Acessibilidade / Reportar erro

Doença falciforme e qualidade de vida: um estudo da percepção subjetiva dos pacientes da Fundação Hemominas, Minas Gerais, Brasil

Sickle cell disease and quality of life: a study on the subjective perception of patients from the Fundação Hemominas, Minas Gerais, Brazil

Resumos

Na presente investigação, buscou-se pesquisar se o conceito de qualidade de vida, preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) poderia ser utilizado para pacientes com doença falciforme (DF), uma vez que se apresenta como um problema de saúde pública no país. Utilizou-se uma abordagem qualitativa com a seguinte questão norteadora na entrevista: "Para você o que é QV?". De acordo com o relato dos pacientes, procurou-se identificar a presença dos domínios físico, psicológico, nível de independência, relações sociais, meio ambiente e espiritualidade/crenças pessoais na representação da QV. Participaram do estudo 25 pacientes, dos quais 80% eram portadores da hemoglobina SS (HbSS) e 20% com hemoglobina SC (HbSC). A média da idade encontrada foi de 33,3 anos, 56% eram do sexo feminino e 44% eram casados(as). Em relação à escolaridade, 44% atingiram até 11 anos de estudo e 56% até 8 anos. A DF representou, para 72%, impedimento para o trabalho, o que revela seu impacto negativo no desenvolvimento das habilidades laborais. Todos os domínios de QV preconizados pela OMS foram detectados no relato dos participantes: domínio físico em 84%, psicológico e relações sociais em 76%, nível de independência em 60%, meio ambiente em 52% e espiritualidade/crenças pessoais em 4% deles. Os aspectos referentes à multidimensionalidade e à subjetividade, apresentados no conceito de QV preconizado pela OMS, e representados pelos seus domínios, podem ser tomados como norteadores de estudos que envolvam o conceito de QV em pacientes com DF.

Doença falciforme; qualidade de vida; estudo qualitativo


This study aimed at investigating whether the concept of quality of life advocated by the World Health Organization can be applied to sickle cell patients, as this disease is an important public health problem in the country. A qualitative approach was utilized with the following guide question in the interview: "What is quality of life for you?" According to the patients' replies, the following domains were identified: physical, psychological, level of independence, social relationships, environment and spirituality/personal beliefs. Twenty-five patients took part in the study, 80% had hemoglobin SS and 20% hemoglobin SC. The average age was 33.3 years old, 56% of the patients were women and 44% were married. In relation to schooling, 12% had concluded the 4th grade of elementary school and 24% completed high school. Sickle cell disease represented a barrier in respect to work for 72% of the patients, which demonstrates its negative impact on the development of the work capabilities of the individuals. All quality of life domains advocated by the WHO were present in the patients' replies: physical domain in 84%, psychological and social relationships in 76%, level of independence in 60%, environment in 52% and spirituality/personal believes in 4%. To conclude, the aspects referring to multidimensionality and subjectivity, presented in the quality of life concept advocated by the WHO and represented by their domains, can be taken as a guide for studies which involve the quality of life in sickle cell patients.

Sickle cell disease; quality of life; qualitative study


ARTIGO ESPECIAL SPECIAL ARTICLE

Doença falciforme e qualidade de vida: um estudo da percepção subjetiva dos pacientes da Fundação Hemominas, Minas Gerais, Brasil

Sickle cell disease and quality of life: a study on the subjective perception of patients from the Fundação Hemominas, Minas Gerais, Brazil

Sônia A. S. PereiraI; Clareci S. CardosoII; Stela BrenerII; Anna Bárbara F. C. ProiettiIII

IPedagoga da Fundação Hemominas

IIMédica da Fundação Hemominas

IIIPresidente da Fundação Hemominas

Correspondência Correspondência: Sônia Aparecida dos Santos Pereira Fundação Hemominas Alameda Ezequiel Dias, 321 - Santa Efigênia 30150-110 - Belo Horizonte-MG - Brasil Telefone: 55 31 34242803; Fax: 55 31 32906564 E-mail: soniasape@yahoo.com.br

