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Identificação e caracterização de variantes novas e raras da hemoglobina humana

Identification of characterization of novel and rare variants of human hemoglobin

Resumos

As anormalidades estruturais da hemoglobina estão entre as doenças genéticas mais comumente encontradas nas populações humanas. O Laboratório de Hemoglobinopatias do Departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, localizado em Campinas, no estado de São Paulo, região Sudeste do Brasil, realizou, em seus 27 anos de existência, cerca de 130.000 diagnósticos. Entre as variantes estruturais detectadas, as hemoglobinas S, C e D-Punjab foram, como esperado, as mais freqüentes, porém um número expressivo de outras hemoglobinas anômalas, novas e raras, também foi encontrado. Esses achados estão sumarizados no presente artigo.

Hemoglobinopatias hereditárias; variantes estruturais; genes de globinas; população brasileira


Hemoglobin structural abnormalities are among the most commonly found human genetic diseases. The Laboratory of Hemoglobinopathies in the Clinical Pathology Department of the Medical Sciences School of the State University in Campinas - Unicamp, São Paulo, Southeastern Brazil, carried out, in its 27 years of activity, about 130,000 diagnoses. As expected, hemoglobins S, C and D were the most frequently observed variants, but an expressive number of other abnormal, novel and rare hemoglobins, was also detected. These findings are summarized in the present article.

Hereditary hemoglobinopathies; structural variants; globin genes; Brazilian population


REVISÃO REVIEW

Identificação e caracterização de variantes novas e raras da hemoglobina humana

Identification of characterization of novel and rare variants of human hemoglobin

Elza M. KimuraI; Denise M. OliveiraI; Susan E. D. C. JorgeI; Cristina F. AbreuI; Dulcinéia M. AlbuquerqueII; Fernando F. CostaII; Maria de Fátima SonatiI

IDepartamento de Patologia Clínica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Campinas-SP

IICentro de Hematologia e Hemoterapia, Unicamp, Campinas, SP

Correspondência Correspondência: Maria de Fátima Sonati Departamento de Patologia Clínica Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas Unicamp, Campinas-SP Caixa Postal 6111 13083-970 - Campinas-SP - Brasil Tel.: 55 19 35219451; Fax 55 19 35219434 E-mails: sonati@fcm.unicamp.br (preferido); sonati_mf@yahoo.com.br (alternativo)

RESUMO

As anormalidades estruturais da hemoglobina estão entre as doenças genéticas mais comumente encontradas nas populações humanas. O Laboratório de Hemoglobinopatias do Departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, localizado em Campinas, no estado de São Paulo, região Sudeste do Brasil, realizou, em seus 27 anos de existência, cerca de 130.000 diagnósticos. Entre as variantes estruturais detectadas, as hemoglobinas S, C e D-Punjab foram, como esperado, as mais freqüentes, porém um número expressivo de outras hemoglobinas anômalas, novas e raras, também foi encontrado. Esses achados estão sumarizados no presente artigo.

Palavras-chave: Hemoglobinopatias hereditárias; variantes estruturais; genes de globinas; população brasileira.

ABSTRACT

Hemoglobin structural abnormalities are among the most commonly found human genetic diseases. The Laboratory of Hemoglobinopathies in the Clinical Pathology Department of the Medical Sciences School of the State University in Campinas - Unicamp, São Paulo, Southeastern Brazil, carried out, in its 27 years of activity, about 130,000 diagnoses. As expected, hemoglobins S, C and D were the most frequently observed variants, but an expressive number of other abnormal, novel and rare hemoglobins, was also detected. These findings are summarized in the present article.

Key words: Hereditary hemoglobinopathies; structural variants; globin genes; Brazilian population.

