 25% de probabilidade, crianças com anemias hemolíticas crônicas e incuráveis (síndromes falciformes), que exigem diag-nóstico e início do tratamento antes dos quatro meses de idade. A orientação genética desses indivíduos tem o objetivo de permitir a sua tomada de decisões conscientes e equilibradas sobre a procriação. Embora esse objetivo seja primordialmente assistencial e educacional, ele também pode ter, secundariamente, uma finalidade preventiva.27

A informação obtida no presente estudo de que praticamente a metade da casuística de portadores da hemoglobina S é constituída por indivíduos com nível de escolaridade de, no máximo, o primeiro grau cursado, indica que o acesso à informação disponível e, sobretudo, a demanda espontânea à orientação genética podem ainda estar longe do desejável. Dessa forma, embora o problema do diagnóstico precoce e do tratamento dos doentes com a anemia falciforme tenha obtido um grande avanço com o Programa Nacional de Triagem Neonatal (teste do pezinho),3,4 a orientação dos heterozigotos ainda depende da implantação de um maior número de programas de genética comunitária que ofereçam a triagem voluntária e a orientação desses indivíduos, dentro dos mais rigorosos padrões éticos e científicos.28

Agradecimentos

Os autores agradecem aos docentes e funcionários do Hemocentro da Universidade Estadual de Campinas, principalmente à Profa. Dra. Sara T. O. Saad e à Sra. Silmara Aparecida E. de Souza pela colaboração na triagem de doadores de sangue da cidade de Campinas, SP.

Recebido: 02/07/2007

Aceito: 18/09/2007

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: não declarado

O presente trabalho contou com auxílio financeiro do Fundo de Apoio à Pesquisa e à Extensão (FAEPEX) da Universidade Estadual de Campinas e do Programa PIBIC/CNPq.