RESUMO

Na presente investigação, buscou-se pesquisar se o conceito de qualidade de vida, preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) poderia ser utilizado para pacientes com doença falciforme (DF), uma vez que se apresenta como um problema de saúde pública no país. Utilizou-se uma abordagem qualitativa com a seguinte questão norteadora na entrevista: "Para você o que é QV?". De acordo com o relato dos pacientes, procurou-se identificar a presença dos domínios físico, psicológico, nível de independência, relações sociais, meio ambiente e espiritualidade/crenças pessoais na representação da QV. Participaram do estudo 25 pacientes, dos quais 80% eram portadores da hemoglobina SS (HbSS) e 20% com hemoglobina SC (HbSC). A média da idade encontrada foi de 33,3 anos, 56% eram do sexo feminino e 44% eram casados(as). Em relação à escolaridade, 44% atingiram até 11 anos de estudo e 56% até 8 anos. A DF representou, para 72%, impedimento para o trabalho, o que revela seu impacto negativo no desenvolvimento das habilidades laborais. Todos os domínios de QV preconizados pela OMS foram detectados no relato dos participantes: domínio físico em 84%, psicológico e relações sociais em 76%, nível de independência em 60%, meio ambiente em 52% e espiritualidade/crenças pessoais em 4% deles. Os aspectos referentes à multidimensionalidade e à subjetividade, apresentados no conceito de QV preconizado pela OMS, e representados pelos seus domínios, podem ser tomados como norteadores de estudos que envolvam o conceito de QV em pacientes com DF.

Palavras-chave: Doença falciforme; qualidade de vida; estudo qualitativo.

ABSTRACT

This study aimed at investigating whether the concept of quality of life advocated by the World Health Organization can be applied to sickle cell patients, as this disease is an important public health problem in the country. A qualitative approach was utilized with the following guide question in the interview: "What is quality of life for you?" According to the patients' replies, the following domains were identified: physical, psychological, level of independence, social relationships, environment and spirituality/personal beliefs. Twenty-five patients took part in the study, 80% had hemoglobin SS and 20% hemoglobin SC. The average age was 33.3 years old, 56% of the patients were women and 44% were married. In relation to schooling, 12% had concluded the 4th grade of elementary school and 24% completed high school. Sickle cell disease represented a barrier in respect to work for 72% of the patients, which demonstrates its negative impact on the development of the work capabilities of the individuals. All quality of life domains advocated by the WHO were present in the patients' replies: physical domain in 84%, psychological and social relationships in 76%, level of independence in 60%, environment in 52% and spirituality/personal believes in 4%. To conclude, the aspects referring to multidimensionality and subjectivity, presented in the quality of life concept advocated by the WHO and represented by their domains, can be taken as a guide for studies which involve the quality of life in sickle cell patients.

Key words: Sickle cell disease; quality of life; qualitative study.

Introdução

A doença falciforme (DF) originou-se na Ásia Menor ena África, foi trazida às Américas pela imigração forçada dos nativos africanos para trabalho escravo e é hoje encontradaem toda a Europa e Ásia.1

No Brasil distribuiu-se heterogeneamente, sendo mais prevalente onde a proporção de negros é maior. Ocorre também entre brancos, decorrente da miscigenação da população brasileira. No sudeste do Brasil, a prevalência média de portadores (heterozigotos) é de 2%, e entre os negros essa prevalência eleva-se para 10%. Pela sua alta prevalência, a DF configura-se como um importante problema de saúde pública no país.1 Em Minas Gerais, a forma homozigótica (HbSS) é a mais prevalente, sendo encontrada na proporção de 40 casos em cada 100.000 indivíduos, e, na forma SC (HbSC), 31 casos em cada 100.000 pessoas, o que demonstra uma prevalência significativa de ambas as formas da DF no estado.2

A doença falciforme é crônica e, embora tratável, pode representar um alto grau de sofrimento para o paciente, do ponto de vista médico, genético e psicossocial,3-6 além de se apresentar com várias doenças associadas.7 As suas complicações comprometem a QV do paciente com DF e pode levar à invalidez.8,9

Nesse contexto, estudo de Platt e colaboradores10 mostrou expectativa de vida de 42 anos para homens e 48 anos para mulheres com hemoglobina SS. Para pacientes com a Hemoglobina SC, a expectativa de vida foi de 60 e 68 anos, para homem e mulher, respectivamente.10 Embora os dados sejam da década anterior, naquela época já demonstravam uma expectativa de vida aquém da apresentada pela população em geral.

Em termos de freqüência populacional11-14 e de manifestações clínicas,6,14,15 a DF tem sido muito estudada no Brasil. Nos últimos dez anos, observou-se um aumento do interesse pela DF, o que pode ser atribuído, em grande parte, a um novo posicionamento do Estado e da sociedade brasileira diante da questão racial.16 No entanto, não foram identificados estudos relacionados à QV desses pacientes. Essa realidade é um pouco diferente em outros países, embora a QV de pacientes com DF não tenha sido também relatada extensamente.7

De modo geral, na área da saúde, são crescentes os estudos sobre a QV, que passaram a ser amplamente utilizados como medida de desfecho em saúde,17 decorrente das mudanças de paradigmas que têm influenciado as políticas e as práticas do setor.18 Devido aos impactos físico, psicológico e social da DF, tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos da vida devem ser considerados como importantes para a compreensão da QV dos pacientes.19

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS),20 QV é a percepção do indivíduo sobre sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive, e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações. Presente nessa definição aspectos fundamentais referentes à multidimensionalidade, à subjetividade e à presença de elementos positivos (ex.: mobilidade) e negativos (ex.: dor).29 Esses aspectos são representados pelos domínios físico, psicológico, nível de independência, relações sociais, meio-ambiente e espiritualidade/crenças pessoais.

Dessa forma, a OMS desenvolveu instrumentos de medida de QV como o WHOQOL-100 e a sua versão abreviada, o WHOQOL-bref. Ambos, testados em diferentes culturas na tentativa de definir quais domínios e suas respectivas facetas seriam mais importantes para a avaliação da QV, tendo sido desenvolvidas e validadas as versões brasileiras.21

Dentro desse contexto, é importante indagar: quais dimensões devem ser consideradas na avaliação da QV dos pacientes com DF? Este estudo tem como objetivos conhecer, a partir da percepção do paciente, o que é QV na DF e, dessa forma, investigar se o conceito de QV, preconizado pela OMS, poderia ser aplicado para essa população. Nesse sentido, identificar quais os domínios da QV são relatados pelos participantes. Assim os resultados dessa investigação poderão apontar caminhos para uma melhor compreensão da QV nessa população.

Casuística e Método

Desenho do estudo

O presente estudo é parte de uma investigação que se volta para o entendimento da QV na DF e seguiu a abordagem qualitativa, entendida como um conjunto de práticas interpretativas que busca investigar os sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem.22,23 Por meio dessa abordagem, buscando o alcance dos objetivos, procurou-se situar a análise na compreensão do que o paciente considerava como QV. Dessa forma, a questão "Para você o que é ter QV?" norteou a investigação.

Caracterização da população

Foram captados, para o presente estudo, pacientes com doença falciforme, com hemoglobina SS e SC, cadastrados no Hemocentro de Belo Horizonte (HBH), da Fundação Hemominas. Os participantes foram incluídos na investigação de acordo com os seguintes critérios: idade acima de 18 anos, ter diagnóstico com hemoglobina do tipo SS ou SC, não apresentar comprometimento cognitivo, concordar e assinar o termo de compromisso livre e esclarecido.

Seleção da amostra

Foi realizada de forma aleatória. A partir da agenda diária de consulta médica sorteou-se o número do paciente que deveria ser entrevistado, seguindo para o mais próximo em caso de negativa ou não comparecimento. As entrevistas ocorreram no período de julho de 2006 a março de 2007. O número amostral obedeceu os critérios de saturação da resposta até que permitisse uma análise mais ou menos densa que levasse à compreensão das redes de significados a partir do ponto de vista do 'outro'.24