Introdução

Mutações nos genes das globinas podem levar à produção de hemoglobinas estruturalmente alteradas.1 Há, atualmente, mais de 900 variantes estruturais descritas, a maioria ocasionada por simples substituições de bases no DNA, com a correspondente troca de aminoácidos na proteína.2 Embora a maior parte dos casos seja de cadeias β, alterações de cadeias α, γ e δ são também relativamente comuns. Há um grande contingente não relacionado à sintomatologia clínica, mas algumas alterações afetam a estabilidade e/ou solubilidade da molécula ou modificam suas propriedades funcionais, levando às anemias hemolíticas e às eritrocitoses e cianoses, respectivamente. Há ainda variantes alongadas ou extremamente instáveis que resultam em fenótipos talassêmicos. Entre as variantes clinicamente importantes, a Hb S (α2βS2), da anemia falciforme, é sem dúvida a mais conhecida.1,2

O Laboratório de Hemoglobinopatias do Departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, desde sua implantação, em 1980, analisou cerca de 130.000 amostras de sangue, provenientes de indivíduos com suspeita clínica de hemoglobinopatias e seus familiares, de doadores de sangue nos quais se detectou a presença de hemoglobinas estruturalmente alteradas, de pro-gramas de triagem neonatal e, ainda, de um programa sistemático de triagem de variantes desenvolvido no próprio laboratório. A maior parte das amostras é oriunda de indivíduos da região sudeste, mas outras regiões brasileiras também contribuíram para essa casuística, como a região nordeste e a região sul, bem como alguns outros países da América Latina, como a Argentina, o México, o Uruguai e a Venezuela. Até o momento, e excluindo-se as alterações de cadeias δ, genericamente intituladas HbA2', 10 variantes novas e 51 variantes raras foram detectadas e identificadas, sendo 9 delas mutações de novo; 21 são alterações de cadeias α, 31 de cadeias β e 9 de cadeias γ, entre γG e γª. A maioria das variantes já descritas está sendo detectada no Brasil pela primeira vez. As tabelas de 1 a 4 apresentam esses resultados.

A principal forma de detecção é feita a partir da mudança na carga elétrica da variante em função da troca de aminoácidos ocorrida. A Figura 1 resume a estratégia metodológica utilizada. A eletroforese de hemoglobinas em acetato de celulose, em pH alcalino, e a cromatografia líquida de alta performance (HPLC - High Performance Liquid Chromatography), de troca catiônica, são as técnicas empregadas na triagem, esta última permitindo também a quantificação da fração anômala e das hemoglobinas A2 e Fetal. As variantes assim detectadas são então submetidas à eletroforese em gel de ágar, em pH ácido, aos testes de solubilidade e estabilidade (térmica, em n-butanol e em isopropanol) e à análise de cadeias globínicas, feita anteriormente por eletroforese e atualmente por HPLC de fase reversa (RPHPLC). Paralelamente, os eritrócitos, após análise por contador eletrônico, são investigados quanto à presença de corpos de Heinz e de inclusão.3


Uma vez identificada a cadeia mutante, o gene correspondente é então seletivamente amplificado pela reação em cadeia da polimerase (PCR), e seqüenciado.4-6 A confirmação da mutação é feita, sempre que possível, por análise com enzimas de restrição e/ou seqüenciamento da fita oposta de DNA, além da análise familial. No caso de variantes estruturais de cadeias α, o status numérico desses genes é ainda investigado.7,8

Finalmente, as propriedades funcionais da molécula anômala são avaliadas pelo método de cinética química de Rossi-Fanelli e Antonini, de 1958, através da curva de dissociação da hemoglobina com o O2, da determinação da cooperatividade entre as cadeias globínicas e do efeito Bohr, na ausência e na presença de fosfatos orgânicos.9

