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Dengue em doadores de sangue: necessitamos de triagem laboratorial no Brasil?

Dengue in blood donors: do we need laboratorial screening?

CARTA AO EDITOR LETTER TO EDITOR

Dengue em doadores de sangue. Necessitamos de triagem laboratorial no Brasil?

Dengue in blood donors. Do we need laboratorial screening?

Silvano WendelI; José Eduardo LeviII

IDiretor do Banco de Sangue do Hospital Sírio Libanês, São Paulo-SP

IIResponsável pelo laboratório de Sorologia/NAT do Banco de Sangue do Hospital Sírio Libanês, São Paulo-SP

Correspondência Correspondência: Silvano Wendel Banco de Sangue do Hospital Sírio Libanês Rua Dona Adma Jafet 91 3º subsolo. Bela Vista 01308-050 - São Paulo-SP - Brasil Tel.: 55 11 35566015; Fax.: 55 11 32571290 E-mail: snwendel@uninet.com.br

ABSTRACT

Over the last 20 years, dengue has re-emerged in Brazil causing successive outbreaks with thousands of cases of dengue fever and hundreds of deaths. Similar to other Flaviviruses, the majority of the infections are asymptomatic. This can potentially lead to the collection of blood from a viremic donor, raising the possibility of transfusional dengue. However, the paucity of such cases strongly contrasts to the number of cases observed globally. Dr Estácio Ramos has advocated the urgent introduction of laboratorial screening of blood donations by use of an antigenic test in ELISA format (NS1). We would rather suggest more caution in postulating a measure that may cause an undesirable impact on the cost and availability of blood in our country. We believe that a cost-benefit analysis, based on solid scientific data, is mandatory before any specific measure is adopted. Towards that end, we are performing a survey of dengue RNA among blood donors from six Brazilian cities (Rio de Janeiro, São Paulo, Ribeirão Preto, Goiânia, Fortaleza and Campo Grande) collected during the epidemic season (March - May, 2008) which may foster this discussion.

Key words: Dengue; blood donors; NS1; NAT; cost-benefit.

Senhor Editor

Lemos com grande interesse a carta do Dr. Estácio F. Ramos recém-publicada.1 Temos considerações a fazer sobre o texto, pois entendemos que a conclusão do autor da necessidade de implantação imediata de triagem laboratorial de doadores de sangue pelo teste do antígeno NS1 não está baseada em evidência científica sólida, conforme discutimos a seguir:

1) Incidência. Em contraste com a crescente incidência de dengue no Brasil, com o aumento inclusive do número de casos mais graves e hemorrágicos, aliado à presença dos sorotipos 1,2 e 3 e, talvez, também do sorotipo 4, não há a descrição de nenhum caso sugestivo ou comprovado de dengue transfusional. Mesmo em nível global existem apenas três casos reportados de dengue por transfusão2 (Petersen LR, Director, Division of Vector-Borne Infectious Diseases, Centers for Disease Control and Prevention, AABB 2007 TTD -I: Emerging Infectious Diseases, 20/10/2007 e ProMED-mail. Dengue Virus, Transfusion Transmission - China (Hong Kong). ProMED-mail 2002; 11-OCT: 20021011.5526 ), nenhum deles publicado em uma revista científica com revisão por pares (peer-review) e todos sem uma comprovação formal da transmissão por via transfusional.

2) Sazonalidade e Regionalidade. É fato que a dengue apresenta estas duas características, muito claras também no Brasil, sendo o número de casos altíssimo nos meses de março e abril e muito pequeno nos meses de julho-outubro (Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Situação Epidemiológica da Dengue até Dezembro de 2006, semana epidemiológica Nº52, disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf).