Domínios e facetas da escala de QV - WHOQOL

Para representar o conceito de QV, a OMS identificou seis domínios e, dentro de cada um deles, as suas abrangências, conceituadas como facetas. Para o domínio físico, que se refere à percepção do indivíduo sobre sua condição física, estão envolvidas as facetas dor, desconforto, energia e fadiga, sono e repouso. O domínio psicológico, como a percepção do indivíduo sobre a sua condição afetiva e cognitiva, compreende as facetas dos sentimentos positivos, o pensar, o aprender, a memória, a concentração, a auto-estima, a imagem corporal, a aparência e os sentimentos negativos. O nível de independência envolve a percepção do indivíduo sobre como se tornar independente no seu dia-a-dia e contempla as facetas mobilidade, atividades da vida cotidiana, dependência de medicação ou tratamento e capacidade de trabalho. O domínio relações sociais inclui a percepção do indivíduo sobre os relacionamentos sociais e os papéis sociais adotados na vida e abrange as facetas relações pessoais, suporte social e atividade sexual. O domínio meio-ambiente está relacionado à percepção do indivíduo sobre os aspectos diversos relacionados ao ambiente onde vive. Nesse domínio são representadas as facetas: segurança física e proteção, ambiente e lazer, oportunidades de adquirir novas informações e lazer, participação e oportunidade de recreação e lazer, cuidados de saúde e sociais, transporte, além do ambiente físico que foi dimensionado pelo ruído, poluição, trânsito, clima. Enfim, inclui-se o domínio espiritualidade/crenças pessoais que compreende a percepção do indivíduo em relação às suas crenças pessoais e ao apoio espiritual e são representados pelas facetas espiritualidade, religião e as crenças pessoais.

Condução das entrevistas

As entrevistas conduzidas com cada paciente e por uma das pesquisadoras foram gravadas e depois transcritas.

Análise

A avaliação da transcrição foi realizada, de forma independente, por duas pesquisadoras do projeto. Considerou-se, para efeito de classificação, aqueles domínios que apareciam com maior freqüência. Em caso de discordância na classificação, era solicitado um terceiro avaliador.

Considerações éticas

O comitê de ética em pesquisa da Hemominas aprovou a pesquisa sob parecer 139 de 08/05/2006.

Resultados

Participaram do estudo 25 indivíduos; desses, 80% eram portadores da forma Hb SS e 20% com Hb SC. A média da idade variou em torno de 33,3 anos, 56% eram do sexo feminino e 44% casados. Em relação à escolaridade, 44% atingiram até 11 anos de estudo e 56% até 8 anos. A DF representou, para 72,2% dos pacientes, impedimento para o trabalho e apenas 24% encontravam-se trabalhando.

Todos os domínios de QV, preconizados pela OMS, estiveram presentes no relato dos participantes, conforme apresentado em tabela.

Domínio físico

Este domínio permeou a fala de 84% dos participantes. A frase dita por um deles ao qualificar sua QV demonstra claramente a presença desta dimensão: "No meu caso é poder cuidar da saúde e trabalhar... eu não consigo cuidar muito de mim, pois eu tenho que trabalhar até 12 horas por dia para sustentar a minha família. Por exemplo, eu tô (sic) aqui hoje é porque eu tive alta, aliás, eu pedi pro (sic) médico me liberar. Eu estava internado desde sexta por causa das crises, mas mesmo assim eu tô com dor ainda... por não ter condições de dedicar ao tratamento para trabalhar, eu não considero minha QV boa... ela é ruim".

Domínio psicológico

Esteve presente em 76% dos relatos. Considerando essa temática, as duas frases abaixo exemplificam a percepção que os pacientes tiveram de sua QV: 1) "É ter uma vida boa, tranqüila... Não é preciso comer bem, alimentar bem, mas ter tranqüilidade é mais importante... só isso." 2) "É viver sem nenhum tormento, sem nenhuma dificuldade, eu acho que é só."

Domínio nível de independência

Foi apresentado em 60% dos relatos. As frases que se seguem estão inseridas nesse contexto: 1) "QV é saúde em primeiro lugar, para ter saúde você tem que ter uma boa alimentação, médicos, estrutura familiar, remédios. Você tendo saúde, você tem trabalho, e trabalhando você fica bem". 2) "É ter um emprego que eu consiga permanecer empregada, para os meus filhos não poder reclamar (sic), dizer que querem morar com o pai deles, porque aqui na minha casa não tem isso, não tem aquilo". 3) "É viver a vida tranqüila, ter as coisas necessárias e uma vida social estável"

Domínio relações sociais

Foi identificado em 76% dos relatos. Exemplo dessa dimensão expressa-se por um dos participantes na seguinte fala: 1) "É a pessoa viver bem. Independente do que ela vai ter de problema financeiro ou de saúde... ela conviver bem com os outros, aceitar as coisas como elas são. Eu tenho esperança de viver bem para sempre... esperança do futuro melhor... me ajuda a ter uma QV melhor ... apesar da dor que eu sinto, pois não desejo ela pra ninguém".

Domínio meio ambiente

Este domínio foi observado na fala sobre a QV de 52 % dos participantes, como é apresentado: 1) "Ter QV... hum... é morar num ambiente saudável, ter estabilidade financeira, ter emprego, ter qualificação profissional, se atualizar, ter bons estudos, ter uma carreira, assim é.. como posso dizer... ter uma carreira , ter um futuro, atingir um objetivo. Pra mim realizando (sic) os meus sonhos é fundamental". 2) "QV tem vários sentidos: material e afetivo. Eu não tenho nada a reclamar nesse sentido. Se todo mundo olhasse a vida como é, as coisas seriam diferentes. Hoje as pessoas não tem QV adequada e querem descontar nos outros. O brasileiro devia ter QV boa, mas os "poderosos" políticos não dão condição. Por isso a gente tem que viver do jeito que pode. Você que trabalha na saúde, você vê a nossa condição." A estabilidade financeira foi relatada por 20% como importante aspecto da QV, como se observa em uma das falas do grupo. 3) "Ter uma vida boa... não faltar nada. É isso aí mesmo, ter uma vida boa. Não faltar alimento, trabalhar... e ter meu ganho, com minha família. Agradeço a minha família".

Domínio espiritualidade/crenças pessoais

Foi reconhecido no relato de um dos entrevistados que a expressou da seguinte maneira: "QV, ah meu Deus... QV é ter uma vida melhor? Acho que é ter uma vida melhor... ser feliz, eu acho que é isso. Não sei... a gente conseguir, ter desejo, é isso".

Além dos domínios citados, a satisfação com a saúde esteve presente no relato de 36% dos participantes, como se observa nos depoimentos seguintes: 1) "É viver bem, né... É ter saúde. Isso que é QV". 2) "... ah dona se eu tivesse mais saúde, isso é tudo pra mim". 3) "Não ter doença nenhuma". 4) "... ter saúde também, ter boa saúde. A minha conclusão é que ter QV é ter saúde".

Discussão

Nesta investigação procurou-se entender como os pacientes com a doença falciforme identificavam a sua QV. Por meio da percepção subjetiva dos participantes do estudo, foi possível identificar quais domínios foram contemplados nos relatos e fazer uma relação dos mesmos com a definição de QV preconizada pela OMS, bem como suas áreas de avaliação.

De acordo com os sujeitos entrevistados, a QV apresentou-se de forma multidimensional. Nos relatos dos participantes foram identificados diferentes domínios envolvendo a QV.

Os domínios físico, psicológico, relações sociais e nível de independência foram os mais fortemente evidenciados pelos participantes com DF quando expressaram a sua QV. Esses resultados são consistentes com os achados do estudo qualitativo realizado no Reino Unido10 que, ao investigarem o relato de experiência de pacientes com DF, identificaram também essas dimensões para a QV. Esses autores defenderam ainda que a abordagem qualitativa deva ser usada para complementar os estudos quantitativos que envolvem essa morbidade, tendo em vista o seu caráter crônico e a necessidade de considerá-la como um todo e não meramente suas implicações médicas.

