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Sobre a transmissão transfusional da febre dengue

About dengue fever transmitted through blood transfusion

CARTA AO EDITOR LETTER TO EDITOR

Sobre a transmissão transfusional da febre dengue

About dengue fever transmitted through blood transfusion

Estacio F. Ramos

Médico patologista, clínico e hemoterapeuta. Board Certified Hematology - Diretor Associado. Instituto de Hematologia da Bahia - Diretor Técnico. Hemoterapia, Hospital Português, Salvador, Bahia. Diretor Científico - UMA (representante no Brasil do Worldwatch, Washington D.C.)

Correspondência Correspondência: Estácio Ferreira Ramos Instituto de Hematologia da Bahia Rua Flórida nº 4 - Graça 40080-150 - Salvador-BA - Brasil E-mail: esfera@timo.com.br

ABSTRACT

The authors S Wendel & J E Levi present a critical review on our previously published proposal for the introduction of dengue NS1 antigen EIA screening in the blood bank routine, aiming at preventing transmission of the dengue virus through blood transfusions. They focus on the fact that just a few cases were reported in non-peer-reviewed papers; they put under question the adequacy of the NS1 antigen EIA test and evoke its unfavorable cost-benefit. Also, they claim the testing system has yet to be validated in Brazil. We understand that several factors comprise a solid set of elements supporting the need for immediate preventive measures, as proposed including: 1) the recognized parenteral infectivity of dengue virus; 2) the case of transfusion transmitted dengue reported in Transfusion this year; 3) under-diagnosis and under-notification; 4) the environmental issues and disease evolution; 5) ethical questions; 6) the presence of NS1 for all virus strains; and 7) the high cost of molecular assays.

Key words: Dengue; virus; blood banking; infection; transfusion; NS1 antigen.

Senhor Editor

Ao considerar a crítica abalizada dos colegas S Wendel e JE Levi,1 reconhecemos ter sido impactados pela evolução dos números e dimensão da febre dengue no país e no mundo e que talvez estejamos antevendo a necessidade da triagem sorológica dos doadores para a prevenção da dengue transfusional. Mas para os que acreditam que a febre dengue é relevante de imediato para a segurança hemoterápica, as informações epidemiológicas e ambientais formam um quadro preocupante.

O aquecimento global expande fronteiras e acelera a reprodução do vetor e da dengue. O espalhamento dos quatro sorotipos virais pelo planeta agrava-lhes a morbidade e a letalidade. Estudo das Nações Unidas e IPCC revela o impacto do aquecimento climático sobre a expansão da malária e da dengue.2 Desde então, a temperatura média da terra continua em elevação.

Entre nós, há maior endemia e surtos epidêmicos mais freqüentes e virulentos, como visto no Rio de Janeiro este ano. Os colegas usam dados de 2006 do Ministério da Saúde, mas os números de 2007/2008 os alteram substancialmente: houve explosão do número de casos e a mortalidade é recorde. Grande parte dos ovos dos vetores para os próximos surtos já estão postos.

Como outros vírus transmissíveis por transfusão, o vírus da dengue é infectante pelo contato sangue-sangue; por picada de agulha, exposição mucocutânea e intrapartum. Uma unidade de medula óssea transmitiu a doença a um paciente pediátrico, que foi a óbito. Essas vias de transmissão estão bem documentadas. Experts afirmam que os profissionais de saúde não estão adequadamente informados sobre os riscos ocupacionais no manejo da dengue.3 Casos de transmissão transfusional vêm sendo reportados. Em recente artigo na Transfusion, Mohammed H et al. apontam mais um caso de dengue por transfusão, enfatizando que "a transmissão de dengue por esta via é mais comum do que documentada".4

Entendemos que para um agente etiológico com essas características é fundamental valorizar esses registros, mesmo publicados sem revisão por pares. A revisão não seria crítica para a aferição de relatos clínicos; e sendo inquestionável a infecção parenteral, a não valoração desses registros pode manter à sombra eventos que precisam ser iluminados. Embora a dengue transfusional pareça algo raro, é também correto supor que não esteja sendo suspeitada. Se a comunidade médica não for advertida, a infecção sub-sintomática ou sobreposta a outras patologias continuará quase invisível.

Os colegas sugerem que o processamento e estocagem do sangue e componentes possam ser lesivos ao vírus in vitro, o que teoricamente é válido; mas outros flavivírus são transmitidos por sangue e componentes refrigerados e congelados contendo CPDA1.

Quanto à sazonalidade, o modelo adotado nos Estados Unidos para a pesquisa do vírus da febre do Nilo Ocidental (WNV) em doadores de sangue é interessante, e deverá eventualmente vir a ser estudado para a dengue em nosso meio. Mas o Worldwatch aponta para mudanças na arbovirose e prenunciam um mundo próximo com muito mais dengue. Se a temperatura global elevar-se em pouco mais de 1,0º C (um grau Celsius) a doença atingirá o Canadá.2

Dado as diversas características de infectividade entre os agentes etiológicos, pouco acrescenta comparar o risco de infecção transfusional da dengue com SARS ou gripe, vez que para estas últimas a transmissão parenteral não é a regra.