Dentre as variantes clinicamente importantes aqui encontradas estão as hemoglobinas Hammersmith, Zürich, Redondo, Köln, Indianápolis, Miami, Hb Sunshine Seth e Miyashiro, proteínas instáveis que resultam em anemia hemolítica crônica de intensidade moderada a grave, as hemoglobinas Lepore-Baltimore e Lepore-Boston, híbridos de cadeias δ e β associados a fenótipo talassêmico (δβ+), a Hb Florida, constituída de cadeias β com 156 aminoácidos, hiperinstável e com fenótipo dominante de talassemia intermediária, a Hb E, também com fenótipo β-talassêmico, a Hb Coimbra e a Pitie-Salpetriere, encontradas em pacientes com eritrocitose, e as variantes Hasharon e Stanleyville-II, sempre associadas à deleção -α3,7 e ao correspondente fenótipo α-talassêmico.10-17

A Hb Boa Esperança foi detectada em dois portadores assintomáticos (doadores de sangue), mas os estudos in vitro revelaram propriedades funcionais alteradas, compensadas in vivo, provavelmente, pela maior proporção de hemoglobina normal, de 75%.18 Já a Hb Itapira foi a variante representada em menor porcentagem, com cerca de 5,5%, porque a mutação que a deu origem ocorreu em um alelo α triplicado (αααanti-3,7).18

Algumas associações incomuns foram observadas. Heterozigotos da Hb Porto Alegre são geralmente assintomáticos, mas sua concomitância com a Hb Santa Ana, gerada por mutação de novo, levou a um quadro clínico de anemia hemolítica grave, com necessidade de esplenectomia.19 A Hb Icaria, uma variante alongada e instável de cadeias α, foi recentemente encontrada em associação com a deleção -(α)20,5, resultando em Doença da Hb H com altos níveis das hemoglobinas H e Bart's, de 15% e 19%, respectivamente. A Hb Miami foi detectada em uma criança heterozigota da talassemia β+, o que levou a um quadro de anemia hemolítica bastante grave. Esta paciente havia sido primeiramente estudada por Hoyer et al., na Clínica Mayo, nos Estados Unidos.20 A Hb S, além das associações com as hemoglobinas C e D e com a talassemia β, foi detectada em interação com as variantes J-Rovigo, Grange-Blanche e Stanleyville-II.10,17 Esta última foi também detectada em associação com a Hb Campinas, uma das variantes novas descritas em nosso laboratório. A Hb Rio Claro, outra nova variante, foi encontrada em uma paciente também heterozigota da Hb Hasharon e, conseqüentemente, da talassemia α+.21 As hemoglobinas D e J-Rovigo foram ainda detectadas em concomitância à talassemia β.10

Esses resultados ilustram a expressiva variabilidade de hemoglobinas presente nas populações. Do ponto de vista clínico, seu correto diagnóstico previne procedimentos e esquemas terapêuticos equivocados, particularmente quando os indivíduos apresentam microcitose e hipocromia, ou nos casos de variantes com o mesmo comportamento eletroforético ou cromatográfico daquelas mais freqüentemente observadas, como a Hb S. Do ponto de vista bioquímico, o estudo das variantes e de suas respectivas substituições de resíduos tem fornecido um importante modelo para a compreensão dos aspectos estruturais e funcionais desta e de outras proteínas, o mesmo ocorrendo com os genes de globinas e seus sistemas regulatórios. Do ponto de vista de genética de populações, sua investigação contribui de maneira significativa para o conhecimento da composição étnica e dos graus de miscigenação entre os diferentes grupos populacionais.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes, pelo suporte financeiro aos projetos de pesquisa e pelas bolsas de estudo concedidas aos alunos de iniciação científica e de pós-graduação.

Recebido: 19/09/2007

Aceito: 25/09/2007

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: não declarado

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  • Correspondência:
    Maria de Fátima Sonati
    Departamento de Patologia Clínica
    Faculdade de Ciências Médicas
    Universidade Estadual de Campinas
    Unicamp, Campinas-SP Caixa Postal
    6111 13083-970 - Campinas-SP - Brasil
    Tel.: 55 19 35219451; Fax 55 19 35219434
    E-mails:
    sonati@fcm.unicamp.br (preferido);
    sonati_mf@yahoo.com.br (alternativo)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Out 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Aceito
      25 Set 2007
    • Recebido
      19 Set 2007
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