A partir da década de 90, a percepção do indivíduo passou a ser considerada nos estudos que envolviam a QV,25 ou seja, a avaliação que ele próprio faz da sua situação pessoal em cada uma das suas dimensões e as influências que recebe do contexto cultural no qual está inserido.26 A QV de pessoas que vivem numa mesma condição e até em um mesmo domicílio diferem entre si, desta forma, é necessário investigar a concepção do próprio paciente no que se refere à sua QV. Por outro lado, observa-se que, diante de um tratamento em que foram utilizados os mesmos critérios clínicos, podem-se obter respostas diferentes entre as pessoas.27

A constatação do papel protagonista dos determinantes gerais sobre as condições de saúde28 foi evidenciada pelos entrevistados ao relacionarem a QV com as diferentes dimensões que, por sua vez, envolvem em um sentido mais amplo o ambiente físico, social, político, econômico e cultural. Além disso, foi identificada a associação direta dessas dimensões com a sua satisfação com a saúde.

Embora os estudos de QV apontem a relevância dos aspectos subjetivos em relação aos objetivos, estes últimos devem também ser considerados em uma avaliação de QV. Características objetivas relacionadas às condições de vida, tais como a satisfação das necessidades básicas e daquelas criadas pelo grau de desenvolvimento econômico e social de determinada sociedade, compreendidos como alimentação, acesso à água potável, habitação, trabalho, educação, saúde e lazer são também fatores associados à QV. Nesse sentido, a perspectiva atual de promoção da saúde, que vai além de ações que meramente evitam a doença e prolongam a vida, chama a atenção para uma atenção voltada para verdadeiras ações que assegurem os meios e as situações que ampliem a QV experimentada, aquela em que os sujeitos sejam protagonistas das suas ações e desenvolvam a sua capacidade de autonomia e o padrão de bem-estar.28

Há anos, a relação entre saúde e condições de vida são reconhecidas. Nessa investigação, observou-se que a condição social e econômica do entrevistado está submetida ao impacto negativo da DF. Observou-se que apenas 24% dos indivíduos entrevistados encontravam-se trabalhando e, dos que não trabalhavam, 72% apontaram a doença como a principal causa de impedimento para o trabalho, o que revelou o impacto negativo da doença no que se refere ao desenvolvimento das habilidades laborais. Desde a "I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde", (Carta de Ottawa) e os diversos movimentos que se sucederam a partir de então, já se propunham, para alcançar a eqüidade, ações que objetivassem reduzir as diferenças no estado de saúde da população e assegurassem as oportunidades e os recursos igualitários para capacitar todas as pessoas a realizarem amplamente suas potencialidades de saúde. Nesse contexto, a saúde seria o maior recurso para o desenvolvimento social, econômico e pessoal, assim como uma importante dimensão da QV.28

O domínio que aborda os aspectos espirituais e as crenças pessoais aparece em menor proporção, divergindo de um estudo de Thomas e colaboradores29 em que pacientes freqüentemente se apóiam em suas crenças religiosas como uma importante forma de enfrentamento frente a situações inusitadas da doença. Esse estudo mostrou que o constante risco de óbito precoce ou repentino leva o paciente a se amparar em sua crença religiosa como um importante recurso de conforto.29 Essa divergência de resultados demonstra que a forma de enfrentamento da doença varia de um contexto social para o outro.

Os instrumentos de medida de QV são classificados como genéricos e específicos. Os genéricos contemplam todos os aspectos necessários relacionados à saúde, ou seja, consideram a multidimensionalidade e têm sido sugeridos por permitir a comparação entre as morbidades. Os específicos possibilitam uma avaliação relacionada à experiência de doenças ou de intervenções.30 Portanto, a escolha do tipo de instrumento deve considerar a população a ser estudada, os aspectos psicométricos da escala de medida além dos objetivos do estudo.

O desenvolvimento de instrumentos específicos que mensurem a QV na DF tem sido proposto em outros países, como os estudos americanos de Adams-Graves e colaboradores31 e Werner e colaboradores.32 No entanto, para a utilização desses instrumentos no contexto sociocultural brasileiro, é necessário que sejam validados por se tratar de instrumentos originados de outras culturas.

Diante da impossibilidade de cura das doenças crônicas, a avaliação da QV passou a ser um importante marcador que determina o impacto da saúde na vida dos pacientes, além de direcionar estratégias para implementação de programas de saúde que privilegiem ações específicas de cuidado integral. A doença crônica afeta diretamente a vida pessoal e familiar do paciente, apresentando característica multidimensional, aspecto que deve ser considerado ao se mensurar a QV.33

Considerações Finais

De acordo com essa investigação, os aspectos referentes à multidimensionalidade e à subjetividade, apresentados no conceito de QV, preconizado pela OMS e representado pelos seus respectivos domínios, podem ser tomados como norteadores para os estudos que envolvem o construto QV na DF.

A QV, relatada pelos participantes deste estudo, apresentou-se com a mesma característica multidimensional da escala de QV proposta pela OMS, WHOQOL. Dessa forma, acredita-se que, a princípio, esse instrumento possa ser considerado como adequado para mensurar a QV desta população.

Nos últimos anos, a proposição de políticas públicas brasileiras que, dentre outros fatores, contemplam a melhoria da QV da população, tem se tornado uma realidade no setor saúde, apesar de haver ainda longo caminho a ser percorrido diante das inequidades existentes no país.

No tocante à DF, é preciso avançar na proposição de políticas públicas específicas que contemplem a efetivação de ações verdadeiras e concretas para a melhoria da condição de saúde com vistas à promoção da eqüidade.

Agradecimento

As autoras agradecem aos pacientes, sujeitos de pesquisa deste estudo; à estagiária de iniciação científica Juliana de Carvalho e França; à equipe do Ambulatório do HBH da Fundação Hemominas.

Recebido: 25/01/2008

Aceito: 21/02/2008

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: não declarado

Fundação Hemominas - Belo Horizonte-MG.

Fundação de Amparo e Pesquisa de Minas Gerais, Fapemig e CNPq.