O modelo do vírus do Oeste do Nilo nos Estados Unidos da América deve ser lembrado, no qual as doações são testadas de modo diferente nos meses de alta incidência (doações individuais) em relação aos meses de baixa incidência (pools de doações.)3 Quanto à regionalidade, por enquanto só temos evidência da presença do vírus em doadores de sangue no hemocentro de São Paulo4 (3 casos em 4.858 doadores = 0,06%). Logo, os cálculos do autor não podem ser extrapolados para o país, pois corre-se o risco de sub ou superestimativas. Uma vez que as medidas hemoterápicas têm caráter nacional, falta a demonstração empírica da presença do vírus em doadores de outras regiões do país. Nesse sentido, estamos realizando um estudo multicêntrico no Brasil, subvencionado pela International Society for Blood Transfusion (ISBT Foundation) em colaboração com o Dr. Anton Andonov do National Microbiology Laboratory, Public Health Agency of Canada, visando justamente avaliar a prevalência de amostras virêmicas em doadores de sangue do Rio de Janeiro, São Paulo, Ribeirão Preto, Goiânia, Fortaleza e Campo Grande, colhidas no pico da incidência em nosso país. Mesmo que haja, e é provável que sim, pois, como afirma corretamente o autor, cerca de 85% das infecções são assintomáticas,5 isso não significa a necessidade de triagem laboratorial. Deve ser ressaltado que doadores virêmicos não significam obrigatoriamente transmissão transfusional, sendo obrigatório pesquisar-se a sobrevivência do vírus após o processamento habitual das bolsas e a infectividade de cada hemocomponente. Outras infecções virais também apresentam doadores virêmicos assintomáticos e, no entanto, não há repercussão transfusional conhecida, caso da gripe e da SARS.

3) Método diagnóstico. Na eventualidade de se decidir pela testagem, lembrando que nenhum país do mundo realiza teste de triagem para dengue, cabe discutir-se qual seria o teste de escolha. O autor assume que o teste NS1 é o mais apropriado, pois tem baixo custo e formato ELISA. A simples existência e disponibilidade do teste não significam sua pertinência para a triagem de doadores de sangue. Onde estão os dados de especificidade do teste com doadores de sangue das diferentes regiões brasileiras? Apenas com a estimativa de especificidade é que se pode verificar a quantidade de doações que serão descartadas por resultados falso-positivos e estes dados então inseridos em uma análise de custo-efetividade. As decisões atuais em saúde, especialmente aquelas que incidem sobre uma grande escala, como em triagem hemoterápica, necessitam de avaliações numéricas, não devendo basear-se em suposições e opiniões, ainda que estas sejam importantes para dar início ao debate. Em suma, não pretendemos de forma alguma procurar diminuir a importância da epidemia de dengue, nem negar que ela representa a falência da política de saúde pública, uma vez que o vetor chegou a ser erradicado do país, mas, por razões que fogem ao escopo desta missiva, permitiu-se sua reintrodução e, devido ao combate ineficiente ao mesmo, chegamos à situação atual. No entanto, é fundamental que as sociedades científicas debatam medidas em saúde sob a ótica da relação custo-benefício, e a RBHH é o fórum dos especialistas brasileiros em hemoterapia, portanto devemos primeiro verificar a dimensão do problema, realizar uma boa análise baseada em evidências para, por último, apregoar a introdução de um teste que implicará recurso na casa dos milhões de reais, para uma ocorrência ainda incerta e não comprovada. A prevenção do vetor é algo que já se provou custo-efetivo, tem necessidade crônica de injeção de recursos e sendo efetiva, prevenirá a dengue em todas as suas formas.

Recebido 19/06/2008

Aceito: 24/06/2008

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: não declarado

  • 1. Ramos EF. Hemoterapia e febre Dengue. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2008;30(1):61-69.
  • 2. Mandell, Douglas and Bennett's (eds.). Principles and Practice of Infectious Diseases (5th edition) 2000. Chapter 142 - Flaviviruses, pg. 1719.
  • 3. Custer B, Tomasulo PA, Murphy EL et al Triggers for switching from minipool testing by nucleic acid technology to individual-donation nucleic acid testing for West Nile virus: Analysis of 2003 data to inform 2004 decision making. Transfusion. 2004;44(11):1547-54.
  • 4. Linnen JM, Vinelli E, Sabino EC et al. Dengue viremia in blood donors from Honduras, Brazil, and Australia. Transfusion. 2008, no prelo.
  • 5. Méndez F, Barreto M, Arias JF et al. Human and mosquito infections by dengue viruses during and after epidemics in a dengue-endemic region of Colombia. Am J Trop Med Hyg. 2006;74(4):678-83.
  • Correspondência:

    Silvano Wendel
    Banco de Sangue do Hospital Sírio Libanês
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008
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