  • 1. Ramalho AS. As hemoglobinopatias hereditárias. Um problema de saúde pública no Brasil. Ribeirão Preto: Editora da Sociedade Brasileira de Genética. 1986.
  • 2. Paiva-e-Silva RB, Ramalho AS, Cassorla RMSA. A anemia falciforme como problema de saúde pública no Brasil. Rev Saúde Pública USP. 1993;27:54-8.
  • 3
    Ministério da Saúde. Portaria no 822 de 6 de junho de 2001. Brasília: Ministério da Saúde; 2001.
  • 4. Ramalho AS, Magna LA, Paiva-e-Silva RB. A Portaria nş 822/01 do Ministério da Saúde e as peculiaridades das hemoglobinopatias em saúde pública no Brasil. Cad Saúde Pública. 2003;19: 1195-9.
  • 5. Compri MB, Saad STO, Ramalho AS. Investigação genético-epidemiológica e molecular da deficiência de G-6-PD em uma comunidade brasileira. Cad Saúde Pública. 2000;16:335-42.
  • 6. Beiguelman B. Citogenética Humana. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1982.
  • 7. Beiguelman B. Polimorfismos genéticos de importância clínica no Brasil. Ciência e Cultura. 1977;29:876-82.
  • 8. Kan YW, Dozy AM. Evolution of the the hemoglobin S and C genes in world populations. Science. 1980;209(4454):388-95.
  • 9. Antonarakis SE, Boehm CD, Serjeant GR, Theisen CE, Dover GJ, Kazazian HH Jr. Origin of the beta S-globin gene in blacks: the contribution of recurrent mutation or gene conversion or both.Proc Natl Acad Sci USA. 1984;81(3):853-6.
  • 10. Zago MA. Considerações gerais sobre as doenças falciformes. In: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, organizador. Manual de Diagnóstico e tratamento das doenças falciformes. Brasília: Ministério da Saúde. 2002. p. 9-11.
  • 11. Powars DR, Chan L, Schroeder WA. Beta S-gene-cluster haplotypes in sickle cell anemia: clinical implications. Am J Pediatr Hematol Oncol. 1990;12(3):367-74.
  • 12. Beiguelman B. Dinâmica dos genes nas famílias e nas populações. Ribeirão Preto: Editora da Sociedade Brasileira de Genética; 1994.
  • 13. Beiguelman B. Um método simples para o estudo da mistura racial no Brasil. Ciência e Cultura. 1980;32(Supl.):745.
  • 14. Venturelli LE, Baena-de-Moraes MH. Freqüências gênicas dos sistemas ABO, MNSs e Rh em caucasóides e negróides da cidade de Campinas, SP. Rev Brasil Genet. 1986;9:179-85.
  • 15. Zago MA, Figueiredo MS, Ogo SH. Bantu beta S cluster haplotype predominates among Brazilian blacks. Am J Phys Anthropol. 1992; 88(3):295-8.
  • 16. Costa FF, Arruda VR, Gonçalves MG, Miranda SR, Carvalho MH, Sonati MF, et al Beta S-gene-cluster haplotypes in sickle cell anemia patients from two regions of Brazil. Am J Hematol. 1994; 45(1):96-7.
  • 17. Gonçalves MS, Nechtman JF, Figueiredo MS, Kerbauy J, Arruda VR, Sonati MF, et al. Sickle cell disease in a Brazilian population from São Paulo: a study of the beta s haplotypes. Hum Hered. 1994;44(6):322-7.
  • 18. Figueiredo MS, Silva MC, Guerreiro JF, Souza GP, Pires AC, Zago MA. The heterogeneity of the beta s cluster haplotypes in Brazil. Gene Geogr. 1994;8(1):7-12.
  • 19. Figueiredo MS, Kerbauy J, Gonçalves MS, Arruda VR, Saad ST, Sonati MF, et al. Effect of alpha-thalassemia and beta-globin gene cluster haplotypes on the hematological and clinical features of sickle-cell anemia in Brazil. Am J Hematol. 1996;53(2):72-6.
  • 20. Silva ID, Ramalho AS. Maternal segregation distortion in sickle-cell and beta-thalassaemia traits? Lancet. 1996;347 (9002):691-2.
  • 21. Duchovni-Silva I, Ramalho AS. Maternal effect: an additional mechanism maintaining balanced polymorphisms of haemoglobinopathies? Ann Hum Genet. 2003;67(6):538-42.
  • 22. Paiva-e-Silva RB, Ramalho AS. Riscos e benefícios da triagem genética. O traço falciforme como modelo de estudo em uma população brasileira. Cad Saúde Pública. 1997;13:285-94.
  • 23. Ottensooser F, Pasqualin R. Blood types of Brazilians Indians (Mato Grosso). Am J Hum Genet. 1949;1(2):141-55.
  • 24. Saldanha PH, citado por Beiguelman B. Dinâmica dos genes nas famílias e nas populações. Ribeirão Preto: Editora da Sociedade Brasileira de Genética, 1994.
  • 25. Ribeiro D. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 1995.
  • 26
    Ministério da Saúde. Programa de anemia falciforme. Brasília: Ministério da Saúde; 1996.
  • 27. Ramalho AS. Aconselhamento genético. In: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, organizador. Manual de diagnóstico e tratamento das doenças falciformes. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. p. 35-39.
  • 28. Ramalho AS. Genética comunitária: uma alternativa oportuna e viável no Brasil. Boletim da Sociedade Brasileira de Genética Clínica. 2004;6:2-7.
  • Correspondência:
    Antonio S. Ramalho
    Departamento de Genética Médica, Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas
    13081-970 – Campinas-SP – Brasil
    Cx. Postal 6111
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Out 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Recebido
      02 Jul 2007
    • Aceito
      18 Set 2007
    Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Terapia Celular R. Dr. Diogo de Faria, 775 cj 114, 04037-002 São Paulo/SP/Brasil, Tel. (55 11) 2369-7767/2338-6764 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: secretaria@rbhh.org