  • 1. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Manual de diagnóstico e tratamento de doenças falciformes. 2001.
  • 2. Encontro Mineiro e Fórum Nacional de políticas integradas às pessoas com Doença Falciforme. Belo Horizonte, MG. 2007. Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. Nudap.
  • 3. Whitten CF, Fischhoff J. Psycosocial effects of sickle cell disease. Arch Intern Med. 1974;133(4):681-9.
  • 4. Serjeante GR. The clinical features of sickle cell disease. 1974 Oxford Medical Publication.
  • 5. Vavasseur J. A comprehensive program for meeting psychosocial needs of sickle cell anemia patients. J Natl Med Assoc. 1977;69 (5):335-9.
  • 6. Ramalho AS. Hemoglobinopatias hereditárias: um problema de saúde pública no Brasil. Ed. Sociedade Brasileira de Genética. 1986.
  • 7. McClish DK, Penberthy LT, Bovbjerg VE, Roberts JD, Aisiku IP, Levenson JL, et al. Health related quality of life in sickle cell patients: the PiSCES project. Health Qual Life Outcomes. 2005;3:50.
  • 8. Characheb S, Lubin B, Reid CD. Management and therapy of sickle cell disease. Washington, DC: National Institutes of Health. 1989.
  • 9. Gill KM, Phillips G, Williams DA. Sickle cell disease pain: relation of coping strategies to adjustment. J Consult Clin Psychol. 1992;60:267-73.
  • 10. Platt OS, Brambilla DJ, Rosse WF, Milner PF, Castro O, Steinberg MH, et al. Mortality in sickle cell disease. Life expectancy and risk factors for early death. N Engl J Med. 1994;330(23):1639-443.
  • 11. Araújo JT. Geographical distribuition and acident of hemoglobins in Brazil. In: Interamerican Symposium on Hemoglobins: Genetic, functional and physical studies on Hemoglobins. Caracas, 1971.
  • 12
    Naoun PC, Matos LC, Curi PR. Prevalência e distribuição geográfica de Hemoglobinas anormais no estado de São Paulo, Brasil. Bol. Bol of Saint Panam. 1984;97:534-50.
  • 13. Salzano FM, Tondo CV. Hemoglobin types in Brazilian populations. Hemoglobin. 1982;6(1):85-97.
  • 14. Zago MA. Anemia Falciforme. In: Ministério da Saúde. Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas na população afrodescendente. Brasília: Secretaria de Políticas Públicas de Saúde, 2001.
  • 15. Hutz MH. História natural da anemia falciforme em pacientes da região metropolitana do Rio de Janeiro. Tese de doutoramento. Instituto de Biociências da UFRGS. Porto Alegre, 1981.
  • 16. Fry PH. O significado da anemia falciforme no contexto da 'política racial' do governo brasileiro 1995-2004. História, Ciências, Saúde 2005;12(2):347-70.
  • 17. Neto JFR, Ferreira CG. Qualidade de vida como medida de desfecho em saúde. Rev Méd Minas Gerais. 2003;13(1):42-6.
  • 18. Seidl EMF, Zannon CMLC. Qualidade de vida e saúde: aspectos conceituais e metodológicos. Cad. Saúde Pública 2004;20(2):580-8.
  • 19. Thomas VJ, Taylor LM. The psychosocial experience of people with sickle cell disease and its impact on quality of life: Qualitative findings from focus groups. Br J Health Psychol. 2002;7(Part 3):345-63.
  • 20. The WHOQOL Group. The World Health Organization Quality of Life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Social Science Medicine. 1995;41(10):1403-9.
  • 21. Fleck MPA, Fachel O, Louzada S, Xavier M et al Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida "WHOQOL-bref". Rev Saúde Pública. 2000; 34 (2):178-83.
  • 22. Denzin NK, Lincoln YS. Introduction: the discipline and practice of qualitative research. In: Denzin NK, Lincoln YS. Handbook of qualitative research. London: Sage; 2000; p.1-29.
  • 23. Deslandes SF, Gomes R. A pesquisa qualitativa em serviços de saúde: notas teóricas. In: Bosi MLM, Mercado FJ, organizadores. Pesquisa qualitativa de serviços de saúde. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 99-120.
  • 24. Dauster TA. A Fabricação de livros infanto-juvenis e os usos escolares: o olhar de editores. Revista Educação/PUC-Rio, 1999;49:1-18.
  • 25. The Whoqol Group. The development of the World Health Organization Quality Of Life assessment (WHOQOL). In: Orley E, Kuen W. Editors. Quality of life assessment International Perspectives. Heidelberg: Springer Verlag 1994; p 41-60.
  • 26. Ciconelli RM. Medidas de avaliação de qualidade de vida. Rev Bras Reumatol. 2003;43(2):10-13.
  • 27. Guyatt GH, Feeny DH, Patrick DL. Measuring health-related quality of life. Ann Intern Med. 1993;118(8):622-9.
  • 28. Buss PM. Promoção de saúde e Qualidade de vida. Ciências e saúde coletiva 2000;5(1):163-77.
  • 29. Thomas VJ, Dixon AL, Milligan P. Cognitive-behaviour therapy for the management of sickle cell disease pain: An evaluation of a community-based intervention. Br J Health Psychol 1999;4:209-29.
  • 30. Minayo CS, Hartz ZMA, Buss PM. Qualidade de vida: um debate necessário. Saúde coletiva. 2000;5(1): 7-18.
  • 31. Adams-Graves P, Johnson C, Corley P, Lamar K. Quality of life and sickle cell disease. Blood. 2005; 106 (abstr.) 1326.
  • 32. Werner EM, Treadwell M, Hassell K, Kelle, S, Levine R. Sickle Cell Disease Health-Related Quality of life Questionary Project. ASH Annual Meeting Absracts, 2006. Poster board - session: 568-III.
  • 33. Strauss, AL. Chronic Illness and the Quality of life. 1984. St Louis: Mosby.
  • Correspondência:

    Sônia Aparecida dos Santos Pereira
    Fundação Hemominas
    Alameda Ezequiel Dias, 321 - Santa Efigênia
    30150-110 - Belo Horizonte-MG - Brasil
    Telefone: 55 31 34242803; Fax: 55 31 32906564
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Aceito
      21 Fev 2008
    • Recebido
      25 Jan 2008
    Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Terapia Celular R. Dr. Diogo de Faria, 775 cj 114, 04037-002 São Paulo/SP/Brasil, Tel. (55 11) 2369-7767/2338-6764 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: secretaria@rbhh.org