Quanto à proposta configurar uma ameaça ao suprimento de sangue, se corretos os colegas a exclusão de 0,06% das unidades hemoterápicas (contendo o antígeno viral) representa, a nosso ver, antes um aprimoramento da sua qualidade. Muito mais ameaçador ao suprimento de sangue é o impacto negativo dos surtos epidêmicos sobre a população de doadores.

A custo-eficácia do combate ao vetor é uma verdade em termos: não por acaso o Ministério da Saúde anuncia em mídia aberta (13/10/2008) disponibilizar recursos da ordem de um bilhão de reais para o combate ao vetor da dengue nos próximos meses. O fato é que a endemia está em expansão em todo o mundo, a resistência aos inseticidas é crescente, a toxicidade para homens e animais é importante; e o impacto ambiental da sua utilização é devastador; a ponto do Ministério da Saúde restringir o seu uso nos municípios. Medidas coercitivas eficazes como adotadas em Singapura não seriam compatíveis com o nosso Estado de Direito Democrático; e esperar resultados importantes de medidas educacionais entre nós ainda é utópico.

Em suma, as evidências apontam para a dengue como um risco hemoterápico real, além da dúvida razoável. Enquanto um estudo extenso, bem elaborado e revisado por pares não provar o contrário, é mais seguro tomar por verdadeiros os dados disponíveis e adotar medidas preventivas imediatas; ou seja, enquanto não temos os resultados do estudo multicêntrico conduzido pelo colega, ISBT Foundation e outros, precisamos da triagem sorológica e/ou molecular dos doadores para mitigar o risco de transmissão iatrogênica da dengue.

Por fim, exige-se preocupação com o impacto do custo sobre o sistema de saúde imposto por um parâmetro laboratorial adicional à rotina dos bancos de sangue; mas esses mesmos tempos, a bem da segurança institucional, profissional e dos pacientes também exigem não expor doentes a risco já identificado e abordável. Ademais, o país já demonstrou que é possível lidar com eventuais abusos inerentes a patentes oligopolizadas, quando é posta em risco a saúde dos seus cidadãos.

A história recente da hemoterapia demonstra que, invocada a relação custo-benefício para a não adoção de medidas preventivas contra agentes etiológicos veiculados por sangue humano, o que ocorre é a procrastinação das mesmas, com impacto negativo sobre muitos pacientes. Por erros dessa natureza, com relação ao HIV por exemplo, vinte gestores de instituições e indústrias foram condenados nos Estados Unidos, Japão e em quatro países da Europa; sendo emblemático o episódio dos fatores anti-hemofílicos não inativados na França.5 Há também processos e indenizações milionárias, contra indústrias, hospitais e seus gestores, pela transmissão parenteral e transfusional do HCV.

Deflagrado este debate; cujo mérito é dos colegas, conclamamos os especialistas a participar; a estar atentos a eventual dengue transfusional. Talvez esteja aí um alvo maior para ações de hemovigilância e das comissões de hemoterapia. Porque é preciso encontrar o timing correto das medidas preventivas e evitar um impacto lesivo maior da dengue sobre a vida dos nossos pacientes. Afinal, "verdadeiramente, como a luz manifesta-se a si mesma e a escuridão, assim a verdade é o padrão de si mesma e do erro." (Espinoza,Ética, Pt.II, Prop. 43). Vejamos o que o futuro nos reserva.

Recebido: 28/07/2008

Aceito: 29/07/2008

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: não declarado

  • 1. Wendel S, Levi JE. Dengue em doadores de sangue. Necessitamos de triagem laboratorial no Brasil?Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2008;30(5):417-418.
  • 2. Colombia First National Communication to UNFCCC - United Nations Framework Convention on Climate Change, 2001.
  • 3. Chen LH, ME Wilson ME. Non-Vector transmission of dengue and other flaviviruses. Dengue Bulletin, vol. 9, 2005 - Harvard Medical School, Division of Infectious Diseases.
  • 4. Mohammed H, Linnen JM, et al Dengue virus in blood donations, Puerto Rico, 2005. Transfusion 2008;48(7):1348-45. Published Online: 22 May 2008 © AABB.
  • 5. Weinberg PD et al Legal, financial, and public health consequences of HIV Contamination of Blood and Blood Products in the 1980s and 1990s. Ann Intern Med. 2002;136(4):312-9.
  • 6. Allain J, Bianco C et al Protecting the Blood Supply From Emerging Pathogens: The Role of Pathogen Inactivation. Tranfsus Med Rev. 2005;19(2):110-26.
  • Correspondência:

    Estácio Ferreira Ramos
    Instituto de Hematologia da Bahia
    Rua Flórida nº 4 - Graça
    40080-150 - Salvador-BA - